Um conceito evolutivo
A política externa do Estado Português é definida e coordenada, no plano executivo e sectorial, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros, sem prejuízo do contributo que possa advir de outras áreas da governação, como a Defesa Nacional. Compreende-se então que, sem negar o que se afirma por último, o recurso à expressão “ação externa da Defesa Nacional” não pretenda convocar uma qualquer diplomacia paralela ou concorrente, mas antes a dimensão contribuinte da Defesa Nacional na prossecução de fins de política externa na defesa dos interesses nacionais. Realmente, a Defesa Nacional terá tanta mais projeção exterior quanto mais articulação evidenciar com as grandes linhas da política externa, da qual tem sido, aliás, um instrumento cada vez mais relevante. Da mesma maneira, esta forma da ação externa está obrigada a coerência com as linhas fundamentais da política de Defesa Nacional, tenha ou não expressão operacional.
Numa abordagem ampla, integrará o conceito de “ação externa da Defesa Nacional” aquilo que nesta área se projete, tendo ou não natureza militar e tendo ou não natureza operacional, fora do território nacional. Dito de outra forma, fala-se aqui do conjunto de intervenções da Defesa Nacional, de natureza política, orgânica ou institucional, realizadas fora do território nacional ou que, no País, se projetem, pelos efeitos ou impacto, na esfera internacional. Neste sentido, por exemplo, a Base das Lajes inclui-se no conceito, tal como o Centro para a Defesa do Atlântico (CeDA), quando se concretizar a sua institucionalização. Noutros casos, a vocação internacional pode não estar contida, à partida, na atividade em causa. Veja-se o caso do Hospital das Forças Armadas (HFAR); ou, noutra medida, o do Colégio Militar. Realmente, o contacto internacional, não negligenciável, advém daqueles que, provindos de países terceiros, demandam o HFAR – desde militares ucranianos a outros altos responsáveis de países amigos. No caso do Colégio Militar (ou no das Academias, ou no do Instituto Universitário Militar, ou no do Instituto da Defesa Nacional), também assim acontece, até no contexto institucional da mais clássica cooperação técnico-militar. O mesmo, claro, com a NATO Communications and Information Academy (NCI Academy), em Oeiras. Aqui, porém, de forma literal, direta e central.
Se ação externa da Defesa Nacional acolhe um sentido que, como se viu, pode ser amplo, convirá agora delimitar o alcance do conceito para que não se dilua em demasia, assim se tornando de menos proveito. Em sentido estrito e utilizável, a natureza externa da ação – implícita se se tratar, por exemplo, da participação numa missão ou operação OTAN – deverá ser substancial ou dominante, não apenas indireta e ocasional. Com esta restrição, a ação externa da Defesa Nacional integrará o conjunto de intervenções de Defesa Nacional, tenham ou não natureza operacional, realizadas fora do território nacional ou que, no País, se projetem de forma substancial ou dominante na esfera internacional.
Os desafios sentidos ao longo da legislatura relativamente à participação de militares em missões além-fronteiras permitiram identificar a necessidade imperiosa de rever a legislação da ação externa da Defesa Nacional. Tendo tido a oportunidade de, no Parlamento, nomeadamente na Comissão de Defesa Nacional, dar a conhecer algumas destas reflexões, chegou o momento de, com este breve ensaio, estender o debate a toda a sociedade.
Os domínios mais tradicionais
Até hoje, não se verificou a integração num único instrumento (ou num instrumento-cúpula) a regulação das diversas expressões da ação externa da Defesa Nacional ou, pelo menos, daquelas que têm uma componente estatutária mais nítida. Nestas, refira-se o regime dos adidos de Defesa; a cooperação técnico-militar; ou o conjunto de regras aplicáveis às forças nacionais destacadas. De modo bem diverso, aquilo que logo resulta da observação é uma série de regimes jurídicos algo desgarrados que regulam aquelas matérias, quase sempre surgidos num contexto histórico bastante marcado. A legislação relativa aos adidos de Defesa remonta ao tempo do Conselho da Revolução, no início dos anos oitenta do século passado. E, tanto no que se refere à cooperação técnico-militar (hoje, melhor se dirá cooperação no domínio da Defesa) como às regras aplicáveis às forças nacionais destacadas, trata-se, sempre, de diplomas antigos, nenhum deles com menos de duas décadas, é certo que com modificações mais recentes, mas sempre de natureza não substantiva.
Por outro lado, pressente-se que em cada tópico se tratou de resolver, com algum casuísmo (sem por em causa a qualidade técnica dos regimes em causa), as questões que amiúde foram surgindo no passado, e que se confrontam com um século XXI definitiva e rotineiramente internacional. Lembre-se, no que se refere às forças nacionais destacadas, a participação portuguesa em missões nos Balcãs e, mais especificamente, na Bósnia-Herzegovina. Antes, por outro lado, a cooperação técnico-militar, que surgia como modelo para dinamizar a cooperação nesta área com os países africanos de língua oficial portuguesa, alguns anos volvidos sobre as respetivas independências e estabilizado que estava o quadro mútuo de relações diplomáticas entre Estados soberanos mas que partilham a História e a língua.
Os principais desafios
Reitera-se: a política de Defesa Nacional contém, cada vez mais, uma dimensão internacional. Em primeiro lugar, porque conceptual e fisicamente se constrói, nos nossos dias, menos por referência direta ao território do que, muito mais, tendo em vista o reforço desterritorializado da capacidade para enfrentar ameaças ou participar em relações cooperativas ou de solidariedade com os nossos aliados. Os militares que participam na operação Gallant Phoenix, na Jordânia, atuam na esfera externa da Defesa Nacional, coligem informação muito importante para evitar a concretização de ameaças dirigidas, quer contra o nosso território (a partir de Estados terceiros), quer no nosso território, contra os nossos cidadãos. De forma similar, os militares portugueses que participam na chamada Coligação anti-Daesh, na sua maioria no campo de Besmayah, no Iraque, projetam a Defesa Nacional muito extramuros e contribuem para a nossa segurança e defesa. Sem dúvida, a capacitação das forças armadas iraquianas, que se mostrou fundamental no combate às forças do Daesh naquele território, diminuiu as possibilidades daquela organização terrorista ser eficiente nas várias frentes em que atua e, concretamente, menos eficiente na organização de atentados terroristas noutros territórios e, em particular, em território europeu.
Na República Centro-Africana, a nossa terceira força nacional destacada é parte integrante da missão das Nações Unidas no território (MINUSCA), assim como, por outro lado, é Portugal que, no decurso de 2018, ali assume o comando da missão da União Europeia (EUTM RCA). Se estas participações são muito importantes para manter níveis mínimos de segurança e de proteção das populações, ou para capacitar as Forças Armadas do Estado (as FACA), são ainda Defesa Nacional em outros dois planos principais. Em primeiro lugar, nenhum País tem capacidade para garantir por si, em todos os domínios, a sua própria segurança (talvez com a exceção dos Estados Unidos da América). Portugal é, por conseguinte – através destes, como de outros, exemplos –, coprodutor de paz e segurança, ganhando crédito no interior do seu sistema de alianças e de relações com Estados que, por seu turno, atuam em prol de um esforço geral de estabilidade, direitos humanos e paz. Por outro lado, contribuindo para conter ameaças (de que são bom exemplo os grupos e organizações terroristas transnacionais, com a Al-Qaeda, o Daesh e seus afiliados à cabeça) longe do seu território e do continente europeu, a nossa ação externa da Defesa Nacional será sempre mais eficiente do que se, porventura, viesse a alocar estes recursos de uma forma em que a relação custo-benefício (utilizada a expressão em sentido simbólico e menos económico-financeiro) não fosse tão favorável – embora pudesse ser mais espetacular.
O facto de Portugal ser membro de organizações internacionais com vocação principal (OTAN) ou relevante (Nações Unidas) e, cada vez mais, União Europeia, na área da Defesa, político-militar ou da paz e segurança internacionais ou regionais, a par do reforço e aprofundamento de relações bilaterais naquele domínio, é outro aspeto que, necessariamente, se integrará no conceito de ação externa da Defesa Nacional. Também por isso, a forma como se estrutura a participação de militares nessas organizações deve ir muito para lá do simples preenchimento ou negociação de lugares ou das tomadas de posição em reuniões plenárias. Isto, como bem se terá percebido, sem nunca beliscar a importância destas dimensões externas da Defesa Nacional.
Para a realização plena destes objetivos, não se pressupõe, a título obrigatório, a alteração do quadro de competências vigente. Mas impõe-se alcançar, com certeza, um planeamento cuidado sobre as vantagens e inconvenientes de tal ou tal participação ou nomeação para este ou para aquele posto, ou sobre a ponderação de vantagens quando, num tempo de escassez, forem necessárias opções, escolhas tão claras quanto possível. E é defensável que, quanto a isso, se conheça o planeamento, a estratégia, o modelo que foi concebido, uma vez que essa representação internacional é, como mecanismo de projeção do Estado Português na área da Defesa Nacional, dos mais importantes. Verdadeiramente, e apenas para se perceber a ideia e dando de barato a equivalência de qualificações exigidas, é preferível preencher um lugar no Comandos dos Estados Unidos para África (AFRICOM) ou no Comando Aliado da Transformação (ACT), em Norfolk, EUA? No Comando da OTAN em Nápoles, Itália, ou na cooperação técnico-militar com um determinado país? E, mais importante: porquê, com que linha de sustentação?
Da mesma maneira, é importante que os processos de escolha sejam cada vez mais profissionais, concorrenciais e assentes a título principal no mérito, trate-se de postos agora constituídos, trate-se de nomeações para funções internacionais com mais lastro do tempo. É muito relevante, é cada vez mais uma exigência, que se aposte em cartas de missão diferenciadas e preparadas caso a caso, que se definam objetivos ambiciosos e “contratualizados”, que se definam perfis que a seguir permitam antever resultados positivos relativamente àquilo que, é bom tê-lo presente, representa um investimento importante de recursos públicos.
A ação externa da Defesa Nacional num enquadramento alargado
É uma razoável evidência a afirmação de que as opções fundamentais da Defesa Nacional têm sido, em Democracia, serenamente constantes e quase sempre estáveis. É uso dizer-se, e é prática, a nossa pertença comprometida à OTAN (e ao seu subsistema de segurança coletiva), da qual Portugal é membro fundador. É firme o nosso comprometimento com o multilateralismo, bem representado pelas Nações Unidas e pelas suas missões a que, aliás, o Governo bem decidiu “regressar” depois de um quase interregno que já ia longo. E é assumido o amplo acordo percebido relativamente ao aprofundamento da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) da União Europeia e, desde há meses, na Cooperação Estruturada Permanente. Tem a experiência mostrado, no entanto, que uma coisa é a afirmação destes consensos, que se têm como fundamentais e não se contestam. Outra, bastante diversa, é a forma de interpretar estes compromissos e de os executar. Dir-se-á que, para o efeito, um dos pilares é o Conceito Estratégico de Defesa Nacional e o que lá se afirma sobre o conjunto de prioridades, desafios, ameaças e oportunidades para o País.
Convir-se-á, no entanto, que as prioridades em banda demasiado larga equivalem, na prática, a prioridades demasiadas e, no fim, à grande dificuldade em as definir com suficiente clareza para todos os agentes da Defesa Nacional – desde o plano do decisor político àquele em que estão envolvidos, também com capacidade de decisão, o Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas e os Chefes de Estado-Maior dos três Ramos. Isso explica a necessidade de a ação externa da Defesa Nacional se dotar de instrumentos interpretativos que, acompanhando aquele documento-base, permitam a sua transferência para a realidade da decisão.
Exige-se, então, como tarefa primária de política de Defesa Nacional, que regularmente se dê a conhecer, através de diretivas claras e inequívocas, o sentido concreto e atualizado (exequível) das orientações neste domínio. É verdade que algo de natureza relativamente próxima é aquilo que resultará do exercício de planeamento anual das forças nacionais destacadas, incluindo uma proposta de empenhamento operacional depois apreciada (entre outros) pelo Conselho Superior de Defesa Nacional e na Assembleia da República. Em teoria – a teoria, infelizmente, nem sempre tem correspondência com a realidade – deveria este momento traduzir-se numa articulação harmoniosa entre a direção ou orientação políticas (no caso, sob impulso propositivo da Direção-Geral de Política de Defesa Nacional) e a autoridade ou competência operacional, detida, essencialmente, no Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas. Mas, não costuma ser assim. Por inércia, por uso, por habituação ou por mera ação de encaixe na disponibilidade orçamental, nem sempre se deteta, com suficiente clareza, o porquê das decisões, a sua integração sistemática, a sua justificação. Tome-se o caso da KFOR, a missão da OTAN no Kosovo. Não tem justificação fácil a circunstância da persistência na continuação de uma presença nacional robusta quando há vários anos vinha sendo insistido pelos Negócios Estrangeiros, sem argumentação convincente em contrário da Defesa Nacional, que essa não era uma prioridade da política externa e que, em consequência, se aconselhava a natural descontinuação da nossa participação em tal missão; e quando, por outro lado e reciprocamente, era patente que à mesma conclusão se chegava com um raciocínio objetivo de política de Defesa Nacional.
A montante, importa também chamar a jogo, até pela sua atualidade, o processo de revisão da Lei de Programação Militar (LPM). Esta é, mas só na aparência, uma problemática apenas nacional. De fato, quem assim pensar terá dificuldades sérias em abarcar o real alcance deste procedimento, a tal projeção de que atrás se fala. Porque a LPM contende com a ação externa da Defesa Nacional e até, indiscutivelmente, com expressões da política externa nacional. Em sentido mais dogmático, porque a Defesa Nacional deixou de ser imaginável de forma só autóctone, pelo que o desenho das capacidades terá sempre de tomar em consideração uma teia de relações cooperativas mais ou menos institucionalizadas, que sempre são condicionantes quando da tomada de decisão. Em segundo lugar porque, no plano político, tanto na esfera da OTAN como na da União Europeia, a despesa com a Defesa deixou de ser matéria neutra e simplesmente financeira, ou de estrita reserva de soberania, invisível do exterior. Bem diferentemente, incorpora uma série de obrigações recentes que remontam, pelo menos, à Cimeira de Gales da OTAN, em 2014. Esta organização determina três critérios de avaliação (cash, capabilities and contributions) e estabelece, quanto aos dois primeiros, metas quantitativas (por ano, respetivamente, 2% do PIB e 20% dessas verbas em investimento, a alcançar até 2024). Ou seja, a decisão, e as opções, que constarem da LPM revista, serão apreciadas (avaliadas) também sob este enfoque. A Cooperação Estruturada Permanente, na UE, replica mutatis mutandis a mesma ideia. E, no que respeita às capacidades, é de todos conhecido o adstringente ciclo de planeamento de Defesa da OTAN (NATO Defence Planning Process, NDPP), que aponta objetivos “assumidos” pelos Estados a médio ou longo prazo, quase sempre pressupondo investimentos avultados que depois, como é bom de ver, virão a ser incorporados como previsão na LPM.
Diga-se de todo o modo que, mesmo na suposição de que estas obrigações não existiam (mas existem), sempre seria dever público reforçado a demonstração de uma relação de coerência percetível entre capacidades e opções de Defesa Nacional na esfera externa. Com efeito, considerando aquela que é, por definição, a natureza finita e escassa dos recursos financeiros disponíveis e, além disso, a natureza das operações e missões em que é previsível venham estar envolvidas as Forças Armadas, o objetivo aquisitivo primeiro haverá de ser o de garantir que aquelas dispõem das capacidades adequadas ao seu cumprimento. Não serve de argumento, neste caso, alegar-se a recusa de um qualquer princípio de especialização, ou a defesa de capacidades tão transversais e omnívoras que permitam, num futuro eventual, acorrer indistintamente a todo o tipo de ameaças ou potenciais agressões. Realmente, do que se trata é de estabelecer prioridades, temporalizadas e hierarquizadas segundo um princípio de adequação a um fim. Ora, segundo esta abordagem, as prioridades não são congeminações teóricas e (sem por em causa uma regra de razoabilidade) também não deverão ter por objetivo satisfazer hipotéticas regras não escritas de equilíbrio aquisitivo entre os diferentes Ramos das Forças Armadas.
Muito diferentemente: se é possível estabelecer uma tipologia indicativa de missões e operações para as quais as Forças Armadas estão vocacionadas atualmente, a curto ou médio prazo, então as opções em capacidades devem dar primazia transparente e sindicável ao preenchimento das necessidades pressupostas nessas missões e operações. Se, por exemplo, uma das questões mais fundamentais com que nos deparamos é a da necessidade de reforço da capacidade de exercício efetivo de jurisdição sobre os nossos espaços marítimos, é claro que a Marinha e a Força Aérea devem ter os meios que, de forma mais eficiente e ao menor custo possível, permitam realizar esse desígnio coletivo que, seguramente, ninguém põe em causa. Se a orientação política clara é a do reforço (possível) do orçamento atribuído às forças nacionais destacadas, e se o Exército se tem destacado em determinado tipo de missões, num determinado referencial geográfico, é certo que a Lei de Programação Militar deverá refletir esse dado e concretizá-lo em determinadas capacidades. E o mesmo valerá, como é claro, para a Força Aérea. Por isso, não repugna, antes se tem como desejável, que um juízo probabilístico da necessidade (fundamentado) seja relevante no momento da escolha. Se nos casos apontados é certa a necessidade, não se vê porque deveria ceder perante outra muito menos provável ou, até, de todo improvável.
Por isso, também, é importante que refira, porque não podem ser dissociadas, a adoção da Diretiva para a Ação Externa da Defesa Nacional e a Diretiva Ministerial de Orientação Política para o Investimento na Defesa, de 12 de abril de 2018, publicadas em Diário da República no dia 23 de abril.
A Diretiva Ministerial de Orientação Política para o Investimento na Defesa enquadra a necessidade de revisão da Lei de Programação Militar com vista ao novo Ciclo de Planeamento de Defesa Militar e estabelece as linhas de orientação política a respeitar bem como a metodologia a ser utilizada.
A Diretiva para Ação Externa da Defesa Nacional articula-se do seguinte modo: considerações introdutórias; enquadramento do ciclo de planeamento de defesa militar; desenvolvimentos recentes no ambiente estratégico; e definição dos aspetos a observar no futuro planeamento de Defesa e na revisão do quadro legal do investimento em Defesa (2019-2022).
Aquelas diretivas estabelecem, portanto, a orientação política, sumarizando os princípios, objetivos, orientações e prioridades da política de Defesa Nacional, complementados pelas orientações relevantes do planeamento da OTAN e da União Europeia, enunciando em termos genéricos as capacidades a edificar e as prioridades associadas e definindo a quantidade, escala e natureza das operações a realizar pelas Forças Armadas, tendo em vista o próximo Ciclo de Planeamento de Defesa Militar.
Assim, entre outras medidas, ali se determina a avaliação da eventual necessidade de revisão e atualização ou confirmação dos documentos estruturantes do Ciclo de Planeamento de Defesa Militar: (i) Diretiva Ministerial de Planeamento de Defesa Militar; (ii) Conceito Estratégico Militar; (iii) Missões das Forças Armadas; (iv) Sistema de Forças Nacional e; (v) Dispositivo de Forças. Assim como a elaboração até ao final de julho de 2018 de um relatório que caracterize (i) a evolução do ambiente estratégico desde a adoção do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (de abril de 2013); (ii) as linhas de orientação política a que devem obedecer o planeamento das forças nacionais no exterior, em função da evolução do ambiente estratégico, considerando os quadros multilaterais, multinacionais e bilaterais onde nos integramos e atuamos, incluindo a priorização das missões e operações em função das áreas geográficas de interesse estratégico.
Pretende-se, em suma, a definição e edificação de um Sistema de Forças Nacional assente em critérios de atuação, preparação e eficácia das Forças Armadas, contribuindo igualmente para a definição adequada das orientações políticas da Lei de Programação Militar.
Por isso, também, a atualização da legislação, das décadas de 1980 e 1990, que enquadra a participação de militares e civis fora do território nacional (i) de Forças Destacadas em Missões ou Operações Militares ou Civis; (ii) de Cooperação no Domínio da Defesa e; (iii) de Cargos Internacionais da Defesa Nacional, com a elaboração num prazo de 90 dias de um projeto legislativo que concentre num único diploma as várias dimensões da ação externa da Defesa Nacional, unificando, atualizando e dando coerência aos respetivos regimes jurídicos dispersos por vários diplomas, é um dos resultados determinados.
Uma intervenção legislativa urgente
Retornando ao início, visualiza-se como é imperiosa a atualização coerente dos diferentes instrumentos que, desagregados, regulam a ação externa da Defesa Nacional. Além de referências esparsas na Lei de Defesa Nacional (artigos 9º, 12º, 14º, 17º e 24º), Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas (LOBOFA) (artigos 4º, nº 1, alíneas b) a d), 11º e 17º) e na Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional (artigo 13º), essencialmente vocacionadas para definição de competências, e compulsada a legislação vigente, ela versa sobre os adidos de Defesa (Decreto-Lei nº 56/81, de 31 de março); as chamadas forças nacionais destacadas (Decreto-Lei nº 233/96, de 7 de dezembro), com a revisão relativa à previsão de um seguro de vida (Decreto-Lei nº 348/99, de 27 de agosto); e, finalmente, a cooperação técnico-militar (Decreto-Lei nº 238/96, de 13 de dezembro).
Depois, há questões que ao longo dos anos têm vindo a ser glosadas e exigem resposta. Por exemplo, terá utilidade real (e vantagem) a separação funcional estrita entre o adido de defesa e a estrutura de cooperação no domínio da defesa, ou será de admitir que o adido de defesa possa vir, por regra, a exercer funções de coordenação da cooperação nesta área? Nos casos que já se conhecem in loco, não ficou claro que esta divisão de águas fosse vantajosa. Não se intui assim que a solução vigente tenha que ser dogma, e nem sequer é elemento suficiente para afastar outra hipótese dizer-se que o adido, de alguma maneira, está “relacionado” com a diplomacia. É com efeito verdade que, da mesma maneira, podem ser apresentados argumentos que desaconselham a solução atual. Compulsada a prática de outros países europeus relativamente aos adidos de defesa, verificam-se diferenças relevantes quanto ao processo de formação, de seleção, à patente exigida, e até relativamente às entidades que nomeiam e àquelas perante as quais o adido de defesa deve reportar. No nosso caso, a ação do adido é dirigida pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas; mas o adido depende, funcionalmente, da Direção-Geral de Política de Defesa Nacional; e fica por esclarecer qual a sua relação, de dependência hierárquica ou outra, relativamente ao representante diplomático que dirige a missão. Infelizmente, são demasiados os exemplos que comprovam que a ambiguidade nunca é boa conselheira nestas situações, pelo que esta reflexão é de atualidade e urgente.
Sobre a cooperação técnico-militar, melhor se falará cada vez mais em cooperação no domínio da Defesa, mais alargada e que pode até ir além das baias da cooperação bilateral e envolver um terceiro Estado (estando em curso adiantado as negociações para um acordo deste tipo entre Portugal, Cabo Verde e o Luxemburgo). Por outro lado, o modo como foi concebida correspondeu a um determinado período pós-colonial, bastante rígido e, sobretudo, traduziu-se num modelo único, qualquer que fosse o Estado com o qual se estabelecia a relação de cooperação. É discutível, para dizer o menos, que a cooperação no domínio da Defesa deva ser a mesma, ou ter os mesmos parâmetros, entre Portugal e Moçambique, ou entre Portugal e Timor-Leste. Dir-se-á que, para o efeito, os Programas-Quadro, de natureza plurianual, permitem uma melhor definição de objetivos, metas e ações de cooperação. Mas (só) esse exercício pode não ser suficiente.
Poderão e deverão aqueles Programas-Quadro ser adaptados e adaptáveis, aos desafios atuais, estabelecer objetivos claros, monitorizáveis e coerentes com os interesses nacionais. Uma outra questão que se suscita, aceitando a cristalização de uma realidade abrangente de Cooperação no Domínio da Defesa, é a possibilidade de, em determinados casos, se justificar que civis ligados à Defesa Nacional assumam funções no âmbito daquela cooperação em missão fora do território nacional.
Por outro lado, a evolução de algumas das expressões da mais clássica cooperação técnico-militar para modelos de um certo hibridismo é outro dos sinais que, de forma muito nítida, apontam para a vantagem de, a curto prazo, se rever o respetivo regime jurídico. Por um lado, e depois de conhecida in loco a maioria das experiências de cooperação técnico-militar, encontram-se diferenças manifestas, ainda que, em concreto, os modelos de cooperação tendam, no essencial, a replicar-se; e não é menos evidente que a eficiência e superior relação custo-benefício da alocação de recursos públicos a esta forma de cooperação obrigam a que se ponderem, não só os já praticados Programas-Quadro como, por outro lado, uma caracterização mais exigente do perfil dos cooperantes, além de verdadeiras cartas de missão, adequadas à situação e características de cada país e, nele, a cada uma das realidades objeto de cooperação.
O precedente do NRP Zaire, em S. Tomé e Príncipe (já neste ano de 2018) é o exemplo seguinte. É sabido, com certeza, que a específica originalidade deste caso consiste na articulação entre aspetos típicos da cooperação técnico-militar mas, ao mesmo tempo, uma indesmentível componente operacional – que advém da formação e capacitação dos fuzileiros são-tomenses, a partir de certa fase em ações concretas de fiscalização. Continua a ser cooperação técnico-militar ou cooperação no domínio da Defesa, podendo adaptar-se ao quadro jurídico vigente? Cooperação técnico-militar no sentido mais tradicional, com certeza não será, ou muito dificilmente, talvez mesmo só com tortura dos conceitos, estratégia quase sempre pouco avisada e de resultado incerto. Cooperação no domínio da Defesa, provavelmente sim, desde que se acautele a possibilidade de, pelo menos, formação, treino, capacitação e ações operacionais poderem doravante andar de mãos juntas. E não se trata, naturalmente, de afirmar que consiste numa força nacional destacada. No entanto, a componente operacional vem trazer para a liça a necessidade urgente de uma releitura de regimes que clarifique, de vez, como regular este tipo de situações. Isto porque, como é bom de ver, elas valorizam o papel de Portugal no exterior e distinguem-se por uma muito boa relação custo-benefício (num sentido que vai para além do mero juízo economicista).
Agora, sobre as chamadas forças nacionais destacadas. Estas correspondem, na forma mais direta, a operações ou missões internacionais, com forte expressão operacional, o que evidentemente as qualifica para integrarem a ação externa da Defesa Nacional. Mas isso não significa que o que hoje beneficia daquela qualificação tenha previsão sólida nos normativos vigentes. Estes, com efeito, parecem apontar para um sentido mais restritivo, o que não deixa de suscitar alguma perplexidade. A recensão de algumas das disposições normativas relativas à configuração das forças nacionais destacadas consolida esta impressão. No Decreto-Lei nº 233/96, de 7 de dezembro, fala-se na participação “nas ações de defesa e promoção da paz no mundo” (Preâmbulo), ou em “missões de carácter militar com objetivos humanitários ou destinados ao estabelecimento, consolidação ou manutenção da paz” (Id.). Como se vê, a abordagem à questão parte da natureza substantiva da missão para, a jusante, aplicar determinadas regras estatutárias aos militares que nelas participam. Daí que o artigo 1º defina “o estatuto dos militares das Forças Armadas envolvidos em missões humanitárias e de paz fora do território nacional”. Formulação muito semelhante é a que se encontra no artigo 4º, nº 1, alínea b), da LOBOFA que, a respeito das missões das Forças Armadas, fala em “compromissos internacionais do Estado no âmbito militar, incluindo missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faz parte”. Cabe depois ao Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, no âmbito das suas competências e sob orientação do Ministro da Defesa Nacional, a coordenação da “participação das Forças Armadas no plano externo, designadamente nas relações com organismos militares de outros países” (artigo 11º, nº 1, alínea j), LOBOFA), bem como “propor ao Ministro da Defesa Nacional o emprego das forças armadas na satisfação de compromissos internacionais, designadamente as opções de resposta militar” (artigo 11º, nº 2, alínea c), LOBOFA).
Na alínea c) do artigo 4º, nº 1, da LOBOFA, por outro lado, fala-se de missões “no exterior do território nacional” que, em rigor, não é fácil integrar no atual conceito de forças nacionais destacadas. São missões internacionais, de facto; mas “num quadro autónomo ou multinacional, destinadas a garantir a salvaguarda da vida e dos interesses dos portugueses”.
Estas referências normativas são suficientes para se compreender como as forças nacionais destacadas foram construídas em torno de conceitos que evoluíram de forma significativa. Mas, que, na atualidade, não conseguem abarcar alguns dos desafios das missões com expressão operacional que vão sendo prática mais ou menos corrente na ação externa da Defesa Nacional. As missões executadas no quadro das Assurance Measures da OTAN, por exemplo, integram missões de paz ou humanitárias? E a participação da Marinha na SNMG1 (Standing NATO Maritime Group1)? E a operação Sophia, de importância determinante no Mediterrâneo, e onde com tanto mérito têm participado a Marinha e a Força Aérea? Uma missão ou operação que seja decidida no quadro de uma organização internacional não poderá sempre integrar (como é óbvio) aquilo que se designa como missões de paz ou de natureza humanitária, a não ser que a referida organização seja a ONU e a decisão provenha do Conselho de Segurança e se possa enquadrar no sistema de segurança coletiva, ou, em certas circunstâncias, tenha sido acordada – a título principal – da OTAN. Mas tal não significa, já quase entrados na terceira década do século XXI, que as forças nacionais destacadas só possam assim ser qualificadas e tratadas juridicamente se se incluírem nas hipóteses acima versadas.
Assim sendo, deverá a apreciação, de forma ponderada e sensata, atualizar o regime das forças nacionais destacadas com alguns dos elementos referidos e com outros que possam ter-se como úteis. Isto, no entanto, no pressuposto de que a condição sine qua non haverá de ser, sempre, a dimensão operacional do empenhamento (embora porventura, em certos casos, condição não suficiente) de militares das Forças Armadas em missões ou operações externas. Da mesma forma, se a relação (simplesmente) binária forças nacionais destacadas/cooperação técnico-militar vier a mostrar-se insuficiente, haverá de ser ponderada, sem complexos, forma de considerar ações que, sendo já realidade, terão de alguma forma de ser reguladas por instrumento pertinente.
Depois, e ainda quanto às forças nacionais destacadas, haverá certamente consenso em que estas representam, numa expressão particularmente visível, a condição militar. Ainda assim, e como a multiplicação de forças nacionais destacadas tem vindo a comprovar, não se trata de uma realidade homogénea ou monolítica. Parece então defensável que se estabeleça uma diferenciação consoante o risco que objetivamente é imputável à missão, à luz de critérios que sejam facilmente compreensíveis e transparentes. Uma das hipóteses pode ser a do estabelecimento de zonas de risco, ou do risco associável à natureza da missão (o que permitiria, eventualmente – e em certos casos – chegar a resultados diferentes).
Outra, com aquela relacionada, poderia ser a de partir de definições geográficas que, mais em abstrato, qualificassem o risco da missão (é o que hoje sucede relativamente à contagem de tempo associada à missão). Seja como for, a acolher-se esta diferenciação, reforçar-se-iam elementos de justiça relativa, ainda que seja importante que do regime que venha a ser adotado não se pressuponha uma qualquer hierarquia de mérito das missões ou operações. E, em segundo lugar e não menos importante, se os suplementos de missão podem ser graduados consoante os tais níveis de risco operacional, da mesma maneira é importante que fique claro que não se trata de um objetivo de realização de poupança. Porque, naturalmente, se a orientação deste Governo tem sido, como se sabe, a de aumentar em cada ano, sendo possível, a dotação orçamental alocada à ação externa da Defesa Nacional, o que daqui resultará, espera-se, é mais justiça, mais equidade, mais correspondência entre o regime normativo e a realidade.
As nossas Forças Armadas, repito e concluo, são um instrumento importante da nossa política externa, da Colômbia à Lituânia, do Mediterrâneo à República Centro-Africana. É tempo de fazermos entrar no século XXI a regulação da ação externa da Defesa Nacional.