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Um pogrom, o discurso ambíguo e a sombra do Irão. O difícil ato de equilibrismo de Putin na guerra Israel-Hamas

À primeira vista, a guerra no Médio Oriente parece beneficiar o Kremlin, ajudando a tirar o foco da Ucrânia. Mas Putin quer agradar ao mundo árabe, sem hostilizar Israel — e corre riscos.

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“De repente, vemos centenas de pessoas a entrarem no aeroporto. A polícia retirou-nos de autocarro, enquanto as pessoas corriam pela pista e atiravam-nos pedras. As crianças gritavam. Uma rapariga ficou ferida com os fragmentos de vidro partido. Foi muito assustador. O autocarro andava às voltas pelo aeroporto, as pessoas perseguiam-nos, voavam pedras.”

O relato é de Shmuel (nome fictício), de 26 anos, judeu israelita que tinha ido à Rússia visitar a noiva. Ao jornal Ynet, contou aquilo que viveu na noite de 29 de outubro em Makhachkala, no Daguestão, durante uma escala a caminho de Moscovo. Entre gritos de “Allahu Akbar” e “Onde estão os judeus?”, a multidão tentou levar a cabo um pogrom, impedido pela ação da polícia, que retirou os passageiros de autocarro. Mas o incidente naquela república russa do Cáucaso deixou claro como a guerra entre Israel e o Hamas já contagia a Rússia de Vladimir Putin.

Makhachkala não foi um incidente único. Um dia antes, em Khasavyurt, também no Daguestão, uma multidão tinha tentado entrar no hotel Flamingo por ter ouvido dizer que estaria “cheio de judeus”. O rumor não era verdade e a multidão enfurecida acabou por dispersar.

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Mark N. Katz, professor especializado nas relações entre Rússia e Médio Oriente da Universidade George Mason, não tem dúvidas do que tudo isto significa num país onde cerca de 15% da população é muçulmana. “Estes eventos mostram que pelo menos alguns muçulmanos na Rússia estão muito preocupados com o conflito israelo-palestiniano. E a sua posição pró-palestiniana, anti-israelita (na verdade anti-judaica até) afeta a política interna da Rússia”, afirma ao Observador.

“Junta-se [o discurso antissemita contra Zelenesky e a posição pró-palestiniana] ao Cáucaso norte, onde há um misto de anos de repressão, questões económicas por resolver, a degradação do Islão tradicional e um espaço informativo cheio de teorias da conspiração e vemos como isto se pode tornar possível.”
Hanna Notte, investigadora sobre as relações entre Rússia e Médio Oriente, sobre o ataque no Daguestão

Hanna Notte, especialista na mesma área do Centro de Estudos para a Não-Proliferação James Martin (CNS), vai mais longe e diz que este é o resultado de duas ações do Kremlin: por um lado, a “instrumentalização do antissemitismo pelo Estado russo para servir a sua narrativa na guerra da Ucrânia”, com as críticas antissemitas a Volodymyr Zelensky pelas suas origens judaicas; por outro, uma postura mais “pró-palestiniana” por parte da Rússia, desde os ataques de 7 de outubro do Hamas. “Junta-se isso ao Cáucaso norte, onde há um misto de anos de repressão, questões económicas por resolver, a degradação do Islão tradicional e um espaço informativo cheio de teorias da conspiração e vemos como isto se pode tornar possível”, resume.

A “distração” da Ucrânia e o piscar de olho ao “Sul Global”. Os benefícios da guerra Israel-Hamas para o Kremlin

À primeira vista, a guerra no Médio Oriente entre Israel e Hamas, que rebentou depois dos ataques de 7 de outubro, tem potencial para servir os interesses de Vladimir Putin já que, como aponta Mark Katz, ajuda a “distrair” o mundo da guerra da Ucrânia. “O Kremlin beneficiará particularmente com o facto de os Estados Unidos poderem ter de desviar armamento que era inicialmente destinado à Ucrânia para Israel. E o apoio claro da Ucrânia a Israel serviu para afastar os governos árabes e muçulmanos de Kiev”, acrescenta. Mas nem tudo é assim tão simples, alerta o professor: “A Rússia não está numa posição de intervir neste conflito, devido ao desgaste que está a sofrer na guerra da Ucrânia.”

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Uma fotografia de Putin é empunhada numa manifestação de solidariedade a Gaza, na Cisjordânia

AFP via Getty Images

Sabendo disso, o Kremlin tem mantido a posição que a Rússia adota tradicionalmente na questão Israel-Palestina: uma defesa da solução de dois Estados e uma posição de potencial moderador. É isso que explica que, ao longo dos últimos anos, Putin tenha conseguido manter boas relações quer com Israel, quer com a Autoridade Palestiniana e com outros grupos pró-palestinianos, como o próprio Hamas.

Desta vez, porém, Moscovo não tem sido tão equidistante como habitual. Recusou-se a condenar publicamente o Hamas, por exemplo. Putin demorou mais de dez dias a falar com Benjamin Netanyahu. E, quando falou do conflito em público, o Presidente russo comparou mesmo o cerco a Gaza ao cerco de Leningrado. Tudo acompanhado de um discurso nos media estatais altamente crítico de Israel e das suas Forças Armadas.

Uma posição que Hanna Notte explica como sendo também um resultado da guerra da Ucrânia e da nova postura da russa no palco mundial: “A Rússia consegue marcar pontos no tribunal da opinião pública com a sua postura pró-palestiniana. Isto porque percebe que isso é popular no Médio Oriente, mas até para lá disso, no chamado ‘Sul Global’. A Rússia está neste momento a submeter a guerra em Gaza à sua narrativa mais lata, a de que isto se insere numa luta anti-colonialista contra a dominação dos Estados Unidos.”

É esta narrativa que, ao longo do último ano e meio, tem garantido a Moscovo que mantém como aliados — ou, pelo menos, como oficialmente neutrais — na guerra da Ucrânia países como a China, a Índia ou a África do Sul. Agora, o Kremlin reforça essa linha a propósito da guerra na Faixa de Gaza, deixando, por exemplo, que o líder checheno Ramzan Kadyrov faça declarações como aquela em que disse que apoiava claramente a Palestina e pedia aos líderes das nações muçulmanas “que criem uma coligação e falem com aqueles a quem chamam amigos na Europa e no Ocidente para que não bombardeiem civis pacíficos com o pretexto de destruir combatentes [do Hamas]”.

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O líder checheno Ramzan Kadyrov é usado pelo Kremlin para manter bons laços com países muçulmanos

Sputnik/AFP via Getty Images

“Numa situação em que uma Rússia isolada procura desesperadamente aliados no Sul Global, as relações oficiais e oficiosas de Kadyrov com os líderes muçulmanos e a população da comunidade muçulmana dão à caixa de ferramentas do Kremlin ferramentas diplomáticas adicionais”, resumiram os especialistas do Wilson Center Anya Free e Marat Iliyasov ainda a 13 de outubro.

O discurso ressoa junto de países como a Jordânia, por exemplo, que acusa o Ocidente de um duplo padrão quando critica a Rússia por atacar civis, mas defende Israel. “O Direito internacional perde todo o valor quando é aplicado de forma seletiva”, disse mesmo o rei Abdullah.

A boa relação com o amigo Netanyahu em risco

Mas se o conflito pode ser benéfico para a Rússia nestas dimensões, também comporta riscos.

O mais óbvio é o de vir a antagonizar Israel, país com quem a Rússia tem mantido uma boa relação nos últimos tempos — ancorada no contingente elevado de israelitas com ascendência russa e na boa relação pessoal de Putin com o primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu.

Essa boa relação tem dado frutos a Moscovo em duas dimensões: por um lado, garantiu que Israel não aplicou sanções a russos, nem forneceu armamento à Ucrânia; por outro, a Rússia conseguiu manter a sua atividade militar na Síria (onde apoia o Presidente Bashar al-Assad na guerra civil) sem qualquer interferência por parte de Telavive.

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Imagem de Netanyahu e Putin a apertarem a mão na sede do Likud

AFP via Getty Images

Agora, porém, a atual guerra e a posição do Kremlin pode colocar essa relação em risco: “A relação calorosa que vimos durante anos pode arrefecer. Estamos num mundo diferente agora”, avisou ao The Guardian Pinchas Goldschmidt, antigo rabino-chefe de Moscovo, que abandonou a Rússia depois do início da guerra na Ucrânia.

Em tempos, Netanyahu gabava-se da boa relação com Putin, chegando mesmo a colocar posters com uma fotografia dos dois na sede do Likud (o seu partido) e visitando a Rússia mais de dez vezes desde 2010. O desconforto, porém, já vinha a crescer — como quando o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, disse que “os maiores antissemitas são os próprios judeus”, para descrever o comportamento de Zelensky. E agora acentua-se, com o Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita a convocar o embaixador russo, para se queixar do facto de a Rússia ter recebido na semana passada uma delegação do Hamas.

Oficialmente, contudo, Netanyahu não se pronunciou sobre as posições do Kremlin, nem sequer sobre a tentativa de um pogrom no Daguestão. Uma posição que se explica por causa de um outro país chamado Irão.

Moscovo quer mesmo “um cessar-fogo” em Gaza. Caso contrário, situação com Síria e Irão pode complicar

É que Telavive também não quer empurrar a Rússia para os braços do seu maior inimigo, com quem o Kremlin tem desenvolvido uma relação cada vez mais próxima desde o início do conflito na Ucrânia. “Desde fevereiro do ano passado que estamos a assistir a uma intensificação da relação, sobretudo porque a Rússia recebe apoio militar do Irão, em particular os drones de combate”, resume Hanna Notte. “A Rússia agora precisa mais do Irão.”

Se uma segunda frente de guerra se abrir, o Hezbollah irá “retirar os seus combatentes da Síria, que estão a proteger o regime de Assad, para defender o Líbano”, aponta o professor Katz. “Isto irá colocar uma pressão maior sobre a Rússia na Síria, algo que o país não quer enquanto continua a combater a guerra na Ucrânia.”

E é neste ato de equilibrismo entre Telavive e Teerão que a situação se complica para Moscovo, razão pela qual os especialistas ouvidos pelo Observador acreditam que Moscovo preferiria de facto que a situação em Gaza fosse travada: “Acredito que Moscovo é genuína quando pede um cessar-fogo imediato”, nota o professor Mark N. Katz.

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O líder do Hamas, Khaled Mechaal, recebido em Moscovo pelo ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, em 2010

AFP via Getty Images

Não por estar interessada em defender a paz mundial ou prevenir a morte de civis. Mas porque, nota o académico, isso ajudaria a prevenir “o enfraquecimento dos amigos de Moscovo como o Hamas e o Hezbollah” — e, por inerência, o Irão.

A tudo isto junta-se o risco de a própria Rússia se ver arrastada para o conflito, caso este escale. As trocas de fogo entre Israel e o Hezbollah, na fronteira com o Líbano, são uma verdadeira dor de cabeça para Vladimir Putin. Se uma segunda frente de guerra se abrir, o Hezbollah irá “retirar os seus combatentes da Síria, que estão a proteger o regime de Assad, para defender o Líbano”, aponta o professor Katz. “Isto irá colocar uma pressão maior sobre a Rússia na Síria, algo que o país não quer enquanto continua a combater a guerra na Ucrânia.”

Hanna Notte, do CNS, concorda. “Os riscos para a Rússia são tantos que podem ser maiores do que os benefícios a retirar disto”, afirma, notando a incapacidade militar de reforçar contingentes na Ucrânia e na Síria ao mesmo tempo. Mas a especialista aponta outro fator: “Se a guerra se descontrolar e escalar, a Rússia terá mais dificuldades em manter este ato de equilibrismo entre os diferentes atores da região”.

A “rutura” total com Israel, diz, não é desejada por Putin. E a “submissão” total aos interesses do Irão também não. “Mas quanto mais o conflito no Médio Oriente escalar e os EUA continuarem a apoiar claramente Israel, mais tendência terá a Rússia de ser sugada pela órbita do Irão.”

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Visita de Vladimir Putin ao Muro das Lamentações em Jerusalém, em 2012

AFP via Getty Images

No meio de tudo isto, ainda há o risco de a situação interna se deteriorar, com mais instabilidade no Cáucaso — onde a Rússia já travou duas guerras contra extremistas islâmicos independentistas — alimentada por este tema. Fontes do Kremlin garantiram ao site Meduza, por exemplo, que as cenas no aeroporto de Makhachkala, no Daguestão, foram “um choque” para o governo russo e colocaram a equipa de Putin em “emergência total”.

Mas, quanto à turbulência interna, o Presidente russo parece ter tudo mais controlado. Esta terça-feira, o líder da Chechénia Ramzan Kadyrov fez uma declaração pública onde ameaçou que eventos como o do Daguestão não teriam uma resposta tão suave por parte da polícia na sua república: “Disparem três tiros de aviso para o ar. Se a pessoa não obedecer, deem o quarto na cabeça”, afirmou em instruções para a polícia, em caso de motins semelhantes ao de Makhachkala.

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