Sentado num confortável sofá do Hotel Fénix, em Lisboa — cidade a que se desloca muitas vezes, fruto dos compromissos literários e profissionais –, Valter Hugo Mãe, 46 anos, romancista e poeta, nascido em Vila Henrique de Carvalho, em Angola, mas a viver em Portugal desde os dois anos e meio (primeiro em Paços de Ferreira, onde passou a infância, agora nas Caxinas) diz: “Não devia ter dito isto”. E o que é que acabara de dizer? “Dá-me a sensação que as vezes em que fui mais esperto na vida foi quando optei por um verso, mais do que por uma pessoa. Porque as pessoas me defraudam, defraudam-nos, são menos potentes que a poesia, do que a literatura, do que o livro. As pessoas vão passando e vão falhando.”
A publicar regularmente há 21 anos — desde que, com 25, lançou a primeira obra, Silencioso Corpo de Fuga –, o autor (Valter Hugo Lemos de batismo, Valter Hugo Mãe por escolha artística) dedicou os seus primeiros anos de escrita em exclusivo à poesia. Só publicaria o primeiro romance (o nosso reino) em 2004, quando contava já com nove livros publicados em verso, a que se viriam a juntar outros cinco entre romances.
“Ainda que seja hoje bem mais conhecido por ser romancista do que por ser poeta” (constata o próprio), Valter Hugo Mãe continua a achar “que a poesia é de facto o extremo reduto da razão. E por isso é a arte mais esplendorosa e é a essência do esplendor da palavra”. A paixão continua bem viva e deu agora origem à primeira antologia de poemas do autor, Publicação da Mortalidade, nas livrarias desde dia 15 deste mês.
A obra, diz o autor, é uma seleção criteriosa dos poemas incluídos nos 14 livros em verso. “Haver um grande número de textos para escolher é muito bom porque podemos deitar muita coisa fora e sobra sempre algo”, aponta, logo garantindo: “Não me interessa que a minha obra poética seja vasta, interessa-me que ela seja intensa, válida, honesta, ajuizada, boa”.
Foi de poesia (e da sua poesia) que o autor falou ao Observador — mas também de como vê o país (onde, “em linhas largas, nunca se viveu tão bem como hoje, sobretudo desde que o senhor Passos Coelho foi com o raio que o parta”), do que os textos dizem de si (“Falhar no amor é uma merda. E os meus poemas estão cheios de amor que não deu certo”) e da dificuldade em envelhecer, coisa que lhe parece “obscena”. Até começar a escrever um novo romance (que suceda a Homens Imprudentemente Poéticos, de 2016, que por sua vez sucedeu a O Filho de Mil Homens, de 2011 e A Desumanização, de 2013), Valter sente-se poeta, sobretudo poeta.
Notei que ao selecionar os poemas escolheu textos de 2000 em diante. A sua relação com os primeiros poemas é menos apaziguada?
Sim. Eu não tenho propriamente uma poesia da adolescência, comecei a publicar aos 24 anos, já era mais do que um adolescente, já teria idade para ter maior juízo. Mas esses poemas iniciais são um pouco falhos, ingénuos — e eu achei que precisava de lhes fazer uma escolha e uma revisão. Eles aparecem inclusive muito mudados. Há versos que se mantêm como foram escritos na altura mas os poemas como um todo estão repensados.
Tenho um pouco a impressão que enquanto autor a minha maturidade mínima, a minha validação, acontece depois dos meus 30 anos. Tudo o que eu publiquei entre os 24 e os 30 anos de idade, e é preciso ver que publiquei quase um livro de poemas por ano, considero que tem uma certa juvenilia. E, por isso, é um tempo de trabalho com o qual eu sou muito severo. Também não preciso de ser simpático. Nós esperamos que os outros sejam simpáticos connosco mas nós mesmos podemos aceitar viver de uma maior frontalidade e lucidez. Eu procuro muito isso, interessa-me tanto quanto possível não estar equivocado em relação ao autor que sou. Por isso, [posso] gostar, obviamente, acreditar que aquilo que publico tem qualidade para ser publicado mas eu tenho de vir ao tempo que me define hoje e interessa-me muito essa coragem para hoje interferir e escolher entre o que foi feito. Não me interessa que a minha obra poética seja vasta, interessa-me que ela seja intensa, válida, honesta, ajuizada, boa.
E essa alteração no valor dos poemas deveu-se mais a experiências de vida que teve entre os 24 e os 30 ou a leituras desses tempos?
As leituras, é claro, estão sempre presentes, por isso elas influirão obviamente. Mas há qualquer coisa na passagem do tempo que nos vai afinando a voz e encontrando uma identidade. Temos dificuldade em explicar como acontece mas temos facilidade em evidenciá-lo. Ou seja, é como acontece com o nosso corpo: nós sabemos que somos o resultado da evolução, do desenvolvimento físico que nos aconteceu mas temos muita dificuldade em explicar a partir de que momento é que o cabelo se perdeu, a barba cresceu, o grisalho se impôs, a barriga passou a notar-se — quando eu fui um jovem tão horrivelmente magro… Nós temos muita facilidade em reconhecer a diferença entre quem éramos e quem somos mas não conseguimos encontrar no cômputo dos dias, que são tantos, a chave para explicar exactamente como isso aconteceu. A escrita tem muito que ver com isso, é como se ela fosse um organismo, um certo animal que tem o seu próprio desenvolvimento, a sua própria fisicalidade e que hoje parece de uma forma completamente distinta. É como se viesse de ser um bicho para ser outro bicho. Como isso aconteceu não é muito explicável mas que a minha poesia hoje é outro bicho, não tenho dúvidas porque acho muito evidente.
Falava da passagem do tempo. Ter uma antologia tem um lado porventura bom, dos muitos anos de publicação…
Fazer antologias tem um lado bom. Sobretudo haver um grande número de textos para escolher é muito bom porque podemos deitar muita coisa fora e sobra sempre algo. O tempo dá-nos a possibilidade de fazer um escrutínio, de haver matéria-prima. A vida não é se não uma espécie de coleção de matéria-prima, por isso quando queremos fazer uma retrospectiva, quanto mais tempo tivermos, mais temos a que deitar mão.
Mas lida bem com a passagem do tempo?
Não lido nada bem, odeio. Sou um envelhecido enraivecido. Não gosto nada de ter de aceitar os meus 46 anos porque não estou apaziguado com cada tempo da minha vida, é como se houvesse coisas adiadas na minha vida para as quais eu sinta que não voltarei. Eu acho que adiei coisas na minha vida que não vão mais acontecer e, por isso, mais do que as ter adiado, fui ingénuo e abdiquei delas. Envelhecer é uma forma de me impedir de alguns recomeços e isso enfurece-me. Acho uma dimensão nojenta da vida que nós não estejamos sempre capazes de uma juventude começadora. Sou um indivíduo que envelhece tragicamente, faço aniversário com uma tristeza profundeza, odeio que me cantem os parabéns, não me importo que me felicitem, adoro receber prendas mas envelhecer parece-me… sendo uma conquista, porque significa que perduramos e somos heróis de nós mesmos, que conseguimos persistir, é obsceno porque a velocidade a que as coisas se passam não me permite concretizar 90% dos projetos e das vontades que tenho.
Olhar para a obra passada, selecionar entre ela, é uma organização possível das pontas soltas?
É, é uma arrumação da casa, dessa casa intangível, até espiritual, que a literatura nos oferece. E é uma tentativa de fazer com que ela se estruture, seja habitável, convidável, como se me apaziguasse com ela mesma e pudesse querer voltar para casa. Enquanto temos as coisas avulsas e mal dispostas, digamos [ri-se], talvez queiramos estar na rua. E depois deste processo de uma certa depuração dá gozo nós reconhecermo-nos dentro destes textos, habitarmos outra vez os textos, frequentarmos outra vez os textos. Então, já não preciso de estar ao relento.
É um processo penoso, também?
É, desde logo porque mais do que lidarmos com a qualidade intrínseca dos textos, aquilo que possamos reconhecer como melhor ou pior nos poemas, temos de lidar com sentimentos, emoções mais profundas e que às vezes são muito pessoais, porque os poemas intrometem-se com as pessoas de quem gostamos, com as pessoas de quem deixamos de gostar, com as pessoas que nos ofenderam. Os poemas falam de montes de amores que falharam, de mais amores falhados que conseguidos… Falhar no amor é uma merda. E os poemas estão cheios de amor que não deu certo. Por isso, quando escolhemos os poemas parece que estamos a escolher entre aquilo que aguentamos e o que não aguentamos. E, por isso, mais do que escolher simplesmente versos estamos a lidar com uma memória de muitas perdas, coisas que nos ofenderam, de muita rejeição, de muita esperança, de muita ingenuidade.
É um processo com uma grande sujidade e que implica uma espécie de coragem, uma valentia para que possamos reviver as coisas e recolocá-las hoje na nossa vida. Porque ao recuperar um poema, de algum modo estamos a aceitar reinscrevê-lo no dia de hoje, que talvez estivesse esquecido de determinadas dores e determinadas perdas e ganha uma super-memória dessas mesmas perdas e dessas frustrações porque o poema foi outra vez aceite no dia de hoje, na atualidade.
Sobre as memórias menos boas, já havia comentado o número de dedicatórias que tinha nos seus poemas…
Não é que não tenha vontade de o fazer outra vez, continuo a achar que é uma coisa maravilhosa dedicar a alguém um poema, mas eu dediquei muitos poemas a pessoas de quem me afastei, efetivamente. A vida é tão complexa que arranja forma de nos desiludirmos até com as pessoas mais importantes. E o poema dedicado é meio acusatório, ele obriga-nos a um exame de consciência, como se nos tivesse a ridicularizar por um dia termos gostado de alguém que deixou de gostar de nós, por um dia termos homenageado alguém que se afastou de nós, por exemplo. Então, essa relação com o poema pode ser relativamente insuportável, desde logo com a dedicatória, sim. E, por isso, algumas podem ter caído… eu aprendi isso com o Saramago, o Saramago dedicou os seus primeiros romances a uma pessoa [Isabel de Nóbrega] e depois dedicou-os a outra. E de facto os livros são de cada instante em que se recuperam, por isso ao serem recuperados devem ser entregues às pessoas com quem estamos no tempo da recuperação.
“A poesia é toda ela uma imprudência, não está a salvo da perigosidade”, disse certa vez. Falou ainda dos poetas como “homens propensos ao abismo”. É preciso uma certa dose de tragédia, vivencial ou interior, para se escrever poesia.
Não sei se é exactamente tragédia, há poetas luminosos e que talvez passem pelo mundo vendo sobretudo a esperança, construindo a esperança e eu talvez não deixe de ser também assim. Acho que a poesia, mais do que a iminência da tragédia, é a frontalidade, é uma honestidade de exposição, uma coragem de exposição, porque o poema para mim opera de uma forma meio furtiva, ele impõe-se ao autor e leva do autor aquilo que eventualmente poderia ser necessário esconder. Por isso, o poema é sempre a revelação de alguma coisa que talvez a prudência aconselhasse a conter. E por isso é uma espécie de escrita do crime, há um roubo a que o poeta é sujeito. Não pode funcionar de outra forma porque se o poeta não se deixar roubar o poema não vai funcionar porque não vai conter nada, não vai ter nada, vai ser uma retórica. Por isso a única hipótese de valer a pena este oficio é de facto o poeta estar no lugar de uma certa humilhação. E, por isso, o perigo é constante, acho que é um ofício para heróis.
[Ri-se] É muito arrogante dizer isto quando é mais normal considerarmos os poetas uns mariquinhas mas eu não vejo assim e acho que aprendi no decorrer da vida que cada poema era de facto uma espécie de heroicidade porque tudo na normalidade parece solicitar uma lisura que não é a do poema. Somos educados para uma máscara e para uma indiferença que não pode ser exactamente a da poesia. A poesia é o contrário dessa indiferença, é uma implicação, é um compromisso que nos coloca constantemente a cabeça na guilhotina.
Essa sua relação com a poesia foi sempre estável? Nunca teve fases de desencanto?
A poesia é um espaço sagrado para mim, nunca tive dúvidas, está colocada como a verdadeira religião a que eu poderia sucumbir. Nunca tive a impressão que ela fosse menos importante para mim, por isso nunca houve uma altura da minha vida em que eu achasse que a poesia me interessava menos ou me poderia valer menos. Eu enquanto poeta precisei de criar um espaço de longa dúvida e foi muito importante para mim esse impasse, inclusive, mas a poesia enquanto tal, eu enquanto leitor de poetas, isso nunca teve uma inflexão, foi sempre algo que nunca me faltaria, nunca me faltará. Eu continuo a achar, ainda que seja hoje bem mais conhecido por ser romancista do que por ser poeta, que a poesia é de facto o extremo reduto da razão. E por isso é a arte mais esplendorosa e é a essência do que é o esplendor de se escrever, a essência do esplendor da palavra.
Ela também tem um “custo de oportunidade”, como os economistas lhe chamariam. Escreve num dos poemas da antologia: “Vou sempre trocar-te por uns versos / poemas feios / os meus poemas feios”. Ao mesmo tempo que transcende a vida quotidiana, também a rouba?
Rouba, rouba. Rouba-me a mim e por isso há-de roubar os outros (ri-se). Quem me rodear está sujeito a ser ofendido pela poesia como ela me pode ofender a mim também. De facto, dá-me a sensação que as vezes em que fui mais esperto na vida foi quando optei por um verso, mais do que por uma pessoa. Porque as pessoas me defraudam, defraudam-nos, são menos potentes que a poesia, do que a literatura, do que o livro. E os versos que hoje eu posso preservar neste livro, eles adquirem a sua própria pedra, tornam-se na sua própria pedra e as pessoas vão passando e vão falhando. E por isso… não devia ter dito isto mas de facto a maior parte das vezes percebo que o grande entusiasmo com as pessoas acaba por valer menos do que o grande entusiasmo com a poesia.
Falava há pouco do que os poemas revelam de si. Adicionalmente, há também algum temor ao lê-los quase pela sacralidade que eles têm, pelo que eles podem revelar do autor sem que ele o saiba ainda?
É. Os poemas acontecem quase sempre no domínio da perplexidade. Eu estou a assistir à escrita do poema como alguém largamente incrédulo. E, para toda a vida, o poema que resiste talvez seja o que consegue provocar essa impressão contínua de perplexidade e de incredulidade. Se o poema estiver absolutamente explicado e se ele for moderado ao ponto de deixar de nos criar desconforto, talvez tenha falhado, talvez seja só uma nota, um breve relato de uma coisa qualquer. Para que seja vencedor, digamos assim, ele precisa de estar sempre uma e outra vez na iminência de nos destruir.
Poemas como “O Cu de Jean Genet” servem de combate a essa sacralização?
O “Cu de Jean Genet” [foi escrito] porque eu uma vez ouvi dizer que ele nas trincheiras, tendo sido enviado para a observação de uma guerra, foi companheiro de umas centenas de homens. Por isso eu sempre pensei em que estado é que estaria o cu dele. [Ri-se muito]. Sempre me impressionou esse amor tão infinito que faria com que um autor maravilhoso e admirável como ele, um intelectual, se pudesse gastar daquela forma. Não deixa de ser uma provocação, uma ideia que é uma provocação. Mas, lá está, é um pequeno apontamento que fica ali na perplexidade contínua, é uma equação que não se esgota.
E que não se resolve.
Não se resolve.
Quando leio “não tenho filhos, tenho mortos” ou “alguma dor me diz que os mortos se tornam solteiros e são antes dos filhos”, tendo a pensar que o seu apelo pela paternidade é profundo e vem de há muitos anos. Estou correto? Vem desde a adolescência, desde a juventude?
Não, é mais recente, surgiu nos meus 30s e acabou por entrar nos meus romances, desde logo num deles. Não poderia de ter deixado de se reflectir também na minha poesia. Até porque na minha poesia há um conjunto de poemas que se dirigem à morte do meu pai e por isso essa questão da paternidade, da perda do meu pai e ao mesmo tempo da ausência dos meus filhos, parece resultar tudo numa mesma morte, parece estar tudo coberto por uma ideia de morte. Os filhos se não nasceram são mortos e isso não podia deixar de se reflectir em verso. A minha poesia, de alguma forma, sem pedir licença, vai discorrendo sobre as coisas mais rotundas e fortes da minha vida. Já nos romances é um bocado assim mas na poesia mais ainda. Não tenho muita paciência para aquilo que é só um aspecto mediano da vida, o apontamento mediano dos dias não me interessa nada. Interessa-me que cada livro seja o osso das coisas todas e por isso esteja como estrutura fundamental de tudo quanto acontece, de tudo quanto se sente e pensa, de tudo quanto não se sabe pensar e explicar.
Sente-se mais realizado como poeta ou romancista?
[Pausa] Neste momento, porque estou a lançar um livro de poesia e estou por ele apaixonado, sinto-me feliz como poeta. Quando começar a trabalhar num novo romance vou sentir-me feliz como romancista. São géneros, tendo entre si semelhanças e contaminações, partilhando muita coisa entre si, que ocupam na minha vida espaços muito distintos e por isso não consigo… se hoje me tirassem os romances eu ficaria com menos de metade do que sou. Se me tirassem a poesia ficaria com menos da metade que sou. Isso significa que nem uma coisa nem a outra são só metade, são muito mais porque são dois géneros que se misturam, são duas realidades que se misturam e eu não consigo abdicar de nenhuma. E por isso só estaria realizado com tudo [ri-se].
Um dos livros incluídos na antologia é o “Pornografia Erudita”, que tinha a famosa capa do Valter Hugo Mãe nu. Tiraria essa fotografia hoje?
Hoje não porque estou desfigurado, estou muito feio. Eu devia ter tirado essa fotografia com 24 anos, quando era lindo de morrer. Mas não fui a tempo, não tive coragem nessa altura, ela só me veio aos 33 ou 34, quando aconteceu. Eu gosto muito da ideia de ter feito essa fotografia. Acho a fotografia infeliz, não era exactamente assim que queria a fotografia mas gosto da ideia de a ter feito, foi muito importante para mim porque sou genericamente um rapaz tímido, sempre fui. Fui muitíssimo tímido enquanto jovem, nos meus primeiros tempos de livros, fui patologicamente tímido e chegar ali a um tempo da minha vida, ao fim de uns dez anos de publicação, e ter tido coragem de fazer aquilo significou sobretudo um grito de liberdade, uma capacidade de tomar conta de mim, de decidir fora do jugo deste bom senso que tantas vezes é castrador. E por isso eu precisei muito de fazer aquilo e até hoje reconheço-me como alguém que precisou de fazer aquilo. Não acho que foi desnecessário, não acho que foi uma rebeldia tonta, no meu caso fez muito sentido e foi muito necessário.
Esse despojamento físico deu-lhe maior conforto para se despojar na escrita?
Sim, acho que isso simboliza muito uma capacidade de deitar fora, foi quase um renascimento, uma vontade de manifestar um novo ponto de partida. As coisas que eu escrevi eram tão sangradas, eram tão em desamparo que a fotografia, revelando a minha vulnerabilidade imediata, parecia-me a coisa menos agressiva, menos radical do livro. E por isso ela foi importante, foi muito importante esse processo de despojamento e ao mesmo tempo de reclamação do que eu sou, como eu sou, com os defeitos e as fieldades que me podem compor.
De um corpo poético…
De um corpo poético que pode ser um poema feio.
Acha que a imagem, à época e ainda nos dias de hoje, foi compreendida, bem vista?
Não sei. O livro esgotou logo, as pessoas todas queriam, depois foi feito um uma folha de sala num espectáculo das quintas de leitura no Teatro Campo Alegre e toda a gente levou a folha de sala, levaram três e quatro e cinco exemplares, toda a gente queria mais para poderem levar a fotografia para casa. Há uma curiosidade que eu diria até um bocadinho demasiada por estas coisas. Que novidade tão grande haveria de existir na minha nudez? O que haveria de diferir entre mim e os outros homens que fosse tão diferente, que fosse tão acentuado, que fizesse valer tanto a pena ver o Valter Hugo Mãe nu? Mas a verdade é que deve valer porque as pessoas quiseram muito ver [ri-se].
Valter Hugo Mãe: “Não gostei da minha adolescência, não aconselho a ninguém”
Numa longa entrevista que deu ao Observador, disse uma coisa curiosa: “Percebi que mudar o mundo a partir do direito ser-me-ia muito difícil, queria muito influir de uma forma benigna na vida das pessoas”. A poesia servia para esse embate com o mundo?
Era, a poesia era uma forma de manifestar o meu lugar desprotegido e de algum modo solicitar esse cuidado da justiça. Para mim era muito importante, é muito importante, que os textos, que aquilo que eu escrevo tenha essa vertente ética. E todos os livros — os romances, os poemas — começam por ser pesquisas éticas, começam por ser tentativas de encontrar uma validação ou de solicitar atenção para determinados aspectos do foro moral.
Essas posições mantêm-se paralelamente à escrita?
Sem dúvida.
Por exemplo na sua página de Facebook não se coíbe de expressar o que pensa.
E estou sempre a perder leitores. Se eu digo bem dos negros, os racistas brancos desamigam-me, se eu digo bem dos gordos, os racistas magros desamigam-me. Eu acho que as pessoas têm uma capacidade de odiar que é admirável, odeiam as coisas mais concretas, mais normais, mais naturais. As pessoas no fundo odeiam a natureza, a natureza inventa diferenças e as pessoas têm paciência para odiar as diferenças que a natureza inventa. Estou sempre a pronunciar-me e às vezes as pessoas mandam-me mensagens privadas dizendo que adoravam os meus livros mas vão deitá-los ao lixo porque afinal eu sou a favor dos negros. Ou porque sou feminista porque disse bem das mulheres, porque disse bem de não sei quem. É uma coisa… enfim. Eu às vezes julgo que quem tiver um preconceito tão estúpido não devia ler livros. Sei lá, não devia fazer nada, devia ir plantar batatas.
Para não conviver com a diferença?
Eu não consigo entender. A verdade é que estamos a piorar. Com o passar do tempo sinto que cada vez mais as pessoas, talvez por medo, se rendem a ideias agressivas de ódio, que as pessoas sucumbem ao ódio. Mas eu não posso deixar de expressar a minha opinião e de defender aqueles que eu acho que precisam de ser defendidos. Foi essa a minha educação, de algum modo é essa a minha identidade, não consigo ficar indiferente.
Essa figura de escritor que intervém sobre o que rodeia é uma espécie um pouco em vias de extinção?
Há alguns que se incomodam mas há outros que não, que preferem não se comprometer para não perderem os três leitores racistas que ainda têm. Tenho pena. Se um escritor não servir para dizer alguma coisa, não serve para nada. Não me parece interessante que um escritor seja tão cobarde que não tenha uma opinião sobre as questões mais prementes e gritantes da nossa contemporaneidade.
Uma das posições mais recentes que assumiu foi de condenação do assassínio de Marielle Franco. Presumo que o tenha chocado. Surpreendeu-o também?
Talvez eu ainda seja ingénuo a esse ponto mas fiquei surpreendido porque achava que seria uma coisa muito burra matar uma mulher destas, seria uma coisa muito burra porque era muito ostensivo porque é que ela estava a ser morta. A verdade é que, pelos vistos, as pessoas não estão muito preocupadas com o serem inequívocas. Queriam dar uma lição às mulheres, às mulheres negras, aos negros, aos favelados e esta é uma forma de os reprimir e assustar. Eventualmente [a intenção que tinham era] criar um clima em que outras pessoas que venham efectivamente lutar por uma melhoria social, uma melhoria concreta das condições de vida de tantos milhões de pessoas desfavorecidas, se calhar amedrontarem-se e deixarem de o fazer. A mim surpreende-me porque eu estou sempre à espera que as pessoas não sejam tão grotescas ou que os regimes não se transformem em coisas tão grotescas, estou sempre à espera que o bom senso se imponha à barbárie.
O que ofende nesta questão da Marielle é que ela era uma mulher belíssima, jovem, inteligentíssima, que sabia tudo o que nós precisávamos de aprender e emanava das favelas, de uma das favelas mais desfavorecidas e perigosas do Brasil. E tinha tudo para simbolizar uma redenção e por isso é o homicídio de uma redenção. Daí que talvez nos compita a nós não permitir que a morte dela seja o fim do seu projeto. Alguém dizia que as balas não matam as ideias da Marielle e é muito importante que façamos isso, que tenhamos isso como causa, que as balas que a mataram não possam de facto matar o seu pensamento.
A revisão dos textos para esta antologias trouxe-lhe de novo o bichinho da edição?
De ser editor de poesia? Claro, sempre quis ser editor de poesia. Já mandei bocas a muitos amigos com estruturas editoriais a ver se abrem os olhos para eu criar uma chancela ou uma coleção, seja o que for, mas não tem acontecido, não aconteceu, agora também tenho muita coisa para fazer, se calhar nem me tornaria um bom editor. Mas eu editei muitos livros de poesia, em quatro anos editei mais de 300 títulos de poesia e por isso estreei muita gente, coligi muitas obras. Talvez hoje o pudesse fazer com maior rigor. Na altura era um editor jovem, empático e estava mais interessado em fazer as pessoas felizes que propriamente em ser obstinadamente rigoroso com os livros. Talvez hoje não fosse tão simpático mas adoraria, obviamente. Há qualquer coisa na descoberta de um poeta, nessa companhia, que se me tornou muito rica e muito natural. E por isso fá-lo-ia com muita alegria.
A própria notoriedade que ganhou como romancista poderia ajudar [nas vendas]…
Sim, talvez pudesse convencer algumas pessoas mais do universo da prosa, que ainda são mais pessoas do que as do universo da poesia. Talvez as pudesse convencer a ler os livros que publicasse, a poesia em que eu acredito.
O Manuel António Pina dizia que gostava de juntar todos esses leitores de poesia portugueses num jantar. Porque não eram, não são, assim tantos…
Quase cabiam na minha casa. Não, ainda há mais gente do que aquelas que cabem na minha casa. Mas é muito tentador a questão de lidar com a descoberta dos poetas. Os poetas são seres delicados, são feitos de muitos melindres e sendo muitas vezes difícil lidar com os seus modos, é também muito aliciante, porque quando publicamos um poeta estamos como que a trabalhar no íntimo da sua alma. E por isso há uma propensão para uma intimidade e para uma partilha muito preciosa. Sinto muito que um editor de um poeta é com muita facilidade transformado em sua família. Isso pode acontecer com a prosa, obviamente, nós podemos relacionar-nos com os nossos editores de uma forma muito especial e muito intensa mas a poesia é mesmo um reduto de alma. E então o editor de poesia é um certo sacerdote na existência do poeta e isso é muito bonito, essa força da relação que se estabelece é muita bonita.
Quase como duas pessoas que preparam uma conspiração.
Ou uma conspiração… e desde logo uma conspiração muito espiritual e que pode ser muito perene ou pode ser alguma coisa que dura efectivamente para a vida inteira.
Falávamos do tempo que a poesia roubava ao quotidiano. Na adolescência, que não recorda com saudade, foi um escape?
Era, claro. A poesia existia na minha vida para eu ultrapassar o mundo, superar o mundo, criar o mundo. Era uma tentativa de mudar as coisas. Nunca me interessou escrever para deixar tudo igual, nunca escreveria algo que à partida soubesse que não tem a utopia de mudar o mundo. Se depois muda, se não muda, é diferente — mas na sua génese essa utopia tem de estar contida. Não me faz sentido que a arte possa ser feita como simplesmente uma matéria já passada, ela precisa de ser completamente vocacionada ao futuro, precisa de ser uma proposta de futuro. Tem de contar em si iminentemente a semente da mudança.
Numa das entrevistas que deu no passado comentava a falta de enquadramento que sentia na escola. Dizia “eu queria estudar coisas que não se ensinavam na escola”, “era como se a vida me obrigasse a estudar uma palermice na escola e eu queria ler livros incríveis”, “aquilo que me propunham parecia-me quase destituído, como se fosse para burros”. O ensino em Portugal precisa de ser virado do avesso ou, como a democracia, é o pior dos sistemas possíveis, à excepção de todos os outros?
Bem, eu ouço dizer que o ensino em Portugal precisa de alterações e precisa de uma coragem profunda. A verdade é que eu quis muito ser professor, tentei ser professor e não consegui, no sentido em que não me deram acesso, não me abriram as portas para que pudesse ser professor. Mas também já escrevi que acho que os professores são de facto a grande esperança da sociedade. O lugar onde reside a possibilidade de se repensarem as estruturas sociais é a escola. Nada pode redistribuir a riqueza melhor do que a educação que temos. Se não for a partir da educação nunca será a partir da boa vontade de algum clima social, é sempre um trabalho de consciência. E a consciência está em casa, obviamente, mas num país trabalha-se nas escolas. Por isso a minha esperança nos professores e nas escolas é profunda e a responsabilização que eu faço do ensino também é profunda.
Estou muito contra, por exemplo, as escolas serem entregues às autarquias, porque acho que as autarquias são facilmente lugares de compadrios e favorecimentos pessoais e sucumbem muito às pulsões eleitoralistas e aos interesses de reiteração partidária nas eleições e nas vitórias eleitorais. E por isso colocar as escolas, que me parecem do foro da estrutura mental das sociedades, à mercê desta porcaria que é o erro na avidez eleitoral, acho que é de alguma forma acabarmos com o ensino público. Interessa-me muito que exista a coragem de se proteger o ensino, e desde logo o ensino público, como se estivéssemos a proteger as gerações futuras, como se estivéssemos a proteger toda a gente porque mesmo quem não está em idade escolar vai depender um dia em absoluto das pessoas que estão em idade escolar. Por isso a sociedade depende sempre dos miúdos, estamos sempre na iminência de depender destes miúdos que um dia vão tomar conta de todas as coisas. Se lhes destruirmos a instrução estamo-nos a destruir a nós mesmos. Por isso, a minha relação com as escolas é uma relação também de alguém que reclama o dever de continuar a prestar atenção. E acho grave quando os adultos já escolarizados e com as suas profissões acham que o universo das escolas já não lhes diz respeito porque já não têm de continuar a estudar.
Perguntava-lhe mais pela sua experiência enquanto estudante. Sentiu que a escola o estimulou a ler?
Pelo menos nunca me impediram de ler. Mas é verdade que muitas vezes era obrigado a estudar coisas que não se dirigiam à minha pessoa. Esta generalização, estes programas universalizados perante crianças que são tão diferentes entre si e que vêm de realidades tão diferentes a mim parecem-me ilusões que não entendo como não se ultrapassam. Um rapaz de 14 anos é praticamente uma criança mas uma rapariga de 14 anos pode ser uma mulher. E à partida tem uma maturidade que o rapaz só vai atingir muito tempo depois. E por isso propor a um rapaz de 14 anos a mesma matéria, o mesmo discurso que se propõe a uma rapariga de 14 anos é genericamente estupidificar uma rapariga porque o nível do rapaz é completamente diferente. E por isso, se isto é tão concreto, se todos os estudos [apontam] e empiricamente todos nós podemos observar nos jovens este desequilíbrio, este tempo absolutamente distinto no compasso entre uns e outros, porque é que os programas das escolas não estão minimamente sensíveis a esta questão?
Se entre rapazes e raparigas esta questão é fácil de ver, entre dois rapazes o abismo pode ser igualmente enorme, como entre duas raparigas o abismo pode ser igualmente enorme. E por isso colocarem todos a aprenderem a mesma coisa ao mesmo ritmo, a fazer os mesmos exames, os mesmos testes e a ter de cumprir uma mesma cerimónia quando estamos todos num lugar que é tendencialmente próprio, é uma falha. E por isso eu sou sensível a uma nova escola que possa libertar cada aluno e que possa perseguir o aluno, mais do que fazer o aluno perseguir a escola.
O caminho que o país percorreu desde que começou a publicar, eventualmente até de há mais tempo para cá, desencanta-o ou deixa-o otimista?
Não me desencanta. Acho que há muitas coisas que se revelaram fraudes e eventualmente muito em Portugal falhou mas não me parece que possamos acusar o país de ser inviável a ponto de o querermos rejeitar. Muito pelo contrário, acho que em linhas largas nunca se viveu tão bem como se pode viver hoje, sobretudo desde que o senhor Passos Coelho foi com o raio que o parta. E por isso sinto que estão sobretudo criadas as condições para um bem-estar que é muito mais comum do que alguma vez já foi. E isso, em todos estes anos de democracia, é genericamente o que está em causa. O recatado da ditadura e a pobreza orgulhosa da ditadura não me convencem. Que as pessoas hoje possam ter saudades de serem pobrezinhos muito dignos acho que é uma doença mental. Não me parece interessante, não quero ser um pobrezinho muito digno, quero ser digno mas poder aquecer a casa, comer, fazer uma viagem de vez em quando e ter dinheiro para pagar livros aos filhos, isso para mim é que é dignidade. O passar fome não é digno.
Disse há algum tempo, a propósito da exposição pública: “Tenho cada vez mais a urgência de desaparecer. Se repararmos, alguns dos autores mais expostos acabam por se tornar autores escassos”. Tem conseguido fazê-lo?
Tenho andado a aparecer e a desaparecer intermitentemente. É muito necessário fazer essa intermitência, entremear uma maior exposição com um desaparecimento estratégico. É muito importante, sobretudo para não nos destituirmos de um certo quotidiano, de uma certa normalidade, de uma rotina, por exemplo. Se nós estivermos sempre num circuito de eventos e de lançamentos e de viagens, se esse circuito for demasiado contínuo é difícil depois estabelecermos relações mais profundas com as nossas pessoas, com os nossos lugares e com o nosso pensamento porque temos a impressão que o mundo nos continua a chegar. Talvez até possamos ter a ilusão que nos chega mais porque estamos em toda a parte, vamos a toda a parte, vemos todas as pessoas. Mas isso depois não permite qualquer tipo de maturação, por isso a interrupção que nos leva de regresso a casa e que nos faz poder ir ao mesmo café todos os dias, discutir com as mesmas pessoas, perceber as nuances, as diferenças muito subtis que vão acontecendo nas nossas vidas, nas vidas das pessoas, na vida do país, nas notícias, naquilo que nos circunda, para mim é fundamental.
O que eu julgo que estou a fazer e bem, porque sinto-me menos doido do que me sentia há uns anos, passa exactamente por isso, por poder vir à tona para uma série de eventos e para cumprir as solicitações que as pessoas generosamente me fazem mas depois pedir também que entendam que eu de vez em quando preciso de estar uns meses mais quieto e de regresso à minha família, aos meus amigos, à minha escrita e às minhas leituras porque quero muito ter tempo para ler os livros dos outros autores e quero muito ter tempo para ver o cinema e o teatro.
A dada altura, quando se entra num processo de muita visibilidade é fácil que de repente não consigamos estar atempados com nada, a única coisa que sabemos é de nós, a única coisa que parece acontecer somos nós, porque estamos de tal maneira rodeados de nós mesmos, dos nossos acontecimentos, que não conseguimos ir ver o último filme da Teresa Villaverde, não conseguimos ler o último livro do Gonçalo M. Tavares, não conseguimos estar na festa de aniversário dos nossos amigos, não percebemos que a nossa loja favorita abriu ao lado de casa. Por isso a dada altura precisamos mesmo de pôr um travão e de ver o Colo da Teresa Villaverde.
O meio literário português é saudável?
Sim, em Portugal só há escritores simpáticos, poetas simpáticos, jornalistas simpáticos e programadores simpáticos. Acho que temos um dos meios literários mais porreiros, mais saudáveis do mundo.
Isso dito com…
Dito com amor e carinho [sorri].
E com algum sarcasmo?
Não. [Ri-se] Eu vejo o que acontece em outros países. Por exemplo, em Espanha o ambiente é muito mais terrível, os jornais nas suas secções culturais, literárias, incluem notícias sobre as esposas dos escritores, os divórcios, o facto dos escritores serem vistos às 5h da manhã a saírem bêbados de um bar acompanhados por uma senhora ucraniana muito simpática. E nós não temos isso, não caímos nisso e espero que nunca possamos cair nisso. Acho que Portugal, talvez por ser um país pequeno, é um país ainda com um decoro que eu acho importante ter. Ainda que possamos ter oscilações empáticas — se calhar somos menos agradáveis com alguns colegas e alguns colegas são menos agradáveis connosco –, acho que genericamente coabitamos.
No meu caso, não se se foi por ter sido muito leitor de muita gente, por ter chegado aos livros de longe, vim de longe e cheguei fascinado, com muita vontade de conhecer os escritores e os poetas. Fui editor de muitos escritores e poetas e por isso a minha pulsão inicial é sempre de um certo deslumbre de encontro. E por isso ainda hoje peço muitos autógrafos às pessoas, compro os livros dos colegas, gosto de saber o que estão a escrever os autores da minha geração, gosto de prestar atenção aos autores mais novos do que eu — ainda hoje acabei por andar à procura de um livro da Andreia C. Faria que é mais nova do que eu e é uma poeta da nova geração de que eu gosto muito. A minha postura é um pouco assim, não quero nunca estar sozinho no mundo e achar que sou bom porque estou sozinho no mundo. Se a minha obra valer de alguma coisa ela terá de valer no meio dos outros e por isso quero estar bem com quem são os outros.
Perguntei-lhe isto porque, numa longa entrevista que deu ao Observador, referia desentendimentos anteriores com alguns pares…
Arrependi-me logo de ter dito isso. Não sei porque disse, foi a tua colega que me perguntou. Fiquei muito arrependido porque acho que, escrito, o desânimo parece tornar-se mais grave, mais acintoso. E não é tão grave assim. As pessoas podem-me ter desiludido, eu posso ter ficado magoado com algumas coisas que aconteceram, alguns episódios, como creio que todos nós nos vamos magoar com algo na vida, mas eu não vivo pensando naquilo, aquilo não me define, não é inultrapassável, não desejo rigorosamente mal nenhum às pessoas, que espero que estejam bem. Eventualmente o ter-me manifestado daquela forma significa mais que talvez tenha saudades das pessoas do que vontade de as culpar.
Normalmente, das duas, uma: ou as pessoas nos são mais ou menos indiferentes ou então são tão importantes para nós que nós nos magoamos. Por isso, o que me frustra em algumas coisas que eu disse, é que talvez não seja imediatamente percetível que o que está em causa é mais uma saudade das pessoas e do que vivemos juntos e da maravilha que foi descobrir o mundo juntos do que propriamente a vontade de as magoar. Porque, se me magoaram, não faria sentido nenhum eu querer magoá-las a elas também, porque estaria a fazer a mesma coisa que me fizeram, estaria a pôr-me na mesma situação de que talvez as esteja a acusar. Fui muito nabo.
Houve repercussões desses comentários?
Sim, vieram-me dizer que uma pessoa ou outra ficou muito triste. E eu quase lhe liguei, não imediatamente para pedir desculpa mas para dizer: olha, se de alguma forma eu queria ter ultrapassado isto, adoptei o pior dos métodos. E às vezes também sou burro — muitas vezes até, diria, sou ingénuo e não faço as coisas da melhor maneira.