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“Esta é a nossa nova história.”. O concerto no teatro DeLaMar, no passado dia 17 de abril (um domingo), tinha começado há pouco e Cristina Branco introduzia assim o seu último álbum, Branco, ao público de Amesterdão. Apresentava-se como uma velha conhecida, como uma amiga de longa data que não aparecia há algum tempo e que tinha coisas novas para contar. “Todos os anos temos no mínimo um mês [de concertos] aqui [na Holanda], é incrível. E sentimos que as pessoas estão à nossa espera. Passou um ano e cá estão elas. Sentimos isso”, disse mais tarde, já sentado num café-bar local (o Café Hoppe), o contrabaixista Bernardo Moreira, que acompanha a cantora “há uma série de anos”.
A relação de Cristina Branco com a Holanda — um país pequeno, “uma caixa de fósforos”, com menos de metade da área de Portugal — não é apenas antiga, remonta mesmo ao início da carreira da portuguesa. “Foi aqui que dei o meu primeiro concerto, foi aqui que peguei pela primeira vez num microfone e que vi monitores [de som]”, contou ela ao Observador, que a acompanhou durante todo o dia. Isso aconteceu há muitos anos, na década de 1990, antes de gravar um disco ao vivo no país (Cristina Branco in Holland) e um disco de estúdio que confirmou (e catapultou) a sua popularidade entre os holandeses: Cristina Branco canta Slauerhoff. Aí, a cantora interpretou poemas do famoso poeta holandês J. J. Slauerhoff, musicados e devidamente traduzidos do holandês para o português.
[A dureza de deixar os filhos em Portugal e a “saturação” com as redes sociais: “Nós não somos isso, somos gente, bolas!” Veja no vídeo o episódio especial gravado na Holanda: Na Estrada com… Cristina Branco]
https://www.youtube.com/watch?v=skIfH_dUlm0&t=86s
Esse álbum saiu em 2012 e foi um marco no acolhimento da cantora pelo público dos Países Baixos — garantiu-nos a própria, o agente holandês que promove há mais de uma década os seus concertos na Holanda e na Bélgica (Dirk Heeres) e o público de Amesterdão, que nesse dia encheu os 850 lugares do anfiteatro da cidade. Na plateia estava a holandesa Marion Schiffers, que a segue “desde que ouviu esse CD”, que se sente “a caminhar por Lisboa” quando ouve a portuguesa e que quis levar um autógrafo para casa.
“Esse álbum [Cristina Branco canta Slauerhoff] foi um grande sucesso, de facto. Fez tripla platina, vendeu milhares de cópias. De repente, passei a ter uma relação com o público holandês que eu nunca esperaria, o disco passou a ser quase uma Bíblia para os holandeses, aquela coisa que toda a gente tem em casa”, recordou Cristina Branco, acrescentando: “A partir daí, da Holanda para França foi um fósforo. E cinco anos depois já tinha 150 concertos.”
O disco em que cantou versos do poeta holandês — o mesmo que introduziu com grande impacto Cristina Branco ao público que mais fielmente a segue em todo o mundo — “causou imediatamente uma grande curiosidade” nos holandeses, corroborou Dirk Heeres. “Um poeta holandês ser cantado por uma cantora portuguesa… Os holandeses gostam muito de fado. Ao longo da minha vida, promovi e ainda promovo concertos da Ana Moura e da Mariza aqui na Holanda. Não temos a palavra, mas talvez também sintamos ‘saudade’. A Cristina é especial porque percebe e sabe relacionar-se com a cultura holandesa.”
O concerto no belíssimo Teatro DeLaMar, a 17 de abril, comprovaria isso. Estava marcado para as 14h30 locais (13h30 em Portugal continental) e Cristina Branco aproveitou o final da manhã para passear pela cidade com o Observador. Desta vez, ao contrário do habitual, não se deslocou para o local do concerto (um anfiteatro com duas salas para espetáculos e que funciona também como cinema) de bicicleta, o meio de transporte mais usado por quem ali vive e a que a cantora muito recorreu no período em que viveu na cidade.
“Esta é a minha rua”, disse Cristina Branco, nascida em Almeirim, ao ver o quarteirão da antiga casa de Anne Frank, junto ao canal Prinsengracht (um dos três canais principais da cidade). “Agora já só tenho um quartinho aqui, na verdade. Já não tenho uma casa. E neste momento estou no hotel com os meus músicos.” Os músicos são Bernardo Moreira (contrabaixo), Bernardo Couto (guitarra portuguesa) e Luís Figueiredo (piano) e são essenciais nos novos caminhos sonoros que a cantora começou a explorar no disco Menina (editado em 2016) e que reforçou em Branco, lançado há menos de dois meses.
[“Eu Por Engomar”, tema do novo disco de Cristina Branco:]
Entre as histórias que Cristina Branco contou ao Observador sobre a sua relação com a Holanda está um encontro com os reis holandeses, Willem-Alexander e Máxima. “A dada altura da minha carreira, eles quiseram ir a um concerto meu, foi aí que os conheci. Na altura, eles eram ainda futuros reis e tinham sido pais recentemente, tal como eu. Curiosamente, o meu filho mais velho e a filha mais velha deles têm basicamente a mesma idade, a diferença é de um mês. Os holandeses são super descontraídos e a Máxima perguntou-me se eu não queria ir lá a casa com o Martim [o seu filho] conhecer a Amalia [a filha mais velha dos atuais reis], porque achava engraçado que eles brincassem juntos. Acabei por ir um tempo depois, com o Martim.” A cantora, contudo, relativizou: “São gente como nós, somos todos iguais”.
Amsterdão, uma “espécie de segunda casa”
A temperatura era amena e inesperada naquela manhã de domingo. Os meteorologistas previam chuva para todo o dia. “Vá lá. Ontem [16 de abril] a vir para cá apanhámos uma estrada terrível. Chegámos aqui à uma da manhã”, afirmou a cantora, que atuou de véspera em Antuérpia, na Bélgica. A digressão europeia de apresentação do disco Branco, que começou em janeiro — antes mesmo do lançamento do álbum –, já passou por vários países, de Espanha a Bélgica, passando pela Dinamarca, Suécia e, claro, Portugal. Depois de atuar no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, na passada terça-feira, e em Beja, dois dias depois, Cristina Branco vai atuar esta quarta-feira, dia 23 de maio, na Sala Suggia da Casa da Música, no Porto.
Até ao verão, haverá ainda concertos na Alemanha (dois) e Áustria (um), mas a Holanda é o país em que mais tocou este ano — deu ali 12 concertos, o dobro dos que tem agendados em Portugal. O de Amesterdão foi o sexto da tour holandesa. “Podíamos fazer muitos mais, há sempre procura”, garantiu ao Observador o seu agente, Dirk Heeres. “A verdade é que nós conhecemos a Holanda de lés a lés. Passar cá um mês, num país tão pequeno, é incrível. É como se em Portugal tocássemos em Lisboa e logo a seguir tocássemos em Cascais, em Oeiras, na Parede… E está sempre cheio. Até para nós é um bocadinho estranho mas ainda bem que acontece”, apontou por sua vez o contrabaixista da banda, Bernardo Moreira.
Uma das missões desse final da manhã de 17 de abril era encontrar uma sopa para o almoço da cantora. “Esta malta [holandeses] não come sopa. Quando estás num restaurante e pedes uma sopa, vem sempre com uma natas. É uma coisa que me faz confusão”, queixou-se Cristina Branco. Esse é um dos poucos aspetos de Amesterdão a que torce o nariz. Um pouco cansada (“dormi seis horas”, confessou aos seus músicos durante o soundcheck, que fez depois do passeio matinal e antes do concerto), andou à procura de uma “lojinha” que faz boas sopas e a que costuma ir. É que Amsterdão é “uma cidade com a qual” tem “uma relação muito forte, de 20 anos” e que conhece de uma ponta à outra. “É uma espécie de segunda casa, uma cidade que posso dizer que conheço melhor do que Lisboa, por exemplo.”
Foi em plena crise da Troika em Portugal que Cristina Branco decidiu instalar-se de forma mais permanente em Amesterdão. Embora, no seu caso, “permanente” possa ser exagerado, já que passou os últimos anos constantemente em trânsito, em concertos e viagens a Portugal. “Amesterdão é uma cidade original, sem preconceitos, onde as pessoas se movimentam espontaneamente, onde não há meias-tintas. É um bocadinho como a minha música, curiosamente. Acredito que teve uma grande influência na cantora que sou. Eles [holandeses] são livres e acabei por tomar essa liberdade para mim e passá-la também para a minha música.” No final do concerto, enquanto lhe pedia um autógrafo, uma fã portuguesa (uma das poucas presentes) lembrou-lhe essa mesma relação de duas décadas. “Vi-a pela primeira vez há 19 anos, numa livraria aqui em Amesterdão…”, disse-lhe.
A mudança temporária de residência (Cristina Branco voltou recentemente para Lisboa) deveu-se a dois fatores: primeiro, a “grande quantidade de trabalho” que tinha na Holanda, depois o clima social e político que se vivia em Portugal durante a crise. “Foi tudo junto, mas quis, a determinada altura, tirar os meus [dois] filhos daquela realidade, daquele pântano em que Portugal se estava a transformar, mudando-os para uma realidade que me era familiar.”
A cantora guarda boas memórias desse tempo vivido na Holanda: “Ainda nas férias da Páscoa os meus filhos estiveram aqui. Eles percebem que há aqui uma libertação do indivíduo que eles não sentem lá. O meu filho mais velho, que tem agora 14 anos, convivia com 18 línguas diferentes só na turma dele. Aos 11 anos, já ia sozinho para a escola de bicicleta… Eles conheceram de tudo, o mundo de repente abriu-se à frente daquelas duas crianças”.
Apesar de ter muito mais concertos agendados na Holanda do que no seu país, Cristina Branco não tem qualquer ressentimento em relação a Portugal. “Ninguém tem culpa” que atue muito mais fora de portas, garantiu. “Aconteceu-me assim. Não pertenço a lado nenhum. O único sítio onde me sinto em casa é onde estão os meus filhos. Se estiverem em Portugal, é Portugal, se estiverem na Holanda, é na Holanda.”
O regresso recente a Lisboa deveu-se a um episódio menos feliz, quando a filha mais nova, de seis anos, desapareceu momentaneamente com a babysitter, um susto sem outras consequências. “Estava em Viena. De repente, o meu filho telefona-me no final de um concerto a chorar. Tu perdes… Não há chão, não há nada, o mundo acabou ali. Foi o episódio que me fez regressar a Portugal. Sou cantora e vivo isto tudo por dentro, mas acima de tudo sou mãe. Mas foi maravilhoso viver aqui. O meu filho diz sempre que logo que possa vem para cá.”
O outro lado: “Não é fácil ser mulher quando se está determinada a ter uma carreira”
O concerto de Amesterdão era um dos 32 espetáculos que Cristina Branco tinha agendados até julho. Os espetáculos tornaram-se mais regulares no final de fevereiro e daí para cá não foram muitos os dias (menos ainda as semanas) de folga. “As pessoas não imaginam o que é a vida na estrada”, confessou a cantora. “Entra-se naquelas catacumbas, nos bakcstages dos teatros e deixamos de ter noção do tempo. Entra-se num limbo. Está tudo no escuro e deixamos de ter noção do que está a acontecer lá fora. Acordamos na manhã seguinte e de repente olhamos para o teto e não sabemos onde é que estamos. Não tem nada de glamouroso. Tem dureza, ausência.”
A ausência é a da família. “Todos nós temos filhos. Eu tenho dois, o Luís [pianista] tem um, os Bernardos [contrabaixista e guitarrista] têm três cada um. Há aqui muita criançada, muita família. Estar longe tanto tempo é muito desgastante. É preciso uma união muito grande dentro de nós para as coisas correrem bem.” E explicar aos mais pequenos o motivo das viagens constantes: “O meu filho pensava que era comissária de bordo quando era mais pequeno”, riu-se Cristina Branco. “Perguntava-me: ‘Mamã, onde estás?’. Estava no Japão, na Holanda… Ele achava que trabalhava num avião.”
“Por muito que tentemos adocicar as coisas, o papel da mãe é diferente”, prosseguiu a autora de Branco. “A minha filha mais nova tem nove anos e sofre imenso com a minha ausência, é muito difícil. Para ela e para mim. Tive de ser absolutamente sincera e adulta com uma criança. Ela achava que ia embora porque tinha de ganhar dinheiro e tive de lhe explicar que faço isto porque gosto profundamente do que faço, que nunca poderia ser a mesma mãe para ela se não o fizesse. Acho que isso apaziguou um pouco a relação que ela tem com o meu trabalho. Mas é muito duro.”
Conciliar a carreira e a família nunca é fácil, mais ainda quando a carreira implica longos períodos fora de casa. Um dos momentos que Cristina Branco recorda como tendo sido mais complicado foi quando anunciou que queria ser mãe pela segunda vez. “Dou a notícia à minha editora e ao meu agente e ficou tudo em pânico”, confidenciou. “Estavam a pensar organizar uma digressão da dimensão desta da Holanda. Eram 12 datas, para o início do ano seguinte, 2009. A minha filha foi teimosa e nasceu exatamente no mês em que eles queriam fazer a digressão. Foi difícil. Ela com duas semanas estava sentada no Hotel do Chiado ao meu lado com jornalistas por perto, porque tinha de promover um disco [Kronos].” De seguida, Cristina Branco foi mesmo em digressão — com uma filha de um mês e um filho de cinco anos. “Não é fácil ser mulher quando se está determinada a ter uma carreira. E isto provavelmente nem ter a ver com a música mas com ter uma vida profissional ativa. Imagino que aconteça o mesmo com uma advogada ou com uma empresária.”
“Eles não tocam para mim, tocam comigo”
Desde que são gravadas até ao momento em que são apresentadas ao vivo, as canções de Cristina Branco passam por um processo de transformação, a que Luís Figueiredo chama “procura”. O pianista, que se juntou à banda para as gravações de Menina (2016), explicou ao Observador que “houve canções” do novo álbum “que tiveram três ou quatro propostas diferentes de arranjos” até se chegar “finalmente ao formato em que foram gravadas”. “E mesmo assim houve algumas que gravámos e que depois alterámos para o espetáculo porque continuámos a pensar nelas, a procurar soluções melhores ou mais adequadas a esta formação ou à voz da Cristina…”, acrescentou.
Se os músicos podem reformular as canções é porque tiveram — e têm — um papel importante nos novos rumos musicais da cantora, que nos últimos anos colocou o fado junto do jazz, num formato menos tradicional. A importância dos músicos que a acompanham é tanta que Cristina Branco entregou-lhes a produção musical do disco que andam a apresentar na Europa. Na produção executiva de Branco, coordenando o rumo geral dos acontecimentos e selecionando os compositores convidados, esteve Pedro Trigueiro.
Serem os músicos que acompanham um cantor a produzir-lhe o disco “é uma coisa que acontece pouco mas que, se calhar, devia acontecer mais vezes”, apontou o guitarrista da banda, Bernardo Couto. “Pelo menos em teoria, não há mais ninguém que conheça tão bem o percurso, a sonoridade e a estética de uma determinado cantora do que a banda que toca com ela na estrada.”
A boa relação entre os quatro foi percetível no soundcheck que antecedeu o concerto de Amesterdão. Depois de testarem uma versão de “Alvorada”, que apresentaram no Teatro DeLaMar, Bernardo Moreira continuou a tocar, começando a cantar repetidamente (e repentinamente) “A Love Supreme”. “E um gajo passar-se?”, perguntou, a rir. O técnico de som (holandês) perguntou-lhe se queria um microfone, mas ele dizia que não precisava. “I’m an opera kind of guy” (em português, “sou um tipo da ópera”). “Isto é mais do que suficiente”, rematou entre risos Cristina Branco. Durante o soundcheck, os músicos ensaiaram também a entrada em palco, um momento inaugural (repetido em vários concertos) em que batem com os pés no chão do palco de forma sincronizada, gravando o som e deixando-o depois repercutir-se nas colunas enquanto se encaminham para os seus lugares. Bernardo Couto fugia ao guião oficial e começava então a saltitar como se estivesse a dançar o rancho. “É sempre a mesma m… contigo!” “Não se pode dizer m…, está a gravar!” “Cuidado com isso pá”, ouvia-se dos restantes. Acabou tudo em risos.
“A relação entre nós não podia ser melhor. Somos todos super diferentes e se calhar é por isso que funcionamos muito bem. O Bernardo Moreira é notoriamente a nossa força motriz, é o mais positivo de todos. Eu se calhar assumo o lado mais negativo e pessimista. O Luís [Figuiredo] é o mais parecido comigo nisso, tem de ser o Bernardo a puxar por nós”, apontou a cantora. “Eles são grandes músicos. Atrás de mim tenho pessoas que não só estão a tocar de forma brilhante como vestem a camisola, de uma forma que muito dificilmente se consegue encontrar. Eles não tocam para mim, tocam comigo. Percebem cada vez que respiro, aquilo cai tudo no sítio em que tem de cair, com a energia e a dinâmica [ideais]. Isso não tem preço.”
A Menina e o Branco
É inegável que o disco anterior de Cristina Branco, Menina (2016), foi um disco de mudança — ou, como lhe chama a cantora, de “transição”. Branco, o novo trabalho, reforça a procura de caminhos diferentes da parte de uma cantora que começou no fado mas que nunca dedicou a sua obra ao repertório tradicional. “O meu primeiro disco tem Sérgio Godinho e Zeca Afonso… E fui fazendo sempre outras coisas. Em todos os meus discos, para aí 80% é repertório original. Passa pelo fado, tem a tradição, sim, mas está sempre à procura de outras coisas”, afirmou ao Observador.
Pouco antes do disco de 2016, Cristina Branco escreveu um texto “quase em guerra” consigo, uma coisa “de perceber quem és tu”. Foi este que prenunciou a guinada musical que a faria procurar nos últimos anos novos compositores (de Luís Severo a Jorge Cruz, passando por Kalaf Epalanga, Sérgio Godinho, Mário Laginha, Filipe Sambado, Beatriz Pessoa, as duplas Filho da Mãe e André Henriques e ainda Nuno Prata e Peixe). Sobre o texto, Cristina Branco revelou ao Observador: “Escrevi-o a propósito do que se estava a passar comigo. Foi apenas um momento de reflexão, um momento em que te apercebes que o que estás a fazer soa a requentado. Quando a tua carreira está em velocidade cruzeiro, é como se estivesses num comboio e visses a paisagem passar, mas parece que estás parado no mesmo sítio. Estava tudo a acontecer lá fora e estava no mesmo sítio. E não era nada disso que queria para mim. Foi preciso sair do comboio, sair na paragem, e recomeçar tudo outra vez”.
Os novos compositores que Cristina Branco escolheu para cantar são sobretudo “jovens, incrivelmente talentosos”, que “escrevem bem em português e que tratam bem a língua e cultura portuguesas”. “Costumo dizer que são observadores da realidade. Escrevem sobre o quotidiano como se escrever fosse uma coisa simples. É poesia, mas mais realista e concreta [do que os poemas de fado mais tradicionais], que não adocica as coisas, que fala da verdade sem-meias tintas.”
Luís Figueiredo, recrutado em 2016, foi o pianista que veio ajudar a trabalhar a nova sonoridade. “Entrei numa fase um bocadinho de reformulação”, recordou Luís. “Houve uma série de mudanças que se fizeram nessa altura. Quando entrei estávamos em vésperas de gravar o Menina e havia essa ideia de que era preciso mudar, encontrar um caminho novo.” A entrada de Luís tornou o projeto ainda mais estimulante: “Foi um período em que se estava à procura. Não vim integrar esta banda numa altura em que estava tudo definido e vinha cumprir o lugar de outra pessoa que cá estava. Entrei numa altura em que estávamos todos, coletivamente, à procura de um caminho que pudesse trazer alguma juventude e frescura” ao repertório da cantora. “Mas o mérito é meu e do Couto na maneira como o recebemos”, acrescentou logo, para risada geral, o contrabaixista Bernardo Moreira.
[“Este Corpo”, tema do novo disco de Cristina Branco:]
O objetivo da cantora, agora, é cantar o país e o mundo como os vê, sem embelezar. Isto porque “a música e as palavras que vão para o público têm de ter a capacidade de ser um retrato de uma sociedade a determinado momento. Já não se trata de palavras bonitinhas sobre o amor, trata-se de falar das coisas como elas são”. A vontade de Cristina Branco em cantar poemas mais realistas e atuais deve-se, também, à forma como vê o mundo de hoje, à perceção de que “há uma solidão terrível atrás de tanta manipulação e monopolização de fotografias nas redes sociais. Nós não somos isso, somos pessoas maquilhagem, sem véus. Não quero que as pessoas entendam deste disco que há um lado glamouroso circundante. Não há, é falar da realidade como se fosse uma fotografia musical de um determinado momento da história”.
Lágrimas em Amesterdão
Segundo a cantora, as novas canções estão a ser bem recebidas. Pelo menos em Amesterdão foi isso que aconteceu. Mas talvez os aplausos do público se devam à química da banda, à qualidade das novas canções e à emoção que os quatro tentam transpor para o público. Tudo isto em simultâneo. Esta última é passada através da música, mas também da palavra: no início do espetáculo de Amesterdão, falando das canções novas, Cristina Branco explicava-as assim aos fãs holandeses: “Vai haver um desfile de pessoas a passar entre nós e vocês”. Pessoas sem género, como dizia antes do concerto em conversa com o Observador. Apenas pessoas. “A neurótica, a nervosa, a divorciada”. Pessoas. “Porque isto é sobre [todos] nós. Sobre a humanidade. Sejam bem-vindos”.
O alinhamento desse espetáculo na Holanda centrou-se sobretudo no novo disco Branco, mas a cantora também revisitou temas anteriores, como “Alvorada” (com um arranjo muito diferente e com um andamento muito mais rápido do que o da versão de estúdio), “Não Há Só Tangos em Paris”, “Boatos”, “Saber Aqui Estar” e os fados “Água e Mel” e “Os Teus Olhos São Dois Círios”, tornados célebres por Amália Rodrigues.
Destes temas mais antigos, o que mais se destacou foi “Quando Julgas que Me Amas”. Trata-se, explicou a cantora ao público holandês, de “um texto de António Lobo Antunes, musicado por Mário Laginha”, que Cristina Branco cantou no álbum Não Há Só Tangos em Paris, de 2011. Em Amesterdão, cantou-o com grande emoção e com um arranjo menos afadistado mas ainda mais bem conseguido do que a versão de estúdio. No fim, não conseguiu esconder as lágrimas.
“Desculpem, acontece”, justificou-se. “Ouve, caíram-me as lágrimas”, dizia à banda, já atrás das cortinas do palco, antes de um regresso para o encore que finalizaria o espetáculo com chave de ouro. No Porto, na próxima quarta-feira (23), o desejo é o de mostrar exatamente o que apresentou na Holanda. “Sem meias-tintas.”
O Observador viajou até Amesterdão a convite da Universal Music Portugal/Arruada