Mariana Mortágua está sentada numa mesa de mármore junto às vidraças, com vista para as obras do Saldanha, e ainda há pouca gente no restaurante dos cinemas do Monumental. Tem um MacBook aberto à sua frente, ouve música num leitor de mp3 e lê o livro A Economia Portuguesa, de Luciano Amaral, um professor de História Económica da Nova Business School. Um liberal para os seus padrões. A seu lado, um café e uma Água das Pedras. E um iPhone.
— Ah, já vi que não esteve preso no trânsito!… E aponta para o capacete que levo na mão.
Chego quatro minutos atrasado. São 18h04. Pouso o capacete e o casaco para andar de mota, aliás, uma scooter (esse detalhe aqui é importante). Na cadeira ao lado de Mariana também está um capacete (branco) e um casaco (preto) com as proteções próprias de quem anda numa mota a sério, uma Honda CB500. Ainda havemos de falar sobre o assunto.
O lugar para a conversa foi proposto por Mariana Mortágua. A ideia era tomarmos um copo num local onde se sentisse confortável, porque tinha sido escolhida pela redação do Observador como a figura do ano na Economia. Para cumprir o guião estabelecido (beber um copo) peço uma cerveja belga. A convidada, porém, não acompanha a ideia e manda vir mais uma água com gás. Nada de álcool em trabalho, que é uma coisa séria. Mas é uma pena, porque Mariana poderia falar das cervejas com conhecimento de causa:
— Gosto muito de cerveja. Gosto de vinho, mas gosto de apreciar uma cerveja. Gosto de cervejas mais encorpadas, como a Franciscaner [uma cerveja alemã]. Guinness nem tanto…
Chama “cervejas civilizadas” às do norte — mas que já se conseguem encontrar em Portugal –, típicas dos países onde a “ideologia” dominante tem sido a “austeridade”. Podíamos ter iniciado a discussão por aí, sobre as diferenças políticas recentes entre as culturas do vinho e as culturas da cerveja e as incidências económicas dessas tendências na União Europeia. Mas a ideia é mesmo falar de economia.
Um livro de Luciano Amaral? Curioso. “Para tirar uns dados”, explica Mariana Mortágua, que está a preparar o doutoramento em Economia. Tinha ido comprar o livro ao andar de baixo e estava a tirar notas para a tese. Quando começamos a conversa, abre um caderno pautado com folhas acastanhadas e símbolo do MOTEL/X na capa — o festival de cinema de terror realizado em Lisboa. As páginas estão cheias de números, tabelas, notas com uma letra pequena, feminina e calibrada.
A tese de doutoramento não será sobre o horror cinematográfico, mas acerca de uma espécie de terror lento que na sua opinião assola as economias desenvolvidas. Começou por ser sobre os “desequilíbrios macroeconómicos da União Europeia”, mas evoluiu:
— Começou por ser sobre isso. Escrevi algumas coisas e publiquei uns artigos. Mas, entretanto, como fui obrigada de tal forma a estudar e falar sobre esta realidade, acabei por me focar mais na economia portuguesa.
A tese da deputada bloquista para a britânica School of Oriental and African Studies — que ela costuma dizer ser a universidade mais à esquerda na Europa — será sobre um aspeto chamado “estagnação secular”. A economista explica que tem a ver com “uma discussão internacional muito interessante” sobre o fraco crescimento das economias desenvolvidas (ver aqui a explicação de um Nobel da Economia sobre o assunto e aqui uma visão mais à esquerda). O debate mais recente foi iniciado em 2013 por um discurso de Larry Summers, ex-secretário do Tesouro de Bill Clinton e professor em Harvard. Mortágua diz que depois de ter “ido mais longe nas políticas de liberalização” na administração democrata norte-americana, Larry Summers recuou.
“Fez um discurso num congresso do FMI a dizer que há problemas nas economias maduras capitalistas ocidentais. O problema são as chamadas zero bond, taxas de juro que estão em zero por cento” — explica a dirigente bloquista num tom quase professoral. “Não conseguimos descer as taxas de juro a menos de zero por cento e assim a economia está estagnada com taxas de crescimento e investimento cada vez mais reduzidas e a instabilidade financeira a crescer, assim como as taxas estruturais de desemprego”.
Aos 30 anos, a dirigente do Bloco entusiasma-se a falar de economia, sempre misturada com política, sempre numa perspetiva crítica e dentro das suas fronteiras ideológicas. A meio da explicação do tema da tese:
— Não estou a chatear, pois não?
Não. É suposto que a pessoa do ano na Economia diga ao Observador o que pensa sobre a economia, embora não seja a conversa mais adequada para quem foi “tomar um copo”. Mariana continua: “Isto é um problema para a teoria económica mainstream. Depois da estagflação dos anos 70, acreditou-se que bastava controlar a política monetária se fossem liberalizados os capitais e os movimentos financeiros, se houvesse uma política orçamental de consolidação e disciplinada e com défices baixíssimos perto do zero.” Era o nascimento da austeridade. “E se a política monetária contrariasse a inflação abaixo de três por cento, a economia estaria sempre em estabilidade”. O ponto da discussão é este: mesmo no mundo académico, Mariana Mortágua está fora das correntes maioritárias: “Isto levou a um turbilhão no mundo mainstream em que de repente estes economistas acordam para a realidade. Bom, há um problema económico que não conseguimos resolver. Estou a estudar esse debate e esses argumentos.”
Enquanto fala, desenha quadrados, cubos no caderno. Rabisca. Especula. “Houve duas ou três revoluções industriais que revolucionaram a forma como se produz e se fazem as coisas.” Agora não. No máximo, agora inventa-se um novo sistema ABS, coloca-se um microchip, “mas o carro já foi inventado”.
— E essa coisa aí? Aponto para o iPhone.
Ainda estamos por saber, porque apesar de as redes sociais contribuírem para transformações culturais, sociais e políticas, “a economia não está desenhada para captar essas alterações”. Continua a falar a economista: “A forma como esta brincadeira — e põe a mão no telefone — é valorizada nas economias modernas, ainda está muito por descobrir. De que forma as novas tecnologias criam valor? Qual é o valor criado pela Google? Qual é? Esse valor não está necessariamente associado a emprego, pode estar não estar…”
Ok. Vamos fazer uma pausa nesta conversa. Muita economia pode ser economia a mais. Mariana Mortágua, filha de Camilo Mortágua — aventureiro e lenda revolucionária do anti-fascismo –, alentejana de Alvito, só pensa em economia, só lê economia? É motonemática, não pensa em mais nada?
“Quando se é deputada, quando se está na liderança parlamentar, e se tenta fazer um doutoramento ao mesmo tempo… a minha vida gira muito em torno da economia. Sobretudo pelo peso do doutoramento”, explica. Está em regime de obsessão, para tentar entregar a tese em setembro.
Por isso, o doutoramento consome-lhe tempo de livros de ficção e sobre outros temas. “Reduzi a literatura a mínimos quase inaceitáveis. Mas é porque todo o meu tempo livre acaba por ser a ler livros sobre economia. Tento manter os mínimos aceitáveis de cinema, teatro e música, embora sejam bastante mínimos também”, diz. Só não se sente dominada por um tema porque “política é tudo” e os assuntos são muitos e diferentes. “Não me sinto monotemática, embora compreenda e aceite ter uma vida muito focada.”
O restaurante começa a encher-se. São sete horas. Na bilheteira dos cinemas, mesmo junto ao restaurante, há cinco filmes em cartaz. Mariana não terá visto nenhum, ou se viu não se recorda. “Tenho um problema muito grave na minha vida que é ter péssima memória para nome de livros e de filmes. É péssimo”.
Senta-se naquela mesa há anos. Por isso escolheu aquele lugar para a conversa com o Observador. Começou a sentar-se no seu lugar preferido desde a faculdade. Estuda, lê, olha pela janela: “As pessoas vêm aqui para ir ao cinema e beber cerveja, o que relaxa um pouco o ambiente. E há a varanda. Assisti daqui à demolição daquele prédio”. E aponta para um hotel novo, do outro lado da praça do Saldanha, onde antes havia um prédio do início do século XX. “Uma pessoa aqui está sempre a ver coisas”. Mas agora o que se vê dali são as obras de Fernando Medina. E o trânsito. Mas não falamos disso. Nem da câmara de Lisboa nem de autárquicas. Mais economia, poder e influência.
O poder de Mariana: a cara do Bloco que empurra o PS para a esquerda
Quer queira quer não, Mariana Mortágua marcou o ano, sobretudo o último terço de 2016, quando começou a discutir-se o Orçamento do Estado. Teve um imposto alcunhado com o seu nome: o imposto Mariana Mortágua, mais tarde com a designação oficial de “adicional ao IMI”. O anúncio mal planeado da nova medida havia de desencadear uma enorme polémica e incendiar os ânimos entre esquerda e direita, sobre a definição de classes médias, sobre o investimento estrangeiro em imobiliário e sobre o que era um ataque à propriedade ou uma medida de justiça.
Houve episódios sem fim, que atingiram o auge com a intervenção de Mortágua num evento do PS onde disse ser preciso “perder a vergonha” de ir buscar dinheiro a quem o estava a acumular. Nova polémica. Novo protagonismo de Mortágua. Mais para o final do ano, seria também ela a cara do Bloco a justificar o voto ao lado da direita para obrigar os administradores a Caixa Geral de Depósitos a entregarem as declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional. Com a nova configuração política e parlamentar, ela representa no Bloco de Esquerda a influência que o partido tem nas políticas económicas e fiscais do Governo do PS. No fundo, Mortágua pode ser o símbolo da viragem do PS à esquerda, embora não aceite entrar nessa categoria.
É a cara do partido para as questões económicas e financeiras, desde que Francisco Louçã se retirou do palco principal. Mas não se sente assim tão influente. Aqui sim, tem um discurso politicamente correto: “O que há, neste momento, é uma configuração política que permite ao BE ter um papel muito interventivo em algumas das decisões tomadas a nível nacional e em algumas das políticas. Não tem a ver com uma noção pessoal de poder, mas com um processo de negociação e de trabalho numa configuração política particular, mas em contexto muito coletivo. Eu pessoalmente não tenho poder”.
O discurso do “coletivo” costuma ser mais típico do PCP. Mortágua diz que participa “num contexto muito superior” a si. E a alcunha do imposto? “Não é responsabilidade minha. Tenho dificuldade em assumir responsabilidades que não são minhas, mas que me foram atribuídas”. Diz que não é falsa modéstia: “Há uma equipa que negoceia com o PS. Nenhum de nós toma decisões sozinho. É lógico que dentro das nossas áreas há pessoas que negoceiam coisas diferentes. Na política fiscal ou sistema financeiro, estarei sempre mais informada e mais capaz de participar, da mesma forma que na energia é o Jorge Costa, mas os processos são verdadeiramente coletivos”.
Negoceia com o PS, mas continua a defender opções que estão nos antípodas do que os socialistas podem aceitar. Com as suas intervenções no Parlamento, consegue por vezes arrastar o Governo quando falta habilidade ao adversário/parceiro. Questiona insistentemente Mário Centeno acerca das consequências das cativações na qualidade os serviços públicos (tal como a direita). E pergunta — debate sim debate não — sobre a necessidade de renegociação da dívida (enquanto ataca a direita).
No início de novembro, no primeiro debate sobre o Orçamento do Estado, perguntou ao ministro das Finanças, no hemiciclo: “Estamos a endividar-nos para pagar uma dívida pública que nunca vamos conseguir pagar”. E colocou a questão habitual sobre a possibilidade de se abrir uma renegociação. Mário Centeno caiu na armadilha e respondeu: “Essa discussão é uma discussão que apenas pode ser tida num contexto europeu, o Governo está disposto a tê-la no plano europeu e tem feito por isso no plano europeu”. Estava lançada mais uma pequena confusão. O Governo seria obrigado a passar os dias seguintes a desmentir a declaração do ministro das Finanças, não fossem os mercados e os parceiros europeus achar que António Costa tinha decidido abrir, em público, o capítulo da renegociação da dívida.
“Assumir que há um problema de dívida, isso tem sido um avanço importantíssimo“, alega Mariana Mortágua. “Mas é preciso que seja levado às instituições europeias, que seja colocado em cima da mesa, porque não é um problema português”. A deputada conta mesmo que, recentemente, numa conversa à margem de uma conferência, uma pessoa do Banco de Portugal lhe reconheceu, em privado, “que devia haver uma reestruturação”. Mas não se pode dizer em público, por causa da reação dos mercados. “Então as economias estão mesmo aprisionadas pelos mercados”, argumenta. O seu raciocínio em relação à dívida é este: “Quem paga 8 mil milhões em juros da dívida e quer ter um défice de 3 mil milhões, tem de pôr o Estado a dar lucros de 5 mil. E um Estado que dá lucros de 5 mil milhões com este nível de juros, é um Estado que abdica de investir 5 mil em Educação e Saúde”. Para Mortágua, um alívio do serviço da dívida resolvia os problemas orçamentais e de investimento.
“Que é isso de estar vendida ao capitalismo?”
Peço mais uma cerveja. Da janela vê-se a scooter, 125cc. Sim, aquela que tem o avental de proteção para a chuva, explico. Mariana ri-se, não goza, mas faz cara de gozo. Não se pode competir com uma verdadeira motard. “É só para andar na cidade”, desculpo-me. E não precisa de carta de mota. A deputada é radical — e é mais radical nestas coisas também –, mas comenta as “loucuras” que os condutores de scooter fazem pelo meio do trânsito lisboeta. A sua CB500 é uma mota que mete respeito a um condutor de “aceleras”. Mariana faz de mota, por vezes, a viagem de 170 quilómetros de Lisboa a Alvito, no Alentejo, onde vivem os pais. Ainda recentemente foi em duas rodas a um evento do Bloco de Esquerda no norte do país.
Apesar de estes serem assuntos burgueses, Mortágua recusa qualquer tipo de “aburguesamento” do Bloco. A viabilização de um Governo do PS — um partido que defende a economia de mercado, ao contrário do BE, que é anti-capitalista — não a fará sentir-se “vendida ao capitalismo?” Mariana diz que não: “Que é isso de venda ao capitalismo? Isso são dúvidas de quem não é muito consistente ideologicamente. Quem está certo do que faz não se perde com dúvidas existenciais desse tipo.” Acha que a solução política da “geringonça” tem valido a pena: “O BE tomou a decisão certa, tem apresentado resultados”. Para a deputada, defender medidas como a reestruturação da dívida “não é para parecer radical”, mas por ser “a única maneira de Portugal crescer”.
Olha para o relógio. Uma amiga telefona, mas ela não atende. A irmã gémea — Joana Mortágua — também já tinha ligado mas Mariana também não interrompeu a conversa. O restaurante do centro comercial está cada vez mais barulhento, com a música mais alta e mais gente nas mesas. É sexta-feira. As pessoas preparam-se para o fim-de-semana.
O Bloco de Esquerda é um partido revolucionário, mas Mortágua diz que não consegue imaginar o Bloco “noutro contexto que não o democrático”. Explica-se: “O BE tem uma relação muito intransigente com a democracia. É aí que nasce o Bloco.” A seguir lança uma frase que (só em parte) faz lembrar o PCP:
— Na realidade, não perdemos muito tempo , como se pode imaginar, a planear a revolução. O que há é uma análise das relações de força em cada momento, e de quanto é que se consegue avançar de acordo com a relação de forças. E a relação de forças agora é mais favorável do que nunca.
Quando se fala em democracia, em revolução ou em regimes socialistas, faz questão de traçar fronteiras e aqui fala de maneira muito diferente dos comunistas portugueses. “Toda a gente sabe o horror que foi o regime estalinista, de opressão e mortes e de horror ditatorial, de falta de democracia. Nada se pode dizer para suavizar essa crítica ao estalinismo”. Mariana condena a sociedade socialista que se construiu na União Soviética, mas elogia os princípios fundadores: “A verdade é que, independentemente das aplicações práticas que houve, das distorções concretas que houve, há um conjunto de princípios que se mantém, que evoluiu e se desenvolveu.”
Se considera alguma experiência socialista interessante, prefere responder ao contrário: “Não há nenhuma experiência liberal que ache interessante”. É socialista, mas volta a afirmar: “Nada contra o modelo pluripartidário democrático”. Nem contra a democracia representativa: “Um modelo que deve ser muito protegido, muito protegido”, repete. “Que não deve ceder a populismos como o da redução do número dos deputados” . A bloquista só acha que o sistema representativo “é pouco aprofundado na sua democracia e na forma como os cidadãos intervêm”. Quer mais democracia direta e em todas as esferas da sociedade, um traço coletivista: “Acho que a democracia tem de se estender a outros sítios, tem de se estender aos locais de trabalho e os trabalhadores têm de participar na forma como as empresas são geridas. Isso também é democracia no local de trabalho”, defende. “Temos de radicalizar a democracia, estendê-la. Se alguma crítica há a fazer é o atual sistema poder ser desenvolvido para ser mais democrático e ter mais reivindicação popular.” A conversa torna-se mais ideológica e Mariana olha para o relógio, está a ficar impaciente.
“Tenho de ir andando, estou a ficar atrasada”. São quase oito horas. Em três minutos ainda fala de Thomas Piketty e do novo Capital, para dizer que “há uma brutal acumulação de riqueza nos 1% mais ricos”. E, como se vê pelos casos dos offshore, “quem paga impostos é quem ganha 1200 ou 2000 euros por mês”, argumenta. Ainda dá para falar da votação do Bloco de Esquerda ao lado da direita, que alegadamente terá precipitado a demissão da administração da Caixa (embora o Observador tenha informações de que os administradores se demitiram antes dessa sexta-feira). “Se um gestor da Caixa cai porque alguém o obriga a publicar uma declaração de rendimentos, nunca lá devia ter estado. Mas isso é lógico. Qual era a consequência? Era não apresentar a declaração e manter-se lá?”.
Despede-se e sai de capacete na mão. Vai a correr até ao Teatro Nacional D. Maria II para ver uma peça de Tiago Rodrigues: “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”. É a história de uma menina de 9 anos, recordista mundial de consumo de dicionário, que atravessa Lisboa acompanhada por um urso de peluche suicida. Quem procuram? A única pessoa que os pode ajudar: o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho. A política parece invadir mesmo tudo na vida de Mariana Mortágua.