O Utopia nasceu com ambição, querendo fazer jus ao nome que adotou. Os objetivos da organização, a The Book Company (pertencente ao grupo editorial Penguim Random House) foram claros desde o início: a internacionalização, sem nunca abandonar Braga, apontando mira para Espanha, onde planeia estrear-se já em 2025, e para a América Latina (com Colômbia e México como possíveis anfitriões); a curadoria de uma programação com nomes da primeira linha da literatura nacional e internacional (são mais de 100 oradores a marcar presença nesta primeira edição); a envolvência de diferentes agentes da cidade, alargando o festival para espectros pouco usais, como as empresas da região; e a aproximação das livrarias bracarenses a um público mais segmentado do que o habitual frequentador da Feira do Livro (entretanto suspensa). “Queremos fazer uma marca global literária”, declarou Paulo Ferreira ao Observador, já depois de ter dito ao Público que queria fazer do festival (cujo investimento ronda os 300 mil euros) “o maior evento literário do país”.
Terminado o primeiro fim-de-semana, ficámos com a sensação de que ainda estamos longe de testemunhar todo o potencial anunciado. Embora tivéssemos saído de Braga com boas conversas para degustar no regresso a casa, faltou um verdadeiro efeito de novidade que acentuasse uma diferença clara entre o Utopia e outros festivais literários portugueses. “É impossível numa primeira edição de doze dias abarcamos tudo. Vamos caminhando e lá chegaremos”, ressalvou o diretor da The Book Company.
Os indícios, contudo, são positivos e temos razões para estar otimistas. Desde logo, a consistência da programação, com nomes como a romancista russa Ludmila Ulitskaya, crónica indicada ao Prémio Nobel, que será entrevistada por Isabel Lucas no dia 11 de novembro (16h); as entrevistas de vida ao filósofo francês Gilles Lipovetsky (11 nov., 18h), a Lídia Jorge (12 nov., 18h) ou a Miguel Esteves Cardoso, esta última já realizada; o workshop “Como escrever um romance”, lecionado por João Tordo nos dias 10 de novembro, às 18h30 (parte I) e 11 de novembro, às 10h (parte II); o diálogo com outras disciplinas artísticas, seja através do espetáculo inédito e multidisciplinar já apresentado por Afonso Cruz (O que a chama iluminou), o concerto de Mallu Magalhães, no Theatro Circo (11 nov., 21h30) e a conversa com David Mitchell, argumentista de Matrix (11 nov., 15h); ou as exposições paralelas apresentadas na Galeria do Paço.
A vontade de gerar sinergias com outros eventos-irmãos, do qual o acordo intermunicipal com o Fólio, de Óbidos, e o 5L, de Lisboa são o exemplo mais concreto, também abre boas perspetivas para que os festivais literários portugueses se estimulem mutuamente e não caiam nas suas próprias redundâncias e limitações. O tempo, cremos, será o parceiro mais valioso do Utopia para que tudo aquilo que foi projetado possa, efetivamente, ser concretizado. Para já, fazemos um apanhado dos principais destaques destes primeiros dias de festival, onde a chuva foi inclemente e o público intermitente.
“Esta vida é uma viagem / Pena eu estar só de passagem”
Na sessão inaugural, Frederico Loureço atentou a ambiguidade das palavras pegando no apóstolo João para, a partir do seu evangelho, mostrar o quão ele era um “artista dos jogos de palavras”. Em No princípio era o verbo, a palavra “verbo”, segundo o próprio anota no Volume 1 da sua tradução da Bíblia a partir do grego, contém em si a razão, o raciocínio, o argumento e o discurso. Em suma, o logos.
Da mesma forma, a palavra “viagem” assumiu no Utopia várias significâncias: históricas, geográficas, pessoais e comunitárias. De tal forma esta ideia esteve sempre subjacente ao festival que a poderíamos destacar como um quase subtema derivado do tema principal, a utopia.
Fosse na forma como se discorreu sobre o ressurgimento das biografias, numa mesa que juntou o jornalista José Manuel dos Santos e João Pedro George, biógrafo de Luiz Pacheco que prepara atualmente uma nova biografia sobre Herberto Hélder; fosse pela entrevista de vida a Miguel Esteves Cardoso, onde o cronista e escritor reviu a sua carreira, o seu modo de escrita e refletiu sobre como “o tempo estraga as coisas velhas para haver espaço para as coisas novas”.
A conversa passou também pela música e por um Miguel Esteves Cardoso adolescente que se resguardava nas palavras de Leonard Cohen para se conseguir expressar, ao mesmo tempo que o próprio destacava nomes como Weyes Blood para salvaguardar a importância de “não se entrar no conforto de ouvir só o que já se tenha ouvido”.
Da escrita, MEC referiu tratar-se de um exercício de ginástica que qualquer pessoa, “desde que faça o treino”, se pode dedicar. A receita, de acordo com o autor de O Amor é Fodido, passa por duas horas fixas de escrita, “durante pelo menos dois anos”, de onde se extrairá o sumo que interessa. Sempre com boa disposição, Esteves Cardoso ainda discorreu sobre o papel “politicamente importantíssimo” da comida e sobre a relação dos portugueses com o país. “Nos anos 70, os portugueses odiavam-se. A mim sempre me deu imenso gosto falar de Portugal e serem os portugueses a lerem-me. Era uma provocação para pôr as pessoas a falar delas próprias”.
De viagens também se fizeram as quatro exposições permanentes que o Utopia programou para a Galeria do Paço, no centro histórico, e que estarão patentes até ao final do festival (infelizmente, a galeria fecha ao domingo, um detalhe que deveria ter sido considerado previamente, uma vez que o domingo é um dos dias mais fortes do Utopia).
Em 100 textos em viagem, de Gonçalo M. Tavares, o escritor apresenta pequenas observações, sequenciadas e organizadas por degradês cromáticos, sobre o ato de viajar, a partir de excertos de Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Eduardo Galeano, Robert Walser, Sophia de Mello Breyner e outros escritores e artistas que influenciaram o autor de Como Aprender a rezar na Era da Técnica.
Já Múltiplo Leminski chega pela segunda vez a Portugal (depois de ter sido apresentada em 2021 na Casa da América Latina, em Lisboa), mostrando a versatilidade artística de um dos intelectuais mais disruptivos e importantes do século XX no Brasil. A viagem, aqui, faz-se entre um Paulo Leminki poeta, aquele que acredita “nessa coisa inútil que é a pura beleza da linguagem”, o músico que encontrou nos acordes um sentido para a sua poesia (ele que é autor de letras célebres como Promessas Demais, interpretada por Ney Matogrosso), o praticante de judo, que vê no deporto a disciplina que ajuda a sublimar a capacidade de não hesitar perante uma intuição, o homem para quem “Esta vida é uma viagem / Pena eu estar só de passagem”.
A estas duas exposições, juntam-se Reconstituição Portuguesa, um mergulho de Viton Araújo e Diego Tórgo na Constituição Portuguesa de 1933 que exalta os valores de Abril que se viriam a impor sobre a ditadura fascista portuguesa; e Hachiko, o cão que esperava, a partir do livro do autor catalão Lluís Prats, que participará na conversa “A geografia sentimental”, a ter lugar no dia 12 de novembro, domingo, às 17h.
A vida não vale para muita gente mais do que um botão
Nesta primeira edição, o Utopia assumiu a vontade de apostar em residências artísticas que gerassem um “reservatório de conteúdos” potencialmente internacionalizáveis, explicou Paulo Ferreira, justificando o convite a Afonso Cruz para pensar num espetáculo para a Capela Imaculada – distinguida pela prestigiada revista de arquitetura ArchDaily – pelo carácter multidisciplinar do seu trabalho.
Assim, o escritor de Para Onde Vão os Guarda-Chuvas, que acabou de lançar a obra dramatúrgica O Cultivo de Flores de Plástico, pegou na sua bagagem pessoal para, ao lado da artista Mariana Ramos Correia, cruzar espaços, tempos e personagens através da palavra, da performance, da fotografia e da música.
O que a chama iluminou centra-se na estadia do autor no Chile durante a revolta social de 2019, aquela que começou por causa do aumento das tarifas do metro e que rapidamente mobilizou vários quadrantes sociais que exigiam melhores condições de vida e a revisão da Constituição, aprovada durante a ditadura de Augusto Pinochet. Intercalando experiências pessoais – como a perseguição por um guanaco (nome que a população dá aos tanques da polícia chilena) ou o acidente de carro que sofreu a caminho da Patagónia – com acontecimentos históricos, o autor discorreu sobre a perda, as relações de abuso de poder e sobre o valor absoluto e relativo da vida humana.
“A vida não vale para muita gente mais do que um botão”, diria a certa altura do espetáculo, quando introduziu a história de Orundellico, o indígena da tribo Yaghan que foi levado pelo capitão inglês Robert FitzRoy, em troca de um botão, para ser aculturado na Europa e servir de interlocutor entre os dois povos. Jemmy Button, assim batizado em Inglaterra, viveu o resto da vida entre duas realidades, não se revendo nem como indígena nem como europeu.
A perda de identidade, a desumanização, a extinção de povos ancestrais, a crise ambiental e a autofagia da espécie humana – que Afonso Cruz compara a duas leveduras de cerveja, que se consomem vorazmente – foram temas pela qual o autor se foi passeando, expondo a linha ténue que separa o indigno da dignidade, a sobrevivência ou a capitulação. Para já, ainda não há novas datas para a apresentação do espetáculo, mas a vontade de Afonso Cruz é que ele circule pelo país.
O limite do humor
Às 15h de sábado, dia 4 de novembro, o Espaço Vita – onde decorrem as principais sessões do festival – recebeu uma das sessões mais concorridas deste primeiro fim de semana: o humorista Bruno Nogueira e o músico e autor Filipe Melo discorreram sobre os territórios do humor, territórios mais necessários quanto mais circunscritos, defenderam. “Parece um exercício extravagante nos tempos que correm uma pessoa falar livremente”, observou Bruno Nogueira, ator que diz receber diariamente ameaças de morte de Angola e do Brasil por causa do seu programa O Último a Sair, atualmente a passar nestes dois países.
Questionado pelo público se se arrepende de alguma tirada que assinou, o humorista afirmou que hoje encararia determinadas coisas de forma diferente, mas que está em paz com isso: “Se estamos preocupados com o tipo de humor que deveríamos ter feito, vamos ter sempre uma luta connosco próprios. Assim como vamos mudando enquanto espectadores, também me interessa mudar enquanto humorista.”
Falar livremente, sublinhou, implica ter “arcaboiço para aceitar que nem toda a gente vai aceitar” o que é dito. “Tem que se estar preparado para uma reação adversa”, advertiu, ao invés de assumir uma atitude de vitimização.
Ao longo de uma hora, falou-se também do movimento woke, com Bruno Nogueira a usar o termo “cobardia” para apontar a forma como acontecimentos antigos são cancelados “à luz de 2023” e sobre o modo como o ritmo das redes sociais veio alterar a perceção do tempo. “Uma boa ideia vem de tempo e isso é difícil de justificar com as redes sociais”.
Utopias a melhorar
O tempo – não o cronológico, mas o meteorológico – esteve de cara fechada nos primeiros dias de Utopia. Choveu raivosamente durante quase todo o festival e o frio obrigou a resgatar do fundo dos armários as lãs e os casacos do inverno profundo. Talvez isso explique o porquê de algumas sessões terem estado aquém do aviso “ESGOTADO” que há semanas vinha aparecendo no site oficial do festival.
Apesar de Paulo Ferreira ter garantido ao Observador que houve sessões que esgotaram em 11 minutos e que a procura foi de tal forma interessada que a organização chegou a recear “um motim”, isso não se repercutiu no movimento sentido no Espaço Vita. Parte do público que tinha conseguido garantir uma das muitas entradas gratuitas para o festival não marcou presença, com exceção das sessões de abertura (que juntou Ricardo Araújo Pereira a Frederico Lourenço), da de Bruno Nogueira e Filipe Melo e da entrevista de vida a Miguel Esteves Cardoso, nas quais não se viu praticamente um lugar vazio.
Esta é uma das situações que o festival deverá rever nas próximas edições e que favorecerá todos os participantes, embora a gratuitidade do evento não esteja, para já, em causa, assegura a organização.
Outro aspeto a melhorar é a participação dos livreiros que, de uma forma geral, se mostraram desapontados com as vendas. E isso, em grande parte, se deveu ao posicionamento dos stands, num claustro que não tinha acesso direto à Capela Imaculada, onde decorreram as principais sessões.
“Para nós, livreiros, era melhor a Feira do Livro”, desabafou Conceição, responsável da Livraria Ponto dos Falcões, que, mesmo com as vendas muito abaixo das expetativas, tentava atiçar a curiosidade do pouco público que por ali passava com os títulos de Afonso Cruz. “Não me parece que um evento colidisse com o outro”, notou, fazendo referência à Feira do Livro de Braga que a autarquia suprimiu (com muitas críticas da oposição) para dar total destaque ao Utopia, numa estratégia focada na “dimensão cultural” e não tanto na “dimensão comercial” do evento, segundo palavras do próprio presidente, Ricardo Rio.
Sandra Sousa, da livraria Era Uma Vez (uma das sete presentes no festival) também se sentiu defraudada com as vendas, mostrando-se saudosista em relação à Feira do Livro, que costumava acontecer durante o verão no centro histórico da cidade: “Era um sítio mais central por onde passavam mais pessoas”. Em julho, Ricardo Rio admitia que esta opção seria alvo de avaliação, mas para já a Câmara Municipal de Braga prefere esperar pelo fim do Utopia para tirar conclusões.
O Observador esteve em Braga a convite do Festival Utopia