Todos os anos, o Estado português apodera-se, em média, de dois milhões de euros de poupanças dos portugueses. São poupanças que não foram reclamadas pelos herdeiros de alguém que subscreveu certificados de aforro, algo que acontece, muitas vezes, porque os herdeiros nem sabem que os seus familiares, à sua morte, tinham aquelas poupanças. O tema surge na campanha eleitoral através da IL. O Observador examinou os programas dos principais partidos que vão a votos a 10 de março e até ao domingo das legislativas vai dissecar uma proposta por dia.
A Iniciativa Liberal tem no programa eleitoral uma medida que visa “garantir a reclamação dos certificados de aforro após morte do titular“, o que passa por acabar com uma “interpretação iníqua” que está a ser feita da lei, considera o partido liderado por Rui Rocha.
Quando alguém morre, não há uma forma fácil de saber que aquele familiar tinha em seu nome certificados de aforro, o principal instrumento de poupança gerido pelo Estado português. Em contraste com as contas bancárias, os seguros e o património imobiliário, que são de fácil consulta pelos herdeiros, após a morte de alguém, estes produtos de poupança estão numa espécie de penumbra que contribuiu para que o Estado se tenha apoderado de mais de 18 milhões de euros só nos cinco anos entre 2017 e 2022, segundo o Jornal de Notícias.
Na prática, é possível um herdeiro perguntar à Agência de Gestão da Tesouraria e Dívida Pública (IGCP), a entidade que emite os certificados de aforro, se determinada pessoa que morreu tinha alguns instrumentos de poupança do Estado. Se for um herdeiro legalmente habilitado, e munido com certidão de óbito, pode fazer esse pedido. Mas o processo é burocrático e para que essa pergunta seja feita o herdeiro tem, pelo menos, de suspeitar que o seu familiar tinha subscrito certificados de aforro. O que, muitas vezes, não acontece.
IL estima que Estado se aproprie de dois milhões por ano, em média
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Só em 2022 o Estado ficou com 2,56 milhões de euros em certificados de aforro que, por não terem sido reclamados, reverteram a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública (FRDP). No ano anterior, 2021, tinham sido ainda mais: seis milhões de euros. Os dados oficiais mostram que nos cinco anos até 2022, o total ascendeu a 18 milhões de euros que ficaram para o Estado por não terem sido reclamados pelos herdeiros. A IL estima que, numa média mais alongada, o Estado se apropria de dois milhões de euros por ano.
A lei diz que, “por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades”. A interpretação que o IGCP faz desta lei é que os 10 anos são contabilizados começando no dia em que morre o subscritor. Isso está, aliás, dito nas regras descritas no site do IGCP, que afirmam claramente que o prazo começa “a contar [a partir] do falecimento do titular”.
Porém, a IL afirma que esse entendimento não está suportado na lei e salienta que já houve decisões de tribunal que foram no sentido oposto. Essas decisões, diz a IL, confirmaram que o prazo de 10 anos começa no momento em que o herdeiro toma conhecimento de que aqueles valores existiam. Mas “a administração pública responsável tem aplicado uma interpretação da lei mais restritiva“, diz o partido liderado por Rui Rocha, que considera este um exemplo do “desequilíbrio da relação entre o Estado e os cidadãos”.
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António Ribeiro, analista financeiro da DECO PROteste, defende que “sejam mais uniformes as regras de reclamação em caso de morte dos vários produtos financeiros”. Questionado pelo Observador, o especialista confirma que envolve “alguma burocracia” o processo de reclamação de certificados de aforro mas salienta que o principal problema é que “em muitos casos, os familiares não sabem da existência desta aplicação de dinheiro“.
Por isso, “seria útil criar um sistema que permitisse avisar os familiares herdeiros da existência desse produto ou, então, alargar o prazo”, conclui António Ribeiro.
Não existe um registo central onde apareçam os certificados de aforro e, por essa razão, uma das propostas da Iniciativa Liberal é que estes investimentos passem a constar da Base Central de Contas do Banco de Portugal, que é a plataforma gratuita a que os herdeiros normalmente recorrem para saber que contas bancárias o seu familiar tinha (para, depois, poder tratar diretamente com as instituições bancárias específicas). No caso dos seguros, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) também tem um serviço gratuito para consulta de contratos de seguro de vida ou outros.
“Considerando que os certificados de aforro configuram um instrumento de poupança muito mais massificado que os contratos de seguro de vida, acidentes pessoais ou seguros de capitalização, não se entende porque é que este mecanismo colocado em prática pela ASF não é replicado” pelo IGCP, considera a Iniciativa Liberal.
Esta é uma matéria ainda mais relevante tendo em conta que entre 2022 e meados de 2023 houve uma “corrida” aos certificados de aforro, em que milhares de portugueses colocaram ali as suas poupanças, atraídos pelas taxas de juro elevadas que este produto oferecia até à mudança das condições, anunciada no verão de 2023.
“A atual situação configura uma grave assimetria de informação relativamente aos aforradores, situação essa que urge corrigir”, conclui a Iniciativa Liberal. Isso pode passar, defende o partido, por garantir uma “interoperabilidade entre organismos públicos” que, aliás, “são uma tendência no desenvolvimento de modelos que permitem orientar a governação para modelos mais eletrónicos e digitais”.