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Uma fotografia de Suzanne Lenglen (1899-1938) por volta de 1920.

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Uma fotografia de Suzanne Lenglen (1899-1938) por volta de 1920.

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Um novo look, um novo estilo e conhaque para os nervos em pleno court: a lenda da GOAT Suzanne Lenglen

Primeira número um do mundo, La Divine foi seis vezes campeã em Wimbledon, e há cem anos passou por Cascais. Revolucionária no ténis e na moda, chocou os courts e mudou para sempre o ténis.

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Sabia fazer uma entrada em cena, passou à história como temperamental, não se livrou da fama de fingir estar doente para escapar a um embate (o único que perdeu na sua curta carreira), fumava furiosamente e domava os nervos de forma pouco ortodoxa. Naquele dia, em Wimbledon, oito mil espectadores, incluindo George V e a rainha Mary, assistiram ao momento em que Charles Lenglen, sensível aos sinais de cansaço da filha, atirou-lhe um frasco em plena partida. Suzanne abriu-o e bebeu aquilo que mais tarde se veio a saber ser conhaque. Para a diva que apreciava um copo de vinho antes dos jogos, bebericar nas pausas entre sets tornou-se comum – quando tal foi proibido, passou a mergulhar cubos de açúcar em conhaque, que depois chupava ou dissolvia em água.

Não foi a única controvérsia que marcou o encontro da challenger de apenas 20 anos frente à veterana britânica Dorothea Lambert Chambers, de 40, sete vezes vencedora em Wimbledon. Nesse ano de 1919, no regressado torneio depois do hiato imposto pela I Guerra Mundial, a jogadora francesa estreava-se com a primeira de seis vitórias naquele destino – um triunfo arrancado com os parciais de 10-8, 4-6, 9-7, tornando-se a primeira não falante de inglês a conquistar o título. Pelo caminho, veria o pai de novo a contrariar as regras: agora num proibido momento de coaching ao fazer um sinal com o seu guarda-chuva.

Mas por essa altura, a passagem da jovem já tivera o efeito de intempérie, fruto de um visual tão revolucionário quanto o seu estilo de jogo. O vestido de algodão revelava os antebraços, o tamanho da saia (12 centímetros mais curta que o habitual) expunha os joelhos, e o seu serviço marcava a diferença face a outras figuras femininas em campo, trazendo o ímpeto e agressividade masculinas para dentro do court, onde podia surgir de batom encarnado, praguejava e batia com a raqueta, tudo entre maior dureza e velocidade. “Indecente”, sentenciava a imprensa inglesa por esses dias, desconcertada com a mulher que pouco a pouco iria mudar a face do bem comportado ténis feminino.

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Em Wimbledon, na sua grande estreia em 1919.

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Nas páginas da revista Vogue, já em 1926, haveria de surgir com pose cândida, intemporal colar de pérolas e exibindo um look de sportwear de Jean Patou, o criador responsável por esse fraturante figurino em campo em 1921, com quem manteria parceria. Para a bíblia da Moda, não havia dúvidas. Lenglen afirmava-se nestes efervescentes anos como um paradigma de estilo. A campeã “usa um traje de ténis que é extraordinariamente chique na liberdade, na adequação e na excelência de suas linhas simples.” Fora dos courts, o mesmo aprumo libertador, capaz de chocar os mais conservadores. Abandonou os espartilhos, preferiu as mangas curtas ou cavas, fatos com assinatura de designer, e protagonizou exuberantes sessões de fotos junto à rede com magníficos casacos de peles. Em plena ação, o uniforme por excelência consistia num vestido plissado crepe de uma só peça, os “sapatos Lenglen”, de pele branca, sola de borracha e fabrico britânico, e ainda uma fita colorida para imobilizar o cabelo (com penteado bob) – era seu costume, relatou o The New York Times em 1921, usar um laranja para a sua primeira aparição, e carmesim para a sua segunda.

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O soldado, bom vivant e inovador empresário Patou popularizou a moda desportiva, tendência simples, prática e jovem que descomplicou o estilo nas ruas, ainda a décadas de distância do vencedor conceito de athleisure, que outros nomes da Moda seguiriam. Foi o tempo dos figurinos desportivos de Coco Chanel para os atores de “Comboio Azul”, dos “chapéus de motorista” de Sonia Delaunay, ou dos fatos para turismo aéreo de Madeleine Vionnet, para não falar da “Marinière” de Jeanne Lanvin. Não por acaso, a cosmética conhecia um expressivo boom (dos sabonetes Roger & Gallet aos batons Bourjois).

Quanto a Lenglen, distribuiu lições de glamour e elegância muito antes das celebridades atuais disputarem um lugar no Instagram do torneio, e consolidou-se como epítome absoluto desses roaring twenties, ou années folles, com direito a motorista e um comboio particular. Um sex appeal ancorado em igual medida na emancipação e desordem.

“Papá Charles” e as origens da menina prodígio

Suzanne Rachel Flore Lenglen nasceu a 24 de maio de 1899, no 16.º bairro de Paris, filha de Anaïs e Charles Lenglen, figura decisiva na sua incursão na modalidade. Outrora farmacêutico que enriqueceu ao herdar uma empresa de autocarros puxados por cavalos do pai, o patriarca transferiu a família para o norte de França, em Marest-sur-Matz, perto de Compiègne. Os invernos eram passados na riviera francesa, em cujo circuito de ténis (encetado em 1890) chegou a competir, no primeiro semestre do ano. É no casino de Nice que nasceu a lenda urbana que acompanharia a mais tarde conhecida como “Notre Suzanne”, símbolo maior de uma nação ferida pela brutalidade da Grande Guerra. “A minha filha será campeã de França?”, terá perguntado Charles a quem lia a sina. “Melhor do que isso”, responderam-lhe. “Melhor do que isso”. O seu processo de ascensão “virtualmente fabricou o conceito de atleta celebridade”, de acordo com Larry Englemann, autor de The Goddess and the American Girl: The Story of Suzanne Lenglen and Helen Wills (1988).

Fã de outras modalidades quando criança, incluindo o jogo do diabolo, Suzanne iniciou-se no ténis mal completou 11 anos, a fim de combater a asma. O pai comprara-lhe uma raqueta em junho de 1910, numa loja de brinquedos, e improvisou um campo no jardim de casa. Em um mês, o traquejo de Lenglen convencia Charles a investir numa raqueta adequada ao treino. Três meses depois, a ainda aspirante seguia para Paris, para mostrar o que valia num piso de areia, em casa de um amigo do pai, que a incentivou a entrar num torneio local em Chantilly, já de alto nível. Terminou em segundo lugar, classificação que aumentou ainda mais o empenho paterno. Charles estudou os principais jogadores masculinos da época e aplicou as táticas mais agressivas de construção de pontos ao ensino da filha.

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Suzanne entre os pais, por esta altura já com seis títulos de Wimbledon no curriculum.

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Quando no final do outono a família regressou para a sua temporada em Nice, conseguiu que Suzanne passasse a jogar duas vezes por semana no Nice Lawn Tennis Club, uma estreia no acesso de crianças aos campos de jogo e na prática com adultos masculinos, incluindo o professor do clube, Joseph Negro. Quanto a Charles, mantinha a postura que haveria de moldar a conduta da futura estrela. “O pai de Suzanne era o seu professor, treinador, conselheiro, coach, agente, gerente, protetor, mentor e, às vezes, até mesmo o seu algoz”, descreve o biógrafo de Lenglen, comparando o perfil nervoso da gaulesa com a aparente leveza e descontração de “Little Miss Poker face”, a americana Hellen Wills, outro colosso da era, que o destino haveria de colocar no seu caminho.o

[Nos primórdios dos tutoriais, um momento em vídeo sobre o jogo de Suzanne Lenglen]

Disputou o seu primeiro torneio com adultos em 1913, aos 13 anos. Anthony Wilding, jogador neozelandês quatro vezes vencedor da Taça Davis, pede-lhe que seja a sua parceira num jogo de pares misto. Lenglen cultivaria já o peculiar temperamento que haveria de manter carreira fora. Gostava de saltitar e deslizar pelo court, recusava-se a jogar se não gostasse do seu aspeto e costumava chorar, mesmo que estivesse a vencer – bastava não atingir as suas próprias exigências. Os métodos duros e rigorosos, e as críticas severas do pai ao mínimo erro, eram apenas suavizadas quando Suzanne se encontrava doente, um expediente, especula-se, a que a tenista terá recorrido nos anos seguintes para se sentir mais confortável.

Aos 15 anos, vencia o Campeonato Mundial de piso duro de 1914, em Paris – em Roland Garros, no entanto, perderia na final para a compatriota Marguerite Broquedis. Quando a Primeira Guerra Mundial estalou, o ténis competitivo ficou suspenso nos quatro anos seguintes. Lenglen continuou os treinos no sul do país, esperando pela sua hora.

O ouro Olímpico, a tosse da única derrota (em 1921) e o reencontro com Molla Mallory

Numa era em que os tenistas chegavam de vapor e as raquetas eram de madeira vale a pena colocar em perspetiva a noção de GOAT (Greatest Of All Time): em cerca de duas décadas, Serena Williams, que concorre neste campeonato de figuras lendárias, tem um total de 39 títulos principais: 23 em singulares, 14 em pares femininos. Segundo o historiador de ténis britânico Alan Little, citado pela Sports Ilustrated, a marca de Lenglen enquanto atleta amadora fixa-se nos 341-7, uma esmagadora percentagem de 98% vitórias, um domínio extensível às provas de pares.

Em apenas 12 anos, Lenglen ganhou 250 campeonatos, incluindo 83 em singulares, 74 campeonatos e 93 títulos de pares mistos, de acordo com o International Tennis Hall of Fame. Detinha uma sequência de 116 vitórias, manteve-se invicta em 1919 e 1920, e depois de 1922 a 1926. “Eu limito-me a atirar a dignidade ao vento e não penso em nada além do jogo”, chegou a dizer Suzanne em entrevista, negando que tivesse um método especial de jogo. “Tento acertar a bola com toda a minha força e mandá-la para onde meu adversário não está.” Mas segundo Englemann, autor de “The Goddess & the American Girl: The Story of Suzanne Lenglen and Helen Wills”, citado pela CNN, Lenglen “revolucionou o ténis feminino, mostrando que as mulheres podem ser tão duras e tão agressivas e tão capazes quanto os homens no court de ténis”, assemelhando-se a uma “Joana d’Arc moderna”.

Molla Mallory e Suzanne Lenglen defrontaram-se em Forrest Wills, Nova Iorque. No ano seguinte, em 1922, reencontraram-se em Wimbledon para o ajuste de contas.

A RFI descreveu em tempos o “allure de uma bailarina em anfetaminas” cujos movimentos passavam à posteridade num breve documentário da Pathé, que destapou o pano sobre algumas das suas técnicas, da poderosa ação no pulso às pancadas contra uma parede para aumentar sua velocidade. Gestos e ações que a levaram ao topo também no plano olímpico. Entre 16 e 24 de agosto de 1920, no terreno relvado do Beerschot Tennis Club, em Kontich, nos arredores de Antuérpia, Suzanne Lenglen, então com 21 anos, despachou as suas três primeiras adversárias em sets diretos, sem jogos perdidos: a belga Marie Storms na primeira ronda, a britânica Winifred McNair na segunda e a sueca Lily Strömberg-von Essen nos quartos-de-final. Acabaria por ceder apenas um jogo para outra sueca, Sigrid Fick, na semifinal (6-0, 6-1). No derradeiro embate,”La Divine” enfrentou a britânica Dorothy Holman e arrebatou o ouro.

Entre 1919 e 1926, a atleta que só conhecia o sabor da vitória perdeu uma única partida em singulares. O episódio aconteceu em Forrest Wills, Nova Iorque, quando em 1921, na segunda ronda, defrontou a pentacampeã Anna Margrethe “Molla” Bjurstedt Mallory. A deslocação aos EUA decorria durante a Lei Seca, mais uma contrariedade para Lenglen, que chegou a ameaçar sair do país se não lhe fosse providenciado vinho antes dos jogos (algo que acabaria por lhe ser concedido). Deparando-se com uma agressividade de Mallory em tudo semelhante à sua, Lenglen começou a ficar para trás e a tossir. Depois de perder o primeiro set por 2-6 e perder por 40 a 0 quando servia para o primeiro jogo do segundo set, a francesa começou a chorar e informou aos árbitros que estava doente e não conseguiria terminar a partida. As reações não foram brandas. Do público choveram apupos e a imprensa acusou-a de fingir estar doente para escapar à humilhação de uma previsível derrota.

Suzanne e Albert de Joannis no polémico momento em que a tenista abandona o court a meio da partida contra Molla Mallory, em 1921

A Federação Francesa de Ténis (FTF) inocentou Lenglen e validou o parecer médico de que a atleta estava de facto doente. No entanto, Albert de Joannis, vice-presidente da FTF que acompanhou Lenglen durante a sua viagem aos Estados Unidos, abandonou o cargo em protesto contra a decisão da Federação. Segundo o responsável, Lenglen estava “perfeitamente em forma” durante a partida e “foi derrotada por uma jogadora que naquela data mostrou uma melhor prestação”.

No ano seguinte, agora no conforto de Wimbledon, Suzanne Lenglen ensaiou a redenção possível ao derrotar Molla Mallory por 6-2 e 6-0, em apenas 26 minutos, a final de Grand Slam mais curta já registada. Para a história fica também a troca de galhardetes no rescaldo do encontro. “Vê, senhora Mallory, mostrei-lhe hoje o que lhe poderia ter feito o ano passado em Nova Iorque”, atacou Lenglen. “Mademoiselle Lenglen, o que fez hoje comigo foi o mesmo que lhe fiz o ano passado em Nova Iorque. Venceu-me“, rebateu a americana de origem norueguesa.

Verdade ou simples mito urbano, o estrelato alcançado por La Divine era tamanho que se acredita que terá contribuído em muito para a atração de público em massa e consequente mudança do local onde o torneio decorre, o que se verificou em 1922.

VIP em Cascais, desenhada por Almada, e o ano mais rico em títulos: 1923

Com uma imagem algures entre “uma prima donna e uma prostituta de rua”, como descreveria o também tenista Bill Tilden, seu contemporâneo, alguns hábitos de Lenglen não sobreviveram até hoje, como a cara excessivamente carregada de maquilhagem ou as noitadas em vésperas de desafios, mas o carisma de vedeta não ficava por mãos alheias. De resto, os anos 20 do século XX corresponderam à década francesa de Wimbledon por excelência, com Suzanne Lenglen omnipotente na primeira metade, seguida pelos “Quatro Mosqueteiros” (Jean Borotra, Henri Cochet, Rene Lacoste e o especialista em pares Jacques Brugnon) que conquistaram todos os campeonatos de singulares masculinos de 1924 a 1929. Borotra venceu em 1924 e 1926, Lacoste em 1925 e 1928 e Cochet em 1927 e 1929.

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Com outra lenda, René Lacoste (1904-1996), ou "O Crocodilo", a prepararem-se para um jogo de treino no All England Lawn Tennis Club, em Wimbledon.

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Autêntica cabeça de cartaz em qualquer demonstração do género, não é por acaso que por esses anos se movem esforços para poder ver jogar a ilustre Suzanne, estendendo-se o interesse a Portugal, nomeadamente através do Cascais Sporting Club, que organizou torneios internacionais regulares entre 1902 e 1973. Se os jogadores ingleses garantiram triunfo até 1907, com João de Sousa Macedo a impor um travão a essa predominância, a partir de 1921 e 1922 o grande destaque ia para Borotra, que aqui jogou nesses anos. Já em 1923, a presença da super campeã em Cascais seria decisiva para os Campeonatos Internacionais de Portugal do começo dos anos 20.

Lenglen “capitalizaria maiores proveitos publicitários para a competição, ao vencer as provas de pares mistos e de singulares femininos e impedir nova vitória da mítica Angélica Plantier. A imprensa registaria, então, que “Melle. Suzanne Lenglen é o principal atrativo do Campeonato de Cascais, a que tem afluído a população aristocrática e chic daquela praia e das que com ela constituem a nossa Côte d’Azur”.” Para a vinda da estrela foi então decisiva a intervenção de Guilherme Pinto Basto. Educado durante algum tempo em Downside School, um internato católico em Somerset, Pinto Basto tornou-se conhecido como o pai do ténis português, destacando-se como um dos melhores jogadores da modalidade. Instrutor do príncipe D. Carlos, futuro rei, foi ainda primeiro presidente da Federação Portuguesa de Ténis de Relva, em 1925, praticando o jogo até aos 87 anos, corriam os anos 50.

À costa do sol, trazia assim a então número 1 do mundo feminina e celebridade mundial – entre os visitantes ingleses estavam a seis vezes vencedora de simples feminina de Wimbledon, Blanche Hillyard, e Noel Turnbull, medalhista de ouro em pares masculinos nos Jogos Olímpicos de 1920.

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Uma das poses junto à rede, uma das suas imagens de marca. O momento fashion é de janeiro de 1920.

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De 1923 chega ainda um desenho da autoria de Almada Negreiros, que imortaliza a grande dama francesa do ténis, comprado a um particular pela Galeria São Mamede em 1979, por 35.000$00. Em 1982, esse “Retrato de Suzanne Lenglen” foi adquirido pelo Museu Machado de Castro, no mesmo ano em que a instituição adquiriu o retábulo de S. Silvestre, obra de João de Ruão datada de 1544, bem como outras peças: a Senhora de lorgnon de Columbano; e as coleções de Alberto Pessoa e de Celso Franco.

Ainda em 1923, Lenglen volta a ser notícia pelos números alcançados. Participou em mais eventos e ganhou mais títulos do que em qualquer outro ano. Venceu todos os 16 eventos de singulares em que participou, bem como 13 de 14 eventos de pares e 16 de 18 eventos de pares mistos.

 6–3, 8–6. Quando a riviera francesa assistiu à “partida do século”

Impressionado com os valores dos bilhetes para os concertos de Taylor Swift? Pois bem, há pouco mais de um século os maiores entusiastas do ténis chegaram a pagar 700 dólares para garantir o acesso àquela que ficou conhecida como a “partida do século”.  As protagonistas? As duas tenistas mais proeminentes dos anos 20, que até fevereiro de 1926 nunca se haviam defrontado (e que não voltariam a cruzar-se). A representar o continente europeu, uma já consagrada Suzanne Lenglen, com popularidade comparável ao mediático Babe Ruth. Do outro lado do Atlântico, chegava a jovem astro em ascensão Helen Wills.

Lenglen e Wills, em Cannes, em 14 de fevereiro de 1926

Com 26 anos, Lenglen era apresentada como a tenista infalível, a atleta que o correspondente inglês de desporto A. Wallis Myers colocara em primeiro lugar do mundo em 1925. Chegava à riviera, um cenário que tão bem conhecia (e onde chegou a defrontar o rei Gustav V da Suécia, em 1922) com uma impressionante marca: 163 vitórias consecutivas, zero derrotas em singulares em quatro anos e seis troféus de Wimbledon, onde se esperava que pudesse cruzar-se com Wills neste mesmo ano. Mas uns meses antes, na temporada do sul de França, tudo se compunha para um primeiro embate de aquecimento entre as duas tenistas.

Com 20 anos, Helen Wills posicionava-se como a mais bem preparada para bater a adversária. Então número dois do estreante ranking, desembarcara no velho continente com três vitórias consecutivas no campeonato nacional norte-americano. Surgia assim, por fim, a hipótese do frente a frente tantas vezes adiado nos últimos anos. Desde 1923 que se falava dessa possibilidade e em 1924, quando Wills veio competir pela primeira vez à Europa, o encontro só não se materializou porque Lenglen contraiu icterícia em Espanha, depois de vencer um torneio em Barcelona. Em dezembro de 1925, Helen anunciava o regresso à Europa e a passagem pelo conhecido circuito do sul de França.

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Com o Carlton em fundo, a "partida do século" disputou-se em Cannes. Centenas quiseram assistir ao encontro que mais uma vez corou Lenglen. A diva foi agraciada com flores no final

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56 jogadores participaram do sorteio. Lenglen e Wills foram intencionalmente colocadas em lados opostos para assegurar que os seus caminhos não se cruzariam antes da final, algo que aconteceu facilmente já que não cederam qualquer jogo nas três primeiras rondas.

A partida decorreu por fim em 16 de fevereiro de 1926, na final da edição do torneio do Carlton Club, em Cannes, arrastando uma multidão à riviera. De tal forma que após as semifinais, a insuficiente capacidade da bancada principal obrigou à construção a contra relógio de novas bancadas. Os bilhetes voaram, apesar dos valores suplantarem os da final de singulares masculina no Campeonato Nacional dos EUA. Entre os felizardos 6 mil espectadores, encontravam-se um grão duque russo, o rei da Suécia e um marajá. O triunfo pendeu para Lenglen, para um desfecho de 6–3, 8–6.

O público confiou que muitos mais duelos entre estes dois ícones estariam no horizonte, mas tal nunca aconteceu. Uns meses depois, ambas eram esperadas no campeonato francês. Wills afastou-se de forma precoce por doença. Lenglen venceu aquela que seria o seu último grande título, em 1926, antes do corte com a Federação Francesa.

O dia em que Lenglen fez a Rainha esperar uma hora e a tour americana como profissional

The King plays at Wimbledon. Eis uma das parangonas mais sonantes saída dos eventos de 1926. Recuemos a esse Campeonato do Jubileu, no qual o monarca George V e a Rainha Mary entregaram medalhas comemorativas a 34 dos campeões sobreviventes do célebre torneio inglês, cujas origens remontam a 1877, tornando-o o mais antigo e prestigiado do mundo. O momento foi também pretexto para outro acontecimento real: o filho dos soberanos, o duque de Iorque, mais tarde coroado rei George VI competiu em pares masculinos com seu herdeiro, Louis Greig.

Convinha não ignorar contudo a rainha suprema da competição, Suzanne Lenglen, que fiel ao seu já conhecido perfil estaria este ano no olho do furacão.

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A receber a medalha do Jubileu das mãos da Rainha Mary, em Wimbledon.

Gamma-Keystone via Getty Images

Apesar de clara favorita, sobretudo face à ausência nessa edição de Helen Wills, a francesa debatia-se com problemas em casa (as finanças da família e o estado de saúde paterno eram os principais motivos de preocupação). Suzanne discordava também da decisão da FFLT, que pretendia que a tenista alinhasse na prova de pares ao lado de uma parceiro francesa, no lugar da habitual companheira, a americana Elizabeth Ryan. Nada contra jogar com Julie Vlasto, mas o sorteio ditava que Lenglen teria assim que jogar contra Ryan no jogo de abertura.

O calendário dos jogos foi outro aspeto da discórdia, provavelmente o mais relevante e aquele que lhe valeu uma despedida pela porta pequena. Em singulares, Lenglen encetou as hostilidades com uma vitória atípica contra Mary Browne, na qual perdeu cinco jogos, o mesmo número que havia perdido em todos os encontros de singulares de 1925. Quanto à partida seguinte, foi antecipada em relação ao seu encontro de pares, uma decisão para acomodar a família real britânica, que queria marcar presença. Lenglen, que preferia jogar pares primeiro, pediu a remarcação do encontro, mas por alguma razão esse pedido nunca chegou ao destinatário nem foi satisfeito – e assim a tenista fez-se atrasar e fazer a Rainha esperar uma hora. Confrontada pelos oficiais do torneio, recusou-se a jogar. Terá cabido a Jean Borotra, de olhos vendados, entrar no balneário feminino e aí implorar para que Suzanne voltasse.

Wimbledon acabaria por reagendar ambas as partidas de Suzanne Lenglen, antecipando os encontros de pares. De pouco valeu à dupla Lenglen-Vlasto, que foi vencida por Ryan e Browne em três sets. Quanto a singulares, foi um fraco consolo triunfar sobre Evelyn Dewhurst. Lenglen daria por encerrada a sua trajetória enquanto atleta amadora ao afastar-se do resto do torneio, acusando uma lesão no ombro.

Após a desistência do torneio, Kitty Godfree conquistou seu segundo título em Wimbledon. Na ausência de Lenglen do ténis amador nos anos que se seguiram, Helen Wills estabeleceu-se como a melhor tenista feminina do mundo, vencendo quatro edições de Wimbledon em singulares.

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Em 1925, a bordo de um transatlântico, respondendo às perguntas dos jornalistas, em vésperas do arranque da sua tour como profissional nos EUA

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Chegada até aqui, e depois do trajeto meteórico, Lenglen tinha fama de sobra e dinheiro de menos, uma realidade que se manteve para a generalidade dos tenistas até ao arranque da era Open, em 1968 – os atletas não passavam de amadores, privados de qualquer prémio monetário. Não terá sido uma decisão fácil: o ténis profissional era bastante mais rentável mas impedia a participação em torneios, incluindo os Grand Slams. Suzanne foi das primeiras a cortar com a “escravidão” do ténis amador, como a francesa chegou a caracterizar.

“Eu trabalhei tanto na minha carreira quanto qualquer homem ou mulher trabalhou em qualquer carreira. E em toda a minha vida não ganhei o equivalente a cinco mil dólares”, chegou a desabafar. “Tenho 27 anos e não sou rica, devo escolher outra carreira e deixar aquela para a qual tenho o que as pessoas chamam de talento?”. O pragmatismo falou mais alto e um mês volvido a tenista assinava um chorudo contrato de 50 mil dólares com o promotor desportivo americano C. C. Pyle (que fundaria a primeira equipa dos New York Yankees) para se tornar profissional e liderar uma tour de exibição do outro lado do Atlântico – à luz dos valores atuais, Lenglen teria amealhado mais de 850 mil euros.

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Agora no papel de espectadora, em Wimbledon, em 3 de julho de 1936, dois anos antes da sua morte. Lenglen viu a final masculina entre Fred Perry e Gottfried von Cramm

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Em junho de 2023, em vésperas do regresso à época alta no relvado, o The Guardian, recordava a resposta de Lenglen à imprensa sobre a então condição física, antes de embarcar no transatlântico que a levaria aos EUA. “Não faço ideia, não jogo há meses”, atirou a mulher que confessou ter passado o tempo a fazer compras. “Deviam ver o meu vestido de noite preto e branco. É uma obra prima”, comentou a atleta que deu o seu nome ao segundo maior court de Roland Garros.

De acordo com a obra “Trailblazers: The Unmatched Story of Women’s Tennis”, de Billie Jean King e Cynthia Starr, 13 mil espectadores seguiriam o seu jogo de estreia em solo norte americano, frente a Mary K. Browne, no Madion Square Garden, em Nova Iorque.

Depois da digressão ter sido um sucesso financeiro, Lenglen voltou à estrada, agora para um périplo mais curto no Reino Unido, alguns meses depois.

A reforma, os últimos dias e a morte precoce

“No começo do mundo, não havia ninguém. Deus criou primeiro Adão, depois Eva e, finalmente, Suzanne Lenglen. Estas palavras brilhantes, escritas por André Lichtenberger e Étienne Micard, em 1925, mostram o quanto a tenista marcou o seu tempo e se tornou uma verdadeira diva”, recorda Thomas Bauer, em “Suzanne Lenglen, Uma Desportista Art Déco”.

Tudo começa, mais do que nunca, nesse dia, em 1919, em que a velha Albion testemunha, com surpresa, a derrota da campeã em título. Os regressos seguintes a Wimbledon tornar-se-iam um acontecimento, quer para a francesa quer para os locais. A sua chegada era anunciada em cartazes nos autocarros, a travessia da Mancha enchia páginas de jornais, as multidões esperavam-na à porta do hotel em busca de um autógrafo. Com menos Gland Slams em contexto doméstico, os fãs franceses não eram menos entusiastas. Se a famosa “partida do século” trouxe os holofotes até ao sul de França, na capital os cinemas de então transmitiram imagens do triunfo de Suzanne Lenglen, tão agraciada como outrora haviam sido o fundista Jean Bouin (1888-1914) ou o boxeur Georges Carpentier (1894-1975)

Criança prodígio, vencedora de 12 Grand Slam antes da era Open, Suzanne manteve o estatuto de mulher independente num tempo ferreamente marcado pelas convenções, solteira e sem filhos, apesar de ter visto o seu nome associado romanticamente a diferentes nomes conhecidos. “Era uma menina que desejava agradar aos pais, uma heroína que trazia esperança a um país devastado pela guerra, uma figura frágil que encontrava forças para viver a vida com um toque dramático.”, escreve a WTA sobre a tenista que em 1978 passou a fazer parte do International Tennis Hall of Fame.

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Rodeada de jovens aprendizes, em Roland Garros, já em 1937, numa das últimas imagens.

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Lenglen retirou-se do ténis com apenas 28 anos, mas continuou a dedicar-se a atividades próximas da modalidade. Passou a vender roupa desportiva, desenhou alguns calções para mulheres, e dirigiu uma escola de ténis para crianças, em Paris. Ainda em 1925, provavelmente com a ajuda de seu amigo Jacques Mortane, escreveu um romance em inglês, The Love Game, publicado pelas edições britânicas Harrap – a obra conta a história de uma virtuosa tenista anglo-francesa Marcelle Penrose, que não consegue encontrar o amor.

A fase crepuscular de Suzanne foi passada em semi reclusão na sua mansão em Nice, enquanto os pais tentavam travar as investidas dos curiosos media sobre este abandono precoce. Em 1934, quase terá perdido a vida para uma crise de apendicite aguda. Alguns anos depois, seria diagnosticada com leucemia. Posteriormente, terá perdido a visão. Em junho de 1938, os médicos terão recomendado uma transfusão de sangue. Lenglen resistiu apenas até 4 de julho, quando morreu durante o sono, aos 39 anos.

Velada na igreja de Nossa Senhora da Assunção, em Paris, foi enterrada nos arredores da cidade, no cemitério de St. Ouen, ao lado do seu pai, que morrera em 1929.

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