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O ponto de partida foi aquilo a que se pode chamar um asterisco na História: uma operação subversiva contra o Estado Novo que tinha como particularidade ter sido engendrada por surrealistas, e que era tão mas tão obscura que, no limite, podia não passar de um mito, uma efabulação, criada por artistas boémios com pouca ligação à realidade.
Muito poucas pessoas tinham ouvido falar da “Operação Papagaio” — e, mesmo assim, nem essas coincidiam nos detalhes.
Se umas garantiam que tinha acontecido algures nos primeiros anos da década de 1960; outras asseguravam que o plano nem sequer tinha chegado a ser posto em prática; e havia ainda as que falavam de um jogo de hóquei noturno que teria deitado tudo a perder. Enquanto umas colocavam escritores como Mário-Henrique Leiria ou Virgílio Martinho no cenário; outras garantiam que os autores do plano tinham sido afinal poetas como António José Forte, Renato Ribeiro ou Manuel de Castro.
Menos ou mais conhecidos do público em geral, em comum, estes personagens associados à “Operação Papagaio” tinham pelo menos duas coisas. O facto de terem pertencido à chamada segunda geração de artistas surrealistas portugueses. E de fazerem parte do chamado Grupo do Gelo, a tertúlia que no final da década de 50 do século passado se estabeleceu informalmente no café com o mesmo nome, em pleno centro de Lisboa, no Rossio.
Esta é a parte em que todos os relatos que chegaram até hoje concordam: a “Operação Papagaio” foi planeada pelos surrealistas do Café Gelo — o mesmo café de onde, no dia 1 de fevereiro de 1908, saíram Alfredo Costa e Manoel Buíça para assassinar o rei D. Carlos e o príncipe Luís Filipe — para derrubar Salazar.
E, na verdade, esses relatos não estão errados, só incompletos. Como o novo Podcast Plus do Observador vai revelar, esta operação anti-Salazar foi de facto planeada por artistas surrealistas, que desdenhavam de tudo e de todos, gostavam de andar à pancada e, pior do que isso, eram péssimos a guardar segredos — mas não só.
O plano louco, que tinha como objetivo assaltar os estúdios do Rádio Clube Português, interromper a emissão da noite, e pôr uma bobine revolucionária a tocar, com apelos à revolução popular e vivas à liberdade, não foi pensado apenas pelos artistas do Café Gelo. Por detrás desta operação secreta estava uma improvável combinação de surrealistas, militares anti-regime e revolucionários profissionais.
E essa é apenas uma das muitas revelações que durante os últimos 64 anos estiveram escondidas em centenas de páginas dos arquivos da PIDE, armazenadas nas catacumbas da Torre do Tombo. Que nunca, até outubro de 2023, tinham sido consultadas.
Quatro versões diferentes para a mesma operação. Qual delas é a versão certa?
Ao todo, e até agora, existiam quatro versões da “Operação Papagaio”.
A versão do escritor e editor Luiz Pacheco — que morreu em 2008. A versão do escritor Fernando Correia da Silva — que morreu em 2014. A versão do radialista Luís Filipe Costa — que morreu em 2020. E a versão do poeta surrealista Carlos Loures — que morreu em 2022.
Todas foram registadas em livros (como a de Pacheco, numa das crónicas que reuniu em 1998 em Prazo de Validade), em textos publicados na internet ou em artigos de jornal.
Quando, em 2012, publicou “Lx 60”, o primeiro de uma trilogia de livros sobre a vida na capital portuguesa entre 1960 e 1989, a jornalista Joana Stichini Vilela juntou as quatro versões para tentar recuperar a história do misterioso e “inacreditável golpe” que juntou “um número indeterminado de surrealistas” para depor Salazar. E também entrevistou Luís Filipe Costa, o único interveniente confesso do plano vivo naquela altura — que se haveria de tornar, quinze anos depois da “Papagaio”, uma das vozes da revolução que efetivamente pôs fim ao Estado Novo.
Na altura, já enquanto locutor do Rádio Clube Português, Luís Filipe Costa estava a trabalhar na madrugada de 25 de abril de 1974. Foi um dos profissionais que deu voz aos comunicados do Movimento das Forças Armadas e, por isso mesmo, ficou para sempre ligado à história da revolução que determinou a transição para a democracia.
Apesar de a gravação da entrevista se ter perdido, a jornalista mantém ainda a transcrição da conversa que teve com ele — e partilhou esse documento com o Observador. Nessa conversa, para além de ter situado a “Operação Papagaio” em 1959, Luís Filipe Costa revelou que quem o tinha chamado a integrar o grupo de operacionais tinha sido um primo, Henrique dos Santos Carvalho, que, por não ser artista, “não fazia parte do grupo dos surrealistas, mas aparecia com eles”.
Não sabia de quem teria sido a ideia da “Papagaio”, confessou Luís Filipe Costa, na altura desta conversa com 76 anos. Só sabia que tinha sido o primo, que o tinha introduzido nas tertúlias dos cafés de Lisboa e “que já tinha estado nove meses preso” por motivos políticos, quem o tinha recrutado para a operação. Na conversa com Joana Stichini Vilela, o histórico locutor e realizador também revelou que tinha sido esse mesmo primo o responsável por arranjar as armas usadas durante a operação. “Posso testemunhar que uma talvez funcionasse, a outra não funcionava e a terceira era um ‘canhangulo’. Agora, arranjar isto, na Lisboa dos anos 60, só o meu primo!”
Décadas antes, num artigo que tinha sido convidado a escrever, no efémero Semanário Extra, para assinalar os três anos da revolução de 25 de Abril, Luís Filipe Costa tinha colocado a “Operação Papagaio Desesperado”, como lhe chamou, um ano antes, em 1958. Mas já então tinha realçado o papel de Henrique dos Santos Carvalho no plano: era o primo quem chefiava o grupo de revolucionários. Justamente o primo, um completo desconhecido, que, ainda para mais, nem sequer figurava em nenhuma das outras três versões da “Papagaio”.
Por muito inverosímil que pudesse parecer, décadas mais tarde a consulta dos arquivos da polícia política de Salazar veio confirmar que foi mesmo assim. Luís Filipe Costa estava correto.
Personagem principal: Gavroche
Esta ação subversiva contra o regime de Salazar teve efetivamente como cabecilha Henrique dos Santos Carvalho, filho único e rebelde de um homem temente ao regime, que começou a afrontar Salazar ainda durante a adolescência e tinha uma série de amigos entre os surrealistas de Lisboa. Era mais conhecido como “Gavroche”, uma alcunha importada do francês para miúdo esperto e atrevido, como o personagem do clássico “Os Miseráveis”.
O novo Podcast Plus do Observador conta a história de Gavroche e da operação que ele planeou, nas mesas de vários cafés de Lisboa. E não só: desde o início, com este revolucionário, assumidamente anarquista, esteve o poeta António José Forte, um dos mais considerados surrealistas portugueses. À medida que o plano foi ganhando forma, juntaram-se-lhes outros personagens, também bem conhecidos da História nacional — não apenas poetas, pintores e escritores, mas também militares de carreira, com envolvimento em alguns dos mais arrojados golpes contra Salazar.
E revolucionários profissionais, como Artílio Batista, o serralheiro do Barreiro que, anos depois da “Papagaio”, em 1971, viria a fabricar e colocar a bomba que foi detonada na base da NATO na Fonte da Telha e deu a conhecer ao país as Brigadas Revolucionárias, de Carlos Antunes e Isabel do Carmo.
Todos eles respondiam por nomes de código, para não se comprometerem se alguém fosse apanhado pela PIDE e obrigado a revelar os detalhes da operação que estavam a preparar. Havia um “Heitor”, um “Alberto”, um “Dias” e até uma “Alice”, a mulher loura, de cabelos oxigenados, que todos os dias de manhã apanhava o mesmo comboio que Gavroche mas só estabelecia contacto com ele caso tivesse uma mensagem secreta, de um dos outros operacionais, para lhe entregar.
Nunca falavam durante a viagem, o modus operandi era sempre o mesmo: depois de saírem na estação do Cais do Sodré, procuravam um lugar mais sossegado, para poderem conspirar à vontade e longe de olhares indiscretos. E foi isso que aconteceu na manhã em que “Alice”, que na verdade se chamava Maria Eduarda e era casada com um militar, se aproximou de Gavroche na carruagem e lhe segredou: “Tenho um livro para si”.
Quando finalmente se sentaram, à mesa do Café Royal, o que ela lhe entregou foi afinal um recado: os militares que representava tinham noção de que preparar uma operação como aquelas não era fácil e, por isso mesmo, comprometiam-se a arranjar não apenas armas e munições, mas também dinheiro vivo. Uns dias mais tarde, quando voltaram a encontrar-se, “Alice” entregou-lhe mil e quinhentos escudos. Entre outras coisas, serviriam para alugar um dos carros para transportar metade dos operacionais para o Rádio Clube Português, onde seria emitida a bobine com a mensagem revolucionária.
A ligação ao crime do Guincho
Um dos militares envolvidos no plano da “Operação Papagaio” era o aspirante a oficial médico João Jacques Valente — o marido de “Alice”. O outro era o capitão de cavalaria José Joaquim Almeida Santos. Um repetente nas ações anti-Salazar que, quando entrou para o grupo subversivo entretanto formado para fazer a “Papagaio” e outras operações, até estava preso, no Presídio da Trafaria. Justamente por envolvimento no chamado “Golpe da Sé”, que queria ter posto fim ao Estado Novo na madrugada de 11 para 12 de Março desse mesmo ano, 1959, mas acabou por nem acontecer, gorado pela PIDE.
Apesar de se ter distinguido pela atividade anti-regime, o capitão Almeida Santos acabou por tornar-se célebre por outros motivos — e já depois de morrer.
Essa é uma das histórias mais conhecidas da literatura portuguesa, fundo de realidade trabalhado por José Cardoso Pires no romance A Balada da Praia dos Cães. Aquilo que nunca tinha sido revelado é que, apenas seis meses antes de ser assassinado, Almeida Santos tinha estado envolvido na “Operação Papagaio”. Tal como um dos homens que o matou.
Foi na manhã de 31 de março de 1960, que um pescador, alertado por uma matilha de cães, à solta na praia do Guincho, fez a descoberta macabra de um cadáver, semienterrado na areia, já em avançado estado de decomposição.
Apesar de, na altura, os jornais terem vaticinado que a identidade do morto iria ser difícil de apurar, apenas dois dias mais tarde foi tornado público que o homem, morto com vários tiros de pistola e pázadas na cabeça, era o capitão Almeida Santos, que tinha escapado do presídio militar de Elvas, para onde entretanto tinha sido transferido, quatro meses antes.
Não muito tempo depois, e apesar de a oposição ao governo encabeçado por António de Oliveira Salazar ter alimentado a tese de que o crime teria sido obra da PIDE, como castigo letal pela fuga da cadeia e pelo “Golpe da Sé”, foram detidos os autores confessos do homicídio.
A investigação desencadeada a partir dos primeiros interrogatórios levou a polícia política do Estado Novo não apenas a Gavroche, mas aos outros operacionais da “Operação Papagaio”. Escassos meses antes, vítima e assassino tinham engendrado, a partir da prisão, mais um golpe para derrubar Salazar, e criado uma nova organização subversiva para resistir ao regime — tudo com a colaboração daqueles homens.
Foram todos detidos, e Gavroche, que tinha prometido à mulher que ia deixar-se de revoluções e dar mais atenção à família, estava preso no Aljube quando a segunda filha nasceu. “Eu nasci em agosto de 1960, ele foi preso em junho”, conta Bárbara Airola, essa filha que, por nunca ter tido ligação com o pai, prefere usar o apelido da mãe, finlandesa. “A minha mãe disse-me que tinham falado em ter um outro filho. Então ele teria que ficar quieto, não podia continuar com aquelas atividades, porque ela não podia ficar sozinha com dois miúdos. E quando estava grávida de mim, ele foi preso. E ela ficou muito chateada com ele por causa disso.”
Até agora, esta parte não fazia estava incluída na história — e também não fez parte do romance policial que Cardoso Pires, um dos nomes maiores da literatura portuguesa, publicou em 1982, para arrebatar o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores e derrotar o Memorial do Convento, de José Saramago.
Todas estas ligações estavam também escondidas nos arquivos da PIDE — os tais que, durante 64 anos, não foram consultados por ninguém. O novo Podcast Plus do Observador vai revelá-las a todas e separar os mitos daquilo que verdadeiramente aconteceu nestes anos, que são também os anos em que a contestação ao Estado Novo mais cresceu, alavancada pelas eleições presidenciais de 1958 — em que o General Humberto Delgado saiu derrotado, mas não sem dar origem a uma crise sem precedentes no regime.
Isto sem esquecer A Balada da Praia dos Cães, o policial que José Cardoso Pires publicou já em democracia — mas começou a escrever muitos anos antes. Acabou foi por pôr o livro na gaveta com medo do aproveitamento político que o Estado Novo poderia vir a fazer dele, explica Bruno Vieira Amaral, autor de Integrado Marginal, a biografia do escritor.
“Ele sabia que escrever sobre um tema tão delicado na altura acabaria por dar uma imagem negativa dos meios oposicionistas. Não era fácil. Até poderia servir os interesses do próprio regime e suscitar críticas de pessoas que lhe eram próximas e das quais ele estava próximo politicamente”, diz o biógrafo de José Cardoso Pires. “Ele tinha algum receio de que pudesse haver esse aproveitamento, porque obviamente queria escrever em liberdade. Não queria escrever um panfleto a favor ou contra o regime, era um romancista, um escritor, não queria fazer nenhum libelo nem um panfleto ideológico. Mas também não era parvo. Sabia que, escrevesse ele o que escrevesse, poderia haver um aproveitamento político de uma parte ou de outra — e o que ele não queria é que houvesse um aproveitamento político por parte do regime.”
Dados estes receios, Cardoso Pires acabou por publicar o romance oito anos depois da revolução, em dezembro de 1982. Ainda assim, não conseguiu evitar a polémica e foram vários os que o criticaram pela forma como contou a história e retratou o capitão Almeida Santos — como o advogado Francisco Sousa Tavares que, com a mulher, Sophia de Mello Breyner, foi dos poucos amigos presentes no funeral do capitão, e com o coronel João Varela Gomes à cabeça.
A “Operação Papagaio” vai revelar como todos estes personagens que marcaram a história recente do país se relacionaram com outro, Gavroche, um homem que, apesar de ter organizado o golpe mais louco contra Salazar, numa das fases mais críticas de contestação ao Estado Novo, não entrou para a História. Mas, ainda assim, não deixou nunca de ser um personagem — até ao fim.
A “Operação Papagaio” é uma série com seis episódios para ouvir no site e nas redes sociais do Observador, na Rádio Observador e também nas habituais plataformas de podcast e no Youtube. Todas as terças-feiras é disponibilizado um novo episódio. As entrevistas são de João Santos Duarte e Tânia Pereirinha. O guião é de Tânia Pereirinha. A sonorização e pós-produção áudio são de Diogo Casinha. A edição é de João Santos Duarte. A narração é de Miguel Guilherme e a música original de Rita Redshoes.
Já pode ouvir aqui o primeiro episódio e o trailer.
Estreia. “Operação Papagaio”. Episódio 1: “A organização secreta”
Operação Papagaio. O plano louco que juntou artistas e militares para tentar derrubar Salazar