Começou por ser batizado como um “contrato” para o país, chegou a ser anunciado como um novo ciclo, um entendimento, uma responsabilidade histórica, e acabou assim: “Um contrato de ferro”. Foi desta forma que Catarina Martins se referiu, na penúltima noite de campanha, ao acordo que quer negociar com o PS a partir de segunda-feira. O tal “contrato” que foi endurecendo até se tornar de ferro tornou-se o objetivo essencial destas eleições – e um dos critérios para medir um resultado que, a acreditar nas sondagens, mostrará um Bloco em perda no domingo, como já começam a antecipar os críticos internos do partido. Mesmo para eles, o foco está, no entanto, na “falência” da linha política atual e não tanto da líder: aqui, os resultados são “coletivos”.
Os vários pesos e medidas com que se lerão a percentagem e o número de lugares no Parlamento conquistados pelo Bloco não se ficam por aqui. Conseguirá o Bloco ter mais deputados do que o Chega? Haverá uma maioria de esquerda no Parlamento para forçar o PS a negociar? As perguntas correspondem aos vários eixos da estratégia que o Bloco tem seguido e definirão o que acontecerá no dia seguinte, também dentro do partido.
Para já, fica definido que a Comissão Política do partido se reunirá na segunda-feira para analisar os resultados – o mesmo dia em que, se tudo correr como Catarina Martins previu, também se sentará a conversar com António Costa. Mas se foi Catarina quem lançou o convite ao líder do PS e quem conduz os destinos do partido há quase oito anos (descontando o tempo de liderança bicéfala com João Semedo), incluindo toda a etapa da geringonça, numa coisa todos – tanto direção como oposição – concordam: se houver uma hecatombe no domingo, a responsabilidade será de toda uma linha política – e não ficará circunscrita à “consensual” (palavra de dirigente) coordenadora bloquista. Até ver, mesmo em cenário de catástrofe eleitoral, ninguém pede a cabeça da líder.
O enterro da maioria, a disputa com Ventura e os cenários de hecatombe
À medida que a campanha foi avançando, tornaram-se mais evidentes as várias fasquias que o Bloco coloca para estas eleições e com que lerá os resultados de domingo. O tal “contrato de ferro” é central e não é por acaso – esta quinta-feira, no mesmo comício em Lisboa onde usou essa expressão, Catarina dizia-se mesmo “orgulhosa por ter enterrado o delírio da maioria absoluta do PS”, reclamando para o Bloco esse mérito, e ironiza com as “voltas” que viu António Costa dar nesta campanha.
O raciocínio é simples: para os bloquistas, o dia mais determinante da campanha, e que acabou por condicionar toda a narrativa – no PS, no BE e com estilhaços a atingir as outras caravanas – foi domingo, quando Catarina lançou, do palco de outro comício lisboeta, o desafio a Costa para se reunirem na segunda-feira e começarem a negociar. Costa, talvez atento à mensagem, mas certamente atento às sondagens, arrumou o discurso da maioria absoluta na gaveta e adotou para a reta final o elogio do diálogo e o apelo ao fim das “mágoas” entre partidos.
Não seria um “sim” claro à esquerda, mas uma ajuda para a narrativa que o Bloco queria criar: a de que uma maioria à esquerda – mesmo que o PS não conquiste o primeiro lugar, como nos tempos da geringonça – ainda é possível, para mobilizar o eleitorado desse lado do espetro. Ou, como dizia Ana Drago, a ex-bloquista que se juntou à arruada do Bloco na rua Morais Soares para frisar que a esquerda está unida, pode ser uma ideia que contrarie o “desalento” de um bloco de partidos que começou a campanha de costas voltadas.
O outro objetivo é claro e também foi referido pela líder neste discurso de reta final: a mesma Catarina Martins que dizia diariamente aos jornalistas não querer comentar sondagens disparou o derradeiro apelo ao voto lembrando que “todas as sondagens colocam o Bloco praticamente empatado com a extrema-direita em terceiro lugar”. À tarde, lembrava que “do Algarve ao Minho” cada deputado que o Bloco conseguir eleger é um deputado do Chega que não entra pelas portas do Parlamento.
Catarina provoca disputa direta com Ventura. Motivos ideológicos? Sim, mas eleitorais também
Ou seja, a disputa direta com o Chega pelo terceiro lugar – embora já haja estudos de opinião que juntam a Iniciativa Liberal e a CDU a esse campeonato – está mais do que assumida e poderá determinar se o Bloco elege ou perde deputados em círculos onde é o único partido de esquerda que tem representação além do PS (Coimbra, Faro, Leiria, Santarém, Braga).
Estando essas fasquias definidas, é certo que nenhuma visita ou comício se ouve a palavra “crescer”. O Bloco está atento às sondagens e, por isso, consciente de que a acreditar nelas não tem qualquer hipótese de crescer e em princípio nem sequer de manter todos os 19 deputados que hoje elege. Assim, o princípio é conter danos e tentar reduzir as perdas ao mínimo possível, assegurando os tais objetivos: conseguir a maioria que, promete Catarina, não deixará a direita governar; sentar-se com o PS a conversar (resta saber com que força); e segurar o lugar de terceira força política, assumindo-se como adversário direto do Chega.
Catarina é central, mas não é contestada por “resultados coletivos”
A outra questão, que se colocaria em praticamente qualquer outro partido depois de um ciclo de derrotas que se verifica desde as eleições presidenciais (Marisa Matias teve um terço da votação de quatro anos antes) e autárquicas (em que o Bloco perdeu dois terços dos vereadores que tinham), é sobre a liderança. Mas neste ponto, dirigentes de várias sensibilidades garantem: a lógica do Bloco não passa por resolver os problemas cortando as cabeças dos líderes, porque os resultados são sempre “coletivos”; e a estratégia política foi sufragada pela Mesa Nacional do partido, pelo que responsabiliza quem a validou.
Mais: se Catarina Martins e o líder parlamentar, Pedro Filipe Soares, se enfrentaram na última e longínqua luta pelo poder no Bloco, em 2014, a verdade é que as duas correntes estão envolvidas na campanha e na estratégia – pelo que serão ambas responsabilizadas caso a noite de domingo corra francamente mal.
Por isso, e apesar de a campanha girar muito em torno de Catarina Martins – é pelo nome que a chamam nas feiras e arruadas, é por ela que se grita na comitiva (“Ca-ta-ri-na!”) antes de se gritar pelo partido –, as garantias que os dirigentes vão dando, pelo menos enquanto os resulados não chegam, é que, por um lado, a líder continua a ser a figura “mais consensual e unificadora” que existe no Bloco. Por outro, dizem os mais céticos, uma derrota será imputável a toda a linha oficial do partido, e não a um rosto só. Por vontade do partido, e ainda sem noção da dimensão das perdas, Catarina continua.
Na anterior e única sucessão de poder dentro do Bloco, quando Francisco Louçã saiu para dar lugar à liderança bicéfala de Catarina e Semedo, já se passava mais de um ano desde o sério rombo na bancada que se seguiu ao chumbo do PEC IV e à queda do Governo de José Sócrates (as eleições aconteceram em junho de 2011, Louçã despediu-se em agosto de 2012). Nessa altura, Louçã já era líder oficial do Bloco há sete anos, desde que se criara a figura de coordenador do partido em 2005, mas era deputado – e rosto principal do partido – há treze.
Ou seja, a sucessão foi lenta, mesmo depois de um fracasso eleitoral que funcionou como um trauma para o Bloco e com o qual é hoje possível estabelecer algum paralelismo: afinal, em ambos os casos o Bloco ajudou a ‘chumbar’ um Governo PS — fica por saber se neste caso, como em 2011, se abrirá assim a porta a um Executivo de direita.
Oposição pronta para mexer. Perder deputados é “corolário” de ciclo mau
Neste caso, a própria oposição interna, representada sobretudo pela tendência Convergência, que conquistou na última convenção 17 dos 80 lugares na Mesa Nacional, não centra a questão na líder. Mas é previsível que comecem a notar-se movimentações dos críticos se se confirmar, por um lado, que os resultados não são bons e, por outro, que o Bloco vai concentrar as suas forças nas reuniões com o PS – até porque é precisamente essa centralidade dada aos acordos com os socialistas que a corrente, que aplaudiu o chumbo do último Orçamento do Estado, critica na linha oficial da direção.
A crítica vem, aliás, já desde os tempos da geringonça — a Convergência acredita que logo no meio da legislatura que decorreu entre 2015 e 2019 o Bloco deveria ter renegociado o acordo com o PS e colocado as exigências de mudanças nas leis laborais em cima da mesa.
Desse lado, o entendimento é que não basta conseguir uma reunião com Costa para salvar a face do Bloco – “perder votos e deputados significa o corolário de um já longo ciclo de perdas” e seria a “falência de uma linha política”, argumenta fonte dos críticos.
Para já, é mesmo nisso que o Bloco se vai querer concentrar no day after – resta saber com que força e com Catarina, a cara da fase geringonça, a liderar os bloquistas nesta nova tentativa de acordo que prometeu ao longo de toda a campanha. Um “contrato de ferro” que trará soluções para o país, disse e repetiu, recebendo respostas tímidas e ambíguas da parte do PS, e que foi definido a meio da campanha como “a maior responsabilidade da história do Bloco” por Louçã. Terá sido suficiente para salvar a noite eleitoral?