(Esta reportagem foi publicada pela primeira vez a 19 de dezembro de 2021, depois da detenção de João Rendeiro. É republicada agora depois da notícia da morte do antigo banqueiro na prisão sul-africana onde aguardava a decisão do processo de extradição.)
Só passados uns dias, Rachel e o marido perceberam o que os arrancou do sono, na madrugada de sábado, 11 de dezembro. “Havia carros da polícia por todo o lado! Fecharam as ruas todas aqui à volta, andavam para a frente e para trás, eram imensos. Nunca tínhamos assistido a nada assim por aqui”, conta ao Observador à porta de sua casa, a pouquíssimos metros da rampa que dá acesso ao portão do Forest Manor Guest House, o local onde João Rendeiro foi detido, no início de dezembro de 2021, pondo fim a uma fuga às autoridades portuguesas que durou três meses. “Eu via-os passar e só me perguntava: para onde é que eles vão?!” Da porta da sua casa, no exclusivo bairro de La Lucia, em Durban, África do Sul, Rachel (nome fictício) tem vista desimpedida para a entrada da mansão onde o antigo banqueiro esteve escondido durante algumas semanas. Mas a ação acontecia noutro ponto.
Naquela manhã, enquanto a operação policial decorria, a mulher ainda teve tempo de trocar de roupa, pegar no carro e sair para umas compras de última hora, antes de acabar de preparar as malas para uns dias de férias. Foi essa breve viagem que lhe permitiu ver mais de perto tudo aquilo que estava a acontecer: carros da polícia estrategicamente espalhados por várias ruas do bairro, estradas fechadas e muitos, mesmo muitos agentes na rua. Não sabe ao certo quantos eram, não os contou. Mas os moradores daquele bairro — pouco acostumados a grandes agitações — não ficaram indiferentes à forma como a polícia de Durban se mobilizou em peso para cumprir o mandado da Interpol e garantir que João Rendeiro não voltava a escapar.
Além de um homem derrotado, a fotografia que fixou o momento da detenção do antigo presidente do BPP mostra que Rendeiro foi apanhado desprevenido, ainda de pijama cinzento quando a polícia chegou ao primeiro andar e entrou pelo quarto em que estava instalado. Se, minutos antes, lhe tivesse ocorrido espreitar pela janela — com vista para a Seafern Crest, a rua nas traseiras da mansão onde se isolou nas últimas semanas —, o antigo banqueiro poderia ter assistido ao desenrolar da operação que pôs fim à sua fuga e que culminou com a sua detenção. “Eles não pararam os carros na parte da frente da vivenda. Num primeiro momento, foram diretos às traseiras da casa”, recorda Rachel. Depois de entrar na guest house, a polícia sul-africana ainda deu tempo a Rendeiro para que fizesse a barba e trocasse de roupa antes de ser conduzido à esquadra de Durban North. Rachel já não chegou a vê-lo naquela manhã.
Empresários, banqueiros e os drug lords
Aquele bairro da zona costeira de La Lucia, entre Glenashley Beach e Umhlanga Beach, é um sítio pacato. Em cada um das entradas, de um lado da estrada, uma placa das empresas de segurança que operam naquela zona — a Marshall Security e a Blue — deixa claro que entrámos numa realidade distinta da de outros pontos de Durban. Dali para a frente, garante o sinal, estamos numa “zona segura”.
O bairro da fortaleza de João Rendeiro fica a menos de 10 minutos do centro da cidade. A distância é curta, mas o contraste entre aquele oásis sul-africano e algumas zonas do coração de Durban é absoluto. Na zona de Greyville, no centro da cidade, um prédio de três andares em que o teto já há muito deixou de existir serve de “casa” a dezenas de sul-africanos. Há tendas de campismo amontoadas no interior das quatro paredes e um monte de lixo empilhado faz de segunda barreira dos milhares de carros e minivans que passam na Julius Nyerere Street a cada instante.
No bairro de Rendeiro, não existe trânsito, não há lixo no chão e não há mercados de rua ao longo da estrada. No lado oposto ao sinal que anuncia a chegada a uma “zona segura”, na entrada para o bairro de imponentes mansões, uma pequena barraca de madeira serve de proteção a um elemento da empresa segurança. Mais à frente, um poste com duas câmaras de videovigilância no topo. E a cada 20, 30 ou 50 metros, mais um poste e mais duas ou três câmaras apontadas em várias direções.
Paramos o carro na berma da estrada principal e não passam dois minutos sem que um jipe da polícia se aproxime: “Está tudo bem?”, questiona o agente que segue ao lado do condutor. Em curtos intervalos de tempo, outros jipes da polícia e de cada uma das empresas de segurança vão passando por ali.
As poucas pessoas que ocasionalmente se veem na rua, mesmo ao fim de semana, são atletas que aproveitam as horas de menos calor para uma corrida matinal. A Forest Manor Guest House, o último esconderijo de João Rendeiro, fica numa faixa de terreno mais encostada à linha de costa. Saindo pelas traseiras dessa mansão, e seguindo pela esquerda, são dois minutos de caminho até que se alcance o areal. Por ali, são poucos os sinais de presença humana: umas pegadas de algum passeio matinal e, a umas consideráveis centenas de metros de distância para cada um dos lados da praia, velas de kitesurf no ar. Fora isso, não se vê ninguém.
“As pessoas não têm por hábito ir à praia, aqui. Podem ir lá dar um passeio a uma sexta-feira ou a um sábado, mas não passam lá o dia”, explica Vusi Buthelezi, enquanto dá indicações para que Asha, a sua pastor-alemão, se sente ao seu lado. “É melhor não se chegarem mais para cá, ela não gosta de quando as pessoas se aproximam demasiado”, alerta o segurança, que interrompe uma ronda a pé pelo bairro para falar com o Observador. O funcionário da Marshall Security é apanhado de surpresa com as perguntas sobre a detenção de um cidadão português naquele bairro. “Um banqueiro? Que fugiu das autoridades em Portugal?” Desconhece. Naquela semana, garante, o assunto não foi tema de conversa entre os colegas da empresa.
De resto, operações como a que tinha acontecido, por ali, são acontecimento pontual. Algo raro, arrisca mesmo dizer. A presença constante de seguranças e polícia vai mantendo perigos maiores à distância. Exceto quando o crime já mora no bairro. “Aqui, há famílias de perfil [social] elevado. Há empresários, há gente da área das finanças… e também senhores de droga”, conta Vusi Buthelezi, já com a cadela deitada aos pés. “Não é habitual a polícia vir aqui. Mas, quando vem, normalmente o que vemos são elementos da investigação criminal que têm em mãos um caso de tráfico de droga. E, aí, entram numa casa e fazem o trabalho deles.”
“Ele é um madala, vai ficar bem”
Vusi não ouviu falar de Rendeiro, Dorothy Griffits também não. O Observador encontra a agente imobiliária no momento em que Dorothy se esforça por fixar, no relvado de uma vivenda da rua principal do bairro, uma placa que anuncia “casa aberta” para aquele dia. Aquela tarde de domingo, espera, vai ser mais agitada. Seriam boas notícias — o mercado de compra e venda de casas não está propriamente animado por estes dias. “Está muito estagnado, nos dois últimos anos esteve mesmo muito parado”, lamenta-se a agente imobiliária. Culpa da pandemia.
Sobre as mansões-fortaleza daquela zona da cidade, Dorothy confirma o que se torna evidente à primeira vista: estamos num “bairro muito up scale” da cidade, com “pessoas que construíram os seus negócios, que fizeram muito dinheiro” e que se foram instalando por ali, linha de rua após linha de rua, a partir do extenso areal virado para o Índico. Sobre o facto de Rendeiro ter procurado esconderijo ali, a agente imobiliária arrisca dizer que “talvez ele tenha pensado que, num bairro de alta classe, conseguiria passar despercebido e escapar aos radares” da polícia. Não conseguiu.
A notícia da detenção de João Rendeiro abriu jornais e motivou uma avalanche de notícias em Portugal. Na África do Sul, os principais canais de televisão encheram longos minutos de emissão, logo no sábado, com o rosto do antigo homem-forte do BPP e a história de que tinha desviado dinheiro da instituição que liderava para, depois, se esconder no país. Logo no sábado da detenção, Rendeiro foi levado para a esquadra de Durban North e ficou detido nessas instalações até à segunda-feira seguinte. Depois, o juiz do Tribunal de Verulam encaminhou-o para a prisão de Westville — Rendeiro esperava sair em liberdade, sob caução, enquanto esperava pelo desfecho do processo de extradição. O juiz entendeu que o risco de fuga era demasiado elevado.
A defesa do ex-banqueiro disse de imediato que iria recorrer dessa decisão. Mas, até lá, Rendeiro teria mesmo de continuar detido na segunda maior prisão da África do Sul. Uma prisão concebida para seis mil reclusos mas que tem uma população que é mais do dobro, com 14 mil pessoas a cumprir pena ou a aguardar pela conclusão dos respetivos desfechos.
A defesa alegou inclusivamente que Rendeiro corria perigo de vida, detalhando que foi alvo de ameaças logo na primeira noite.
À porta de Westville, cerca de uma semana depois da detenção do banqueiro português, familiares de presos esperavam por um autocarro que os levasse de volta à cidade. Rajim (nome fictício) estava entre eles. Tinha acabado de voltar do interior da prisão, tentou visitar o irmão mas só quando ali chegou lhe foi dito que a visita não ia acontecer porque o irmão estava de quarentena. E como é lá dentro? “Eles têm condições muito duras, vivem sob regras muito apertadas.” E não diz muito mais. Há receio de dar a cara ou ser voz de qualquer informação que possa comprometer a segurança do familiar que cumpre pena numa das mais perigosos prisões do país. Ao Observador, deixou apenas a convicção de que a idade poderia jogar a favor de João Rendeiro. “Ele é um madala [idoso], vai ficar bem.”