57%. 62%. 66%. 72%. A vacinação contra a Covid-19 segue a um ritmo acelerado. Só em agosto, o número de pessoas totalmente vacinadas em Portugal passou de cerca de 5,8 milhões para mais de 7,3, atingindo os 72%. Quanto às pessoas com pelo menos uma dose, são agora mais de 8,2 milhões: cerca de 80%. Nas camadas de população mais idosa, a percentagem de vacinados está muito perto dos 100%. Só no fim de semana passado foram vacinados quase 148 mil jovens entre os 12 e 15 anos — e este fim de semana foram mais umas dezenas de milhar. Então, porque é que as infeções e as mortes não baixam? A resposta dá-se em poucas palavras: variante Delta e diminuição das restrições.
A vacinação está a aumentar, sim, mas os contactos entre pessoas também não param de aumentar numa altura em que uma variante mais contagiosa prevalece em todo o país. E isso traz um número de infeções maior do que existia no verão passado. A vacinação consegue combater uma parte — o suficiente para estabilizar os novos casos e mortes, mas não para os reduzir. “Se não houvesse vacinação, imagino o que isto era”, atira o epidemiologista Manuel Carmo Gomes.
[Gráfico com o número de novos casos diários desde setembro do ano passado]
Depois de terem começado a subir exponencialmente em julho, chegando mesmo a atingir os 4.376 no dia 21 desse mês, os novos casos de Covid-19 em Portugal parecem ter estabilizado: mil, dois mil, três mil. É entre estes valores que o número diário de infeções tem oscilado. A linha de novos casos não aumenta, nem diminui: está num planalto. O mesmo quanto às mortes: desde o início de agosto, o número de vítimas mortais devido à Covid-19 raramente baixa dos 10, mas também nunca chegou aos 20— isto depois de um longo período de meses em que o número de mortes diário nunca ultrapassou a dezena.
E o planalto não se verifica apenas aqui. Quanto à taxa de letalidade, a conclusão é a mesma. “A partir de março, houve uma grande decréscimo deste quociente: a letalidade diminuiu”, explica ao Observador o epidemiologista Manuel Carmo Gomes. Esse decréscimo, que associa à vacinação, foi “consistente e em todas as idades, principalmente na faixa etária dos 70 aos 79 e nas pessoas com mais de 80 anos”. “No entanto, nos últimos dois meses, aproximadamente, a letalidade está estabilizada. Ou seja, houve um grande impacto da vacinação em março, abril e maio. E em junho começou a estabilizar“, detalha o especialista, que faz parte da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19. Ainda assim, mesmo estabilizada, a “letalidade atual não se compara com a que havia em dezembro, janeiro e fevereiro”. “Não tem nada a ver: agora, o risco de uma pessoa ser infetada e morrer diminuiu drasticamente“, acrescenta.
[Gráfico com o número de novas mortes diárias desde setebro do ano passado]
Qual é a explicação para o facto de a vacinação não estar a conseguir contrariar este planalto?
A vacina compensa a variante Delta: “Com as medidas de relaxamento que já temos, se não houvesse vacinação, imagino o que isto era”
Manuel Carmo Gomes não vê outra explicação se não esta: a presença da variante Delta. Esta nova estirpe “é altamente contagiosa” — o que faz aumentar a incidência. “Estamos com uma incidência muito elevada — de cerca de 2.300 casos em média por dia — quando comparada com a mesma altura do ano passado. Estamos aproximadamente com três vezes mais casos por dia do que estavámos nesse período. É uma diferença dramática”, considera. O especialista admite mesmo: “Se em abril/maio me dissessem que em agosto íamos ter esta cobertura vacinal e me pedissem para traçar uma previsão do número de casos, desenharia um cenário mais otimista. Infelizmente, com a Delta, as coisas complicaram-se”.
A variante Delta e o relaxamento das medidas de combate à pandemia são a receita para o aumento de infeções. A isto junta-se o facto de haver “muita gente vacinada que considera que está totalmente protegida e que baixou o nível de cuidados e de comportamentos regrados”, diz ao Observador o epidemiologista Gustavo Tato Borges. “Este caldo faz com que haja uma maior manutenção da transmissão, mas que felizmente não se tem traduzido no agravamento”, acrescenta.
Manuel Carmo Gomes acredita que é precisamente a vacinação que faz com que este aumento não aconteça, criando uma espécie de compensação. “Parece que vivemos aqui num equilíbrio entre os novos casos que acontecem por dia e a força da vacinação. As coisas parecem estar mais ao menos equilibradas”, explica Manuel Carmo Gomes. “Com as medidas de relaxamento que já temos, se não houvesse vacinação, imagino o que isto era.”
Da mesma opinião é o matemático Carlos Antunes: “Se não tivéssemos esta cobertura vacinal, com esta variante e com estas circunstâncias de desconfinamento que temos hoje, certamente teríamos muito mais casos”. Tato Borges vai mais longe: “A vacinação é a razão pela qual temos agora mais liberdade do que tínhamos antes. Se não tivéssemos vacinação, nesta fase seria impossível termos o país a desconfinar e muito provavelmente estaríamos numa situação epidemiológica bem mais grave, com mais mortes e mais internamentos”.
O matemático Carlos Antunes considera que, ainda assim, o número de casos que se registam atualmente é “aceitável”. “Porque não está a conduzir a um número crítico de internamentos nem de óbitos. Como estes números estão mais ou menos controlados, podemos admitir um bocadinho mais de incidência — que é o que justificou a tomada de decisão de antecipar as medidas”, acrescentou.
Número diário de infetados que estavam vacinados “não é fácil” de calcular devido ao cruzamento de bases de dados diferentes
Segundo dados divulgados pela DGS, entre janeiro e 8 de agosto de 2021 foram identificados 16.671 casos de infeção em 5.467.487 pessoas com esquema vacinal completo contra a Covid-19 há mais de 14 dias. Isto significa que a taxa média de pessoas que são infetadas apesar de estarem completamente vacinadas é de três por mil. “Por cada mil pessoas completamente vacinadas, três ficam infetadas. É um número muito pequeno. No entanto, este número está a aumentar — o que causa alguma preocupação”, explica o especialista Manuel Carmo Gomes.
Ainda assim, o epidemiologista Tato Borges lembra que “a perceção da vacina só é reconhecida como válida 14 dias após a última inoculação”. “Ou seja, só 14 dias após termos atingido os 70% de vacinação é que o país está efetivamente imunizado em 70%. Neste momento, a vacinação acelerou muito, mas o primeiro limiar de proteção ainda não foi atingido: só na próxima quarta-feira é que vai ser atingido”, explica ao Observador.
Para ajudar a perceber o efeito da vacinação no controlo da pandemia seria, porém, importante saber outro dado: das pessoas que se infetam diariamente, quantas estavam vacinadas? “Era importante e tentamos saber isso. Mas na prática não é fácil”, explica o especialista. Porquê? Porque obriga ao cruzamento de duas bases de dados diferentes: aquela onde são registadas todas as vacinas, com o número de utente e a data, e aquela onde são registados os novos casos. “Mas o cruzamento tem de ser feito com cuidado porque as pessoas têm de ser anonimizadas. Não se pode usar o nome das pessoas, nem o número de utente. Tem de haver um processo de anonimização e tem de ser idêntico nas duas bases de dados para que um determinado código que identifique uma pessoa de um lado, seja o mesmo que a identifica no outro”, explica, acrescentando: “Para termos isso em tempo real, era preciso que tivéssemos a máquina montada e automatizada — e não temos“.
O Observador questionou a DGS sobre a razão pela qual este indicador não é divulgado, mas até à publicação deste artigo ainda não tinha obtido qualquer resposta.
Incidência alta faz aumentar infeções em idosos. “Uma pequenina proporção deles vai morrer. É inescapável”
Manuel Carmo Gomes vinca que existe “toda a evidência de que a vacina está a funcionar, é efetiva contra doença grave e protege contra todo o tipo de infeção”, só que “não estava previsto a contagiosidade da variante Delta”. É por isso que o especialista acredita que “vamos continuar a ter muitos casos, embora sejam predominantemente de pessoas mais novas”.
Mas isso traz um problema que se reflete no número de mortes: a incidência é dominada pelos jovens entre os 10 e os 30 anos, mas isso traduz-se nos mais velhos. “Se olharmos para a distribuição da vacinação por faixas etárias, vemos que os grupos dos 10 aos 19 e dos 20 aos 29 são os que têm menor taxa de cobertura vacinal“, indica o investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa Carlos Antunes. Ou seja, “são os que estão mais expostos e têm um comportamento social de menor proteção”. Só que os jovens não contactam só com os seus pares e acabam por levar as infeções para outras faixas etárias.
Entre as 16.671 pessoas que ficaram infetadas, mesmo vacinadas, houve 91 mortes, até 26 de julho. “Mas 73 eram pessoas com mais de 80 anos — algumas delas tinham 100 anos e todas elas tinham muitas comorbilidades”, explica Manuel Carmo Gomes, acrescentando: “Enquanto continuarmos com incidência alta, vamos continuar a ter muitos idosos infetados. Uma pequenina proporção deles vai morrer. É inescapável. A única maneira de resolver isto era reduzir para metade, um terço, o número dos novos casos”.
Além disso, o especialista, que faz parte da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, alerta para outro ponto: as faixas etárias dos mais idosos estão praticamente com 100% de vacinação completa. Portanto, “à medida que a vacinação avança, cada vez mais a proporção de mortos é entre pessoas vacinadas”. Ainda assim, lembra: “Quando fazemos a comparação com o ano passado ou com março, estão a morrer menos pessoas por cada mil que são infetadas”.
Vem aí uma nova onda? Aumento de casos é expectável, mas não será tão “preocupante” como no inverno passado
Como é que vai evoluir este equilíbrio? O planalto vai manter-se por muito tempo? Ou a linha vai começar a ter uma trajetória decrescente? Ou ascendente? “É evidente que, com o tempo, a vacinação vai aumentar ainda mais. Mas também é evidente que, à medida que nos aproximamos do outono, o número de contactos entre nós, contactos capazes de transmitir, também vai aumentar — por exemplo, com o regresso às aulas e com a maior frequência dos transportes públicos”, começa por explicar Manuel Carmo Gomes.
Além disso, as “medidas preventivas para a Covid-19 vão ser muito diferentes”, aponta Tato Borges. “As regras deste inverno vão ser muito mais ligeiras do que as do passado e isso pode ser complicado pela junção da gripe com um possível aumento de Covid-19 — que é possível que aconteça”, aponta ao Observador.
O relatório de linhas vermelhas divulgado pela DGS e pelo Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge alertava na passada sexta-feira para isso mesmo: a pressão sobre os cuidados de saúde apresenta uma “tendência estável a crescente” e “a atividade epidémica” é de “elevada intensidade”. No ano passado, depois de agosto, registou-se uma subida consistente de novos casos e mortes, que se refletiu numa segunda onda em dezembro. “A nossa dúvida neste momento é se vamos ter alguma coisa que se pareça com isso”, diz Manuel Carmo Gomes. Mas, apesar de a variante Delta ter “complicado” as previsões, mantém-se otimista. “Estou convencido que não. Penso que, se os casos e mortes subirem, já não será uma situação preocupante como já vivemos. Mas existe alguma expectativa em relação ao próximo outono.”