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Casa Pia terminou a primeira volta do Campeonato no quinto lugar e chegou aos quartos da Taça de Portugal

DeFodi Images via Getty Images

Casa Pia terminou a primeira volta do Campeonato no quinto lugar e chegou aos quartos da Taça de Portugal

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"Vendi peças de automóvel sete anos e só queria que chegasse às 18h para ir dar treino": entrevista a Filipe Martins, treinador do Casa Pia

Até Mourinho já lhe deu os parabéns. Filipe Martins é treinador do Casa Pia, equipa sensação da Liga, e falou com o Observador sobre a época, o internamento por Covid-19 e os sacrifícios familiares.

A ambição preencheu-lhe um espaço onde só havia um vazio de recursos. Foi com uma mão cheia de nada que Filipe Martins agarrou no Casa Pia. Em 2020, quando o treinador chegou a Pina Manique, o clube estava perto de descer ao Campeonato de Portugal, uma vez que, na altura em que a Segunda Liga foi suspensa devido à Covid-19, os casapianos estavam no último lugar. Por decisão administrativa, os gansos viram essa mesma despromoção ser suspensa (V. Setúbal e Desp. Aves não cumpriram os requisitos). O veredicto chegou em cima do início da temporada 2020/21 e levou Filipe Martins a ter que montar uma equipa em tempo recorde para, no final da época, conseguir um nono lugar e a manutenção na Segunda Liga.

No ano seguinte, a parada subiu. Tornar-se vice-campeão do campeonato secundário permitiu ao Casa Pia estar esta época na Primeira Liga, naquela que é apenas a sua segunda participação no escalão máximo do futebol português mais de 80 anos depois. Filipe Martins manteve-se sempre no barco, mesmo que a meio de uma sempre acérrima luta pela subida de divisão tenha estado cinco semanas internado devido a sequelas deixadas pela Covid-19. O que a equipa fazia no campo era o ar de que precisava para respirar. No final, não lhe faltou fôlego para os festejos com uma goleada frente ao Leixões em Matosinhos.

O Casa Pia, com uma estrutura reforçada, mas a jogar as partidas na condição de visitado no Estádio do Jamor, tem feito furor na Primeira Liga. A equipa recém-promovida fechou a primeira volta do Campeonato no quinto lugar apenas atrás de Benfica, FC Porto, Sp. Braga e Sporting, campanha que, tal como o treinador conta, mereceu elogios até de José Mourinho, treinador da Roma. Ao longo do percurso primodivisonário, Filipe Martins completou 100 jogos ao serviço do clube que trouxe de volta à ribalta.

O Casa Pia já deixou de ser uma surpresa para passar a ser uma certeza?
O efeito surpresa já passou. Temos sentido isso na forma como as equipas nos defrontam. Não diria que houvesse uma falta de respeito mas, provavelmente, as pessoas imaginariam que o Casa Pia fosse um dos principais candidatos à descida. O Casa Pia esteve poucas vezes neste campeonato [a única presença no principal escalão acontecera em 1938/39, há 83 anos], o clube ia passar por uma transformação, jogamos em casa emprestada… Tudo isso são fatores que nos levariam a sermos encarados como underdogs no início do Campeonato. Essa ideia já foi um bocadinho modificada. Neste momento, estamos muito próximos de atingir o objetivo da manutenção, que é o objetivo principal para esta época. Assenta-nos bem o rótulo de equipa sensação até este momento e acreditamos que temos as condições para continuar a ser encarados assim, sabendo que a segunda volta vai ser muito mais difícil do que a primeira.

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Sentem que, na segunda volta, vão ter uma pressão acrescida por aquilo que têm feito até ao momento, uma vez que as equipas vão estar mais preparadas para vos defrontar?
Neste momento, estamos numa situação em que a pressão tem que estar toda do lado dos nossos adversários e a ambição tem que estar do nosso. Temos que desfrutar da margem pontual que temos. Provavelmente, os 36 pontos não serão precisos para garantir a manutenção. A partir do momento em que atingirmos essa marca, vamos reformular objetivos, apesar de que os nossos objetivos são sempre os mesmos: superarmo-nos no dia a dia no treino, crescermos como projeto e como clube, e sermos melhores a cada dia que passa. Há momentos melhores, há momentos que não são muito fáceis, mas quem pense que este campeonato vai ser sempre um mar de rosas está muito enganado. É importante as pessoas que torcem por nós perceberem que isto nem sempre vai ser assim e que não nos podemos iludir em demasia quando as coisas estão a correr bem. Não podemos entrar em pânico se algum dia estivermos a passar por dificuldades. Este ano, podemos fazer um campeonato tranquilo.

Por onde passa essa reformulação de objetivos?
Agora, o nosso exercício interno é compararmos a segunda volta com a primeira. Começou a segunda volta e temos a tabela a zero. Estamos com saldo positivo em relação à primeira volta: à segunda jornada da primeira volta tínhamos um ponto, à segunda jornada da segunda volta do campeonato temos três.

Em novembro disse que o Casa Pia pensar numa competição europeia seria uma utopia. Neste momento, já é uma realidade mais próxima?
Ainda falta muito campeonato. Mais do que isso é pensarmos se será o momento certo para isso acontecer. Não vamos perder propositadamente para não irmos a uma competição europeia. Sabemos que isso é um desafio que acarreta termos várias coisas preparadas. Temos que ter a questão do estádio rapidamente resolvida. Se chegarmos à última jornada e tivermos possibilidade de atingir uma competição europeia… Tem muito a ver com o jogo seguinte. Sempre que atingirmos mais pontos, temos que querer, mais e mais… O primeiro objetivo, e não há que fugir, é a manutenção. Depois, é metermos metas que passam por fazer o melhor possível. Isso não significa que tenha que ter um objetivo de Liga Europa, de Liga Conferência, nada disso. Tem a ver com o que vamos ser capazes de fazer até ao final do campeonato.

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Filipe Martins já cumpriu mais de 100 jogos pelo Casa Pia, sendo o mais marcante aquele em que festejou a subida de divisão com o Leixões

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A verdade é que a equipa que na temporada passada terminou em quinto lugar, o Gil Vicente, à 19.ª jornada, tinha exatamente o mesmo número de pontos que o Casa Pia tem neste momento. É preciso cortar ambição aos jogadores para que não comecem a jogar ’em bicos de pés’ por verem que estão perto de uma competição europeia e cometam erros devido a essa mesma ambição ser desmedida?
A ambição tem que estar sempre presente. Agora, tem que ser uma ambição onde tenhamos noção da realidade. Temos que enfrentar equipas poderosas, equipas que têm bons plantéis, que têm uma estrutura e uma experiência que lhes vai permitir encarar os momentos de decisão com mais à vontade. Mas ninguém vai cortar esse sentido de ambição. No entanto, há uma coisa que é a ambição e outra que é a ilusão. Temos que perceber que a ilusão é inimiga da ambição. Para atingirmos o que ambicionamos, temos que ser muito realistas.

"Não vamos perder propositadamente para não irmos a uma competição europeia (...) Em três anos irmos à Liga Conferência era épico"

Referiu que os adversários agora encaravam o Casa Pia de uma forma mais cautelosa. No início da época, por ser uma equipa que vinha da Segunda Liga, as equipas menosprezavam o Casa Pia?
Não diria menosprezar. No entanto, tinham um desconhecimento das características da equipa do Casa Pia. É óbvio que muitas das vezes podemos ter beneficiado de algum relaxe por parte de uma ou outra equipa que possa ter pensado “vamos jogar contra o Casa Pia, foi o segundo classificado da Segunda Liga do ano passado, provavelmente isto mais tarde ou mais cedo vai-se acabar por resolver”. Quando assim é, sejam os adversários, sejamos nós próprios, quando não se encaram as coisas com a seriedade necessária, normalmente paga-se caro.

Na temporada passada, a realidade do Casa Pia era a Segunda Liga. No onze mais utilizado da equipa esta época, há oito jogadores que já estavam no clube. Pode dizer-se que o Casa Pia era uma equipa de Primeira Liga a jogar na Segunda?
Alguns jogadores, sim, outros nem por isso. Temos vários jogadores que são dos mais utilizados e que estão a fazer a estreia na Primeira Liga. Tivemos foi uma visão acertada de que precisávamos de jogadores que nos aportassem experiência e que ajudassem os mais novos. Acima de tudo, tentámos que não tivéssemos que mexer muito se subíssemos de divisão, ou seja, que nos dessem garantias de lutar por uma subida de divisão mas que também nos sentíssemos confortáveis se subíssemos. Estivemos até à última da hora para sabermos se íamos estar na Primeira Liga ou na Segunda. Fomos perspicazes na forma como fomos buscar jogadores. Talvez até de uma forma um bocadinho tardia. Começámos com a base do ano passado. Se calhar, foi mesmo esse o segredo. Se não tivéssemos essa base, teríamos um início de campeonato muito mais atribulado.

Também esses jogadores em estreia na Primeira Liga vivem esse espírito de transcendência?
É um desafio que eles têm que ter. É importante fazer ver às pessoas que eles têm capacidade. Também precisam de ter oportunidade. Não quisemos ir pelo caminho mais fácil que era fazer uma equipa para subir de divisão e depois mudar tudo. Acreditamos muito na base desta equipa, como é óbvio, com a ajuda de novos jogadores que têm que vir sempre para acrescentar algo.

Devido a essa falta de conhecimento dos jogadores do Casa Pia face à Primeira Liga, estava à espera que a equipa pudesse dar esta resposta ou até a si o surpreendeu?
Tenho que ser honesto. Se a 1 de julho de 2022 me dissessem que, neste momento, estávamos aqui a falar e que o Casa Pia estava em quinto, teria dúvidas disso. Tinha a convicção de que muitos dos jogadores que se iam estrear na Primeira Liga estavam preparados para isso, mas tínhamos que dar provas. Muitos dos jogadores do Casa Pia já conseguiram mostrar que são jogadores de Primeira Liga, que vão fazer carreira na Primeira Liga, apesar de não terem experiência. Nesse aspeto, nunca tive dúvidas. Tínhamos o objetivo de atingir a manutenção o mais rápido para podermos ter tempo e tranquilidade para pensarmos num upgrade para a próxima temporada.

Portanto, ainda é um clube com espaço para melhorias…
Tem que ser. Temos que ter a preocupação que tudo à volta da equipa cresça, toda a estrutura, todos departamentos. Temos ainda muito a melhorar nas coisas que ajudam a que os jogadores estejam apenas e só focados naquilo que é o seu trabalho.

Em que aspetos?
Primeiramente, pelas infraestruturas. É urgente que o estádio avance…

Ainda se sente a jogar fora mesmo jogando na condição de visitado?
Não me sinto tanto a jogar fora, porque o apoio dos nossos adeptos tem sido cada vez mais crescente. Sentimos que há um sacrifício por parte deles de nos acompanhar. Têm sido inexcedíveis. Acaba por ser a essência do Casa Pia. É um clube que tem raízes humildes, um clube que sabe o sofrimento da vida e tudo o que está à volta da vida. Os adeptos do Casa Pia têm que ter a noção de que somos um clube honrado, humilde e que tem muita vontade de continuar a crescer e cimentar-se na Primeira Liga sabendo que nem todas as épocas vão ser assim. Quem me dera a mim que o Casa Pia nunca mais voltasse a jogar na Segunda Liga. Na brincadeira, até disse isso ao presidente. Disse-lhe ‘Aproveite bem esta subida de divisão que nunca mais vai sentir isto’. E ele: ‘Então?’. Respondi-lhe: ‘Claro, nunca mais vamos descer’.

Percebo que o Filipe também prevê continuar nesse projeto…
O futebol é muito volátil. Sinto-me realizado dentro daquilo que é a minha ambição como treinador. Algo que tinha como objetivo era afirmar-me como treinador da Primeira Liga. Tinha tido uma passagem conturbada na Primeira Liga [no Feirense], um bocadinho à aventura…

O que correu mal nessa experiência [o Feirense desceu de divisão] e acabou por aproveitar para melhorar agora?
Lidei com coisas com que nunca tinha lidado, lidei com a adversidade que é o início do reinventar de qualquer pessoa. Nunca sabemos se somos capazes de dar a volta quando não passamos por maus momentos. Provavelmente, voltava a ir para o Feirense, porque o fiz em consciência. Tal como, quando aceitei vir para o Casa Pia [2020/21], foi uma decisão arrojada da minha parte mas que estava muito suportada nas pessoas que estão à frente do Casa Pia. Tivemos que fazer em 15 dias uma equipa competitiva. Tudo isso foi um desafio que não deixou de ser um risco. A confiança que me passaram fez-me acreditar numa equipa que tinha feito 11 pontos [2019/20], apesar da paragem das competições devido à Covid-19, e que estava praticamente descida de divisão. A minha estadia no Casa Pia vai sempre depender de duas coisas. Do lado de lá e do lado de cá, estarmos contentes. Acaba por ser um casamento que já vai para três anos, o que, hoje em dia, é difícil…

Deixe-me pegar nessa ideia. Na primeira época de Casa Pia, teve que preparar em 15 dias uma equipa para jogar uma sempre competitiva Segunda Liga. A temporada não correu como desejava [nono lugar a 20 pontos do lugar de subida] comparativamente com a época seguinte em que subiram de divisão. Hoje leva praticamente dois anos e meio à frente da equipa. Afinal, um treinador ter tempo para trabalhar uma equipa é mesmo importante?
É fulcral. Quando digo que preparei uma equipa em 15 dias, preparar uma equipa sem jogadores, é contratar uma equipa completamente nova, fazer uma pré-época em competição. O objetivo foi amplamente cumprido, o que nos permitiu, devido ao facto de termos atingido a manutenção cedo, ter uma almofada para prepararmos o ano seguinte. Tínhamos na nossa cabeça que queríamos subir no segundo ano. Atacámos o mercado com mais tempo, com mais certeza.

"É muito confortável chegar ao fim de semana e ter o marido para ir passear, mas, muitas das vezes, ele não está presente. Não é fácil ser familiar de um treinador de futebol. A nossa família tem que gostar de viver o nosso sonho"

Na altura em que falamos, o Casa Pia já realizou uma volta completa do Campeonato. Já jogaram contra todos os adversários. Que equipa é mais difícil de defrontar na Primeira Liga a nível de montar um plano de jogo e uma estratégia para anular os pontos fortes?
O Sporting, em Alvalade, foi a equipa que nos causou mais problemas. Há quatro equipas que estão a fazer um campeonato acima de todas as outras. O Benfica, o FC Porto e o Sporting. O Sp. Braga está a tentar aproximar-se até por ter recebido agora uma injeção de investimento que lhe permite voltar a ter jogadores da qualidade do Pizzi e do Bruma. Neste momento, a equipa que tem mostrado ser mais competente é o Benfica e é a equipa que posso considerar que é a melhor equipa em Portugal, porque vai à frente, é difícil pará-los. Mais do que nos preocuparmos com os pontos fortes dos adversários, temos que estar focados naquilo que nós controlamos, ou seja, o nosso modelo de jogo. Já fomos capazes de parar o FC Porto com dez jogadores, como sofremos agora a maior derrota da época por 3-0 no Estádio da Luz. Isto tem muito a ver com o que está do lado contrário.

E jogadores? Algum que lhe encha particularmente as medidas?
Passou um jogador em Portugal que é claramente de outra galáxia: Enzo Fernández.

Tenho alguma curiosidade em relação ao particular que o Casa Pia realizou contra a Roma durante a paragem para o Mundial. O que é que retirou desse jogo?
Foi o realizar de um sonho. Defrontar o mister José Mourinho, que é uma referência para todos os treinadores portugueses. A abertura toda que ele teve e a humildade que demonstrou…

José Mourinho comentou algo consigo em relação à temporada do Casa Pia?
Sim. Por acaso, foi muito engraçado. Eles fizeram a observação do Casa Pia. Mourinho disse ‘Parabéns, não é fácil desmontar a vossa organização. Só vimos ali uma coisa’. Pediu-me que fosse buscar o computador e passou-me um vídeo da nossa equipa. Fez uma análise que tenho guardada. Inclusivamente, mostrei trechos aos jogadores, porque é importante sabermos as fragilidades que os outros veem na nossa equipa. Aquilo foi muita coisa junta. Primeiro, privar com uma pessoa que é uma referência. A seguir, ter da parte dele esta abertura de me dizer o que é que achou na minha equipa. Depois perceber, apesar de ele estar noutro nível, a humildade que teve naquele momento. É um incentivo para que continue a ser a pessoa que sou. O estatuto dele mudou, mas a essência esteve ali bem presente. Não tinha necessidade de o fazer. Acabou por me dar um momento de partilha que tenho de agradecer muito. Só me levou a sentir-me orgulhoso.

E o jogo em si? Apesar de ser um particular, os jogadores levaram a partida a sério?
Na mesma medida, acho que todos nós nos sentimos motivados para jogarmos contra estrelas mundiais, campeões da Europa que estavam ali a jogar contra nós. Foi vermos uma realidade diferente, especialmente a nível físico vimos uma realidade diferente. A constituição física da equipa da Roma… são tudo jogadores acima de 1,84m. Foi um desafio interessante. Demos uma boa réplica [o Casa Pia perdeu 1-0], mostrámos qualidade. Foi mais um passo no nosso crescimento.

Foi também esse o feedback que obteve por parte dos jogadores?
Senti no ar uma excitação igual a quando vamos aos Estádio da Luz ou ao Estádio do Dragão. Quando enfrentamos um desafio, temos tudo a tirar de positivo.

Completou contra o Santa Clara o jogo 100 no comando do Casa Pia. Qual foi o mais marcante de todos?
O jogo da subida contra o Leixões foi o culminar daquilo que era um objetivo especial meu e do clube. Do ponto de vista pessoal, queria que o meu pai visse aquele momento. E também o jogo contra a Académica, que foi o primeiro jogo depois de ter saído do hospital em que estive no banco. Jogos com características diferentes. Um pela realização de um sonho e de um projeto para o qual muito trabalhámos, o outro mais a nível pessoal.

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Técnico recorda história do particular com a Roma de José Mourinho em que o português mostrou a falha que tinha encontrado na sua organização

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Em relação ao seu pai, já na Primeira Liga, contra o Rio Ave, vai a jogo no dia em que soube da morte dele. Isso diz muito do que são os sacrifícios que é preciso fazer para estar na elite?
Na elite e não só. Há sempre a tendência de falarmos do momento em que chegamos à elite mas não podemos esquecer que os treinadores de formação, muitas vezes, passam pelas mesmas coisas. Saem dos seus trabalhos e vão dar treino aos meninos à noite. Muitas das vezes, quando chegam a casa, já os seus filhos estão a dormir. Eu vivi essa realidade toda. Sei o que é treinar num pelado, sei o que é ensinar meninos que nem sabem dar um chuto numa bola. Tive que percorrer todas essas etapas. Neste momento, estou na elite a nível nacional. Temos que dar uma palavra não só àqueles que são muito bem remunerados para ser treinadores e que exigem esse sacrifício, mas também àqueles que, muitas vezes, pagam para treinar. Quando digo ‘pagam’, pagam mesmo. O que ganhamos no futebol de formação em Portugal [treinou equipas de formação no Real Massamá e no Belas] não dá para pagarmos a gasolina…

Como é que define então essas passagens?
Cheguei a alimentar atletas nossos que íamos buscar a casa no dia do jogo, porque não tinham como ir, e como não tinham tomado o pequeno-almoço, parávamos numa pastelaria para os alimentar. Nem toda a gente tem a oportunidade de chegar à Primeira Liga mas acho que é gratificante. Todos os jogadores deviam passar por essa fase. São experiências únicas. A família é sempre muito prejudicada a nível de tempo connosco. Passam por muito daquilo que são os resultados. É muito confortável chegar ao fim de semana e ter o marido para ir passear mas, muitas das vezes, ele não está presente. Não é fácil ser familiar de um treinador de futebol. A nossa família tem que gostar de viver o nosso sonho.

Por isso é que decidiu ir a jogo contra o Rio Ave?
O meu pai não me perdoaria se não fosse. Era a única coisa que podia fazer, nunca iria virar as costas à minha equipa, porque eles também não me viraram na altura em que passei o que passei. Foi a melhor homenagem. Conseguimos uma vitória mas o pensamento estava só nele.

Mais tarde, teve novamente um momento difícil a nível pessoal. Já referiu noutros contextos que, enquanto esteve internado no hospital devido a complicações relacionadas com a Covid-19, interagia com a equipa a partir do hospital através de videochamadas, dando palestras às escondidas dos médicos. Como é que, dentro do estado de saúde mais débil, se conseguia manter ligado ao futebol e alimentar essa paixão?
Isto é um vício que nós temos, não tem explicação. Nós, treinadores, só sentimos o quanto precisamos do futebol quando estamos em casa sem emprego. Há que valorizar todos os dias em que temos uma equipa para treinar, principalmente quando nos dão as condições que, felizmente, hoje em dia tenho. Quem está ligado ao futebol, não consegue fazer mais nada. Vendi peças de automóvel durante sete anos e só queria que chegasse às seis da tarde para ir dar treino aos meus meninos no Belas. O futebol é uma coisa que não se explica. Tem que se ter uma paixão muito grande para passar pelos altos e baixos. Quando temos sucesso, sentimo-nos os reis do mundo, mas muitas vezes temos que ir buscar forças para não nos sentirmos os piores do mundo quando as coisas não nos correm bem. Temos que conseguir encontrar uma estabilidade na nossa vida que nem sempre é fácil de gerir. Vale a pena todos os maus momentos que passamos para depois saborearmos os bons.

Muitas vezes, diz-se que os jogadores de futebol vivem numa bolha muito própria. Os problemas que passou ajudaram-no a olhar de uma forma diferente para o lado humano das pessoas que tem à sua frente?
Acho que aquilo que mudou com esse internamento foi valorizar a própria vida, porque sempre fui uma pessoa que se considerou bastante humana nas minhas relações pessoais, seja com os meus amigos ou com os meus jogadores. O que realmente mudou foi valorizar o que está para lá de uma janela. Foi pela primeira vez olhar para uma janela e gostar de a abrir e não poder. Gostar de estar lá fora e não poder estar. Quando estamos cinco semanas dentro de uma sala de hospital em que não podemos sair dali, valorizamos aquilo que a vida nos dá e que, normalmente, não valorizamos. Os dias passam e nós não desfrutamos. Se calhar andamos chateados com coisas que não fazem sentido. Quando estamos nestes apertos é que valorizamos apanhar ar fresco na cara.

"O meu pai não me perdoaria se não fosse [ao jogo, no dia em que morreu]. Era a única coisa que podia fazer, nunca iria virar as costas à minha equipa, porque eles também não me viraram na altura em que passei o que passei"

Que balanço faz do mercado de inverno em que o Casa Pia adquiriu o Soma, o Beni, o Kiki e o Felippe Cardoso?
As expectativas que temos é que vamos ficar mais fortes, vamos ficar mais fortes numa perspetiva de presente e de futuro. Todos eles são jogadores jovens. O Yuki Soma, pelo estatuto que já atingiu, talvez seja, de todos eles, o que está mais próximo de se afirmar rapidamente. Os restantes são jogadores que acreditamos que nos podem aportar algo. Dois deles [Beni e Kiki] vêm da Segunda Liga e acredito que se vão afirmar na Primeira. O Felippe é um jogador que já chegou a um certo patamar no Brasil e esteve dois anos na Segunda Liga do Japão. É um jogador do qual temos muito boas referências e do que nos pode dar. Acabámos por repor as saídas.

Sai com mais soluções?
Saio com soluções diferentes. Se tudo correr como esperamos, podemos ficar com uma equipa com mais opções e mais competitiva.

No sentido contrário, teve que fazer algum esforço para manter as principais peças?
Se não aconteceu, foi porque a administração achou que era importante que ficassem. Se fiquei contente que o Lelo continuasse, que o Godwin continuasse? Como treinador, tenho que dizer que sim. Como também ficaria muito contente se algum deles tivesse saído para um patamar superior. Isso também dá valor ao treinador. Pelo menos, sinto que quando um jogador meu sai para um patamar superior, isso é uma realização pessoal. Sinto-me parte integrante do sucesso dessa pessoa. Estava preparado para os perder e tínhamos dentro do plantel soluções. Temos uma estrutura preparada para identificar jogadores para substituir uma lesão ou uma venda e se não tivéssemos, neste momento, temos as coisas muito bem organizadas no departamento de scouting.

Foram questões que afinaram com a ida do Casa Pia para a Primeira Liga, ou seja, o scouting passou a ser mais minucioso?
Não diria mais minucioso. Foi o tal crescimento da estrutura. Fomos nós como equipa técnica que, quando começámos o projeto, criámos o departamento de scouting que não existia.

Quando falamos em scouting, falamos em recrutar jogadores fora do clube. A nível do que pode ser o consumo interno, a formação do Casa Pia também tem passos para dar em frente?
Não vou dissociar aquilo que é a formação daquilo que é o futebol sénior. O futuro do Casa Pia tem que ser muito por aí. Será importante termos os escalões de formação todos no patamar mais alto. Um dos próximos passos é a criação de uma equipa Sub-23 que nos possa permitir olhar para dentro. É um dos projetos a realizar em breve. Para que isso exista, temos que dar os passos prioritários. Neste momento, a transformação tem mais a ver com infraestruturas do que a criação de novas equipas. Temos que nos modernizar.

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Filipe Martins, de 44 anos, passou por Estrela da Amadora, Oriental, Câmara de Lobos, Atlético, Odivelas e Pêro Pinheiro como jogador

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O plantel do Casa Pia tem uma média de idades de 27 anos. Um dos jogadores mais experientes é mesmo o Vasco Fernandes. Acaba por ser uma figura carismática, com um discurso muito assertivo. É a sua voz dentro do campo?
Quando fui buscar o Vasco e lhe entreguei a braçadeira foi porque via nele aquilo que era um capitão. O Vasco, dentro daquilo que é o seu perfil, tem desempenhado bem o papel. Depois, tem essa capacidade de comunicação, é um ser humano muito inteligente. Já lhe disse que pode seguir no futebol na vertente que quiser. Tem perfil para ser treinador, tem perfil para ser diretor desportivo, tem perfil para fazer o que quiser. É um atleta que, para chegar aos 36 anos e jogar neste patamar, tem que trabalhar bem. Na minha ausência, o Vasco foi um elemento muito importante dentro daquilo que é a continuação da minha liderança. Pode dizer-se que é um exemplo como capitão, não só no discurso e nas palavras bonitas mas, muitas vezes, também nas atitudes dentro e fora do campo. É muito competitivo, gosta de ganhar. Não é fácil para um treinador muitas vezes gerir essas situações, porque acaba por exigir muito dos colegas.

O Afonso Taira, ao Canal 11, disse que existiam lideranças muito diferentes dentro do plantel. O Vasco tinha uma liderança de “levar tudo à frente” e o próprio Taira era uma pessoa de “colocar água na fervura”…
Temos um grupo de capitães e outros que não precisam de ter a braçadeira para o serem. O Vasco é aquele que tem o feitio mais vincado. No entanto, há outros elementos dentro do balneário que, à sua maneira, acabam por levar a água ao seu moinho e que são o contrabalanço. O Vasco tem uma maneira de liderar como capitão no limite da exigência. O que se passou no jogo contra o Trofense com o Clayton [Vasco Fernandes e Clayton, colegas de equipa no Casa Pia, tiveram uma altercação em pleno relvado devido à indefinição quanto ao jogador que devia marcar uma grande penalidade] faz parte muito da liderança dele. Achou que, naquele momento, tinha que haver um conflito para impor as regras. Pode ter-se excedido mas fez o seu papel como capitão.

Foi um desafio gerir essa situação?
Acaba por ser sempre, são situações que não gostamos que aconteçam. Seguramente, não se vai voltar a repetir na nossa equipa.

Ficou o raspanete aos jogadores?
Normal. Houve consequências mas não fizemos daquilo um cavalo de batalha. Resolveu-se com um churrasco. O Clayton pagou um churrasco, o Vasco também participou. É assim que as coisas se resolvem. Estamos mais tempo uns com os outros do que com a nossa família. Foi uma situação que não podíamos esconder. Quando isso acontece, temos que atuar. Resolvemos as coisas com uma conversa franca, com um churrasquinho e siga para bingo.

Por falar em perfis diferentes, o Casa Pia adicionou o Soma ao Kunimoto no lote de jogadores japoneses no plantel. Há algumas semanas, Rúben Amorim disse que todos os treinadores deviam treinar pelo menos um jogador japonês. Também faz essa recomendação aos seus companheiros de classe?
Têm sido duas agradáveis surpresas. São excelentes profissionais. A nível de personalidade, são dois atletas muito diferentes, mas, acima de tudo, são muito respeitadores das regras, uma disciplina tática muito vincada. Se o treinador pedir para fazerem um certo tipo de missões, são jogadores muito comprometidos com as suas funções.

"O que mudou com o internamento foi valorizar a própria vida. Foi pela primeira vez olhar para uma janela e gostar de a abrir e não poder"

Há valores inegociáveis que tem que reconhecer num jogador para que integre uma equipa sua?
Têm que ser atletas comprometidos. Às vezes, há alguns deslumbramentos, há alguns desvios que têm que ser rapidamente identificados. Os jogadores são humanos. Têm as suas ambições. Um ou outro tem tendência, numa ou outra altura da época, para se valorizar pela via individual. Aí, ‘a porca torce o rabo’. Não sou um treinador que ande sempre à procura de problemas, mas também não fujo a eles.

Uma das principais características que tem sido reconhecida a este Casa Pia tem sido a capacidade defensiva. A equipa é a quinta melhor defesa atrás de FC Porto, Benfica, Sp. Braga e Sporting. Trata-se de uma equipa que se sente confortável em momentos de organização defensiva e, posteriormente, de transição ofensiva. Como é que se motiva uma equipa para passar algum tempo em organização defensiva, sabendo que, depois, pode tirar dividendos a partir daí, nomeadamente do aproveitamento de um jogador como o Godwin, sobre o qual a ideia de jogo do Casa Pia gira muito à volta?
Acho que já girou mais. As características do Godwin já são muito mais conhecidas. Já há muito mais preocupação em parar as nossas transições. Nos últimos jogos, vemos que não há espaço para transições, as defesas dos adversários já estão muito mais preparadas, mas nunca vivemos apenas e só de um jogador. A organização defensiva, para mim, é sempre a base de qualquer equipa. As casas começam a ser feitas de baixo para cima. Para mim, os alicerces da casa são uma boa organização defensiva. A partir do momento em que defendemos bem, estamos mais próximos de ganhar o jogo. Não me considero um treinador defensivo. Quando não somos tão rigorosos defensivamente, as coisas não nos correm bem. Estamos a tentar preparar-nos para momentos de futebol mais apoiado.

Se a época terminasse amanhã e o Casa Pia terminasse no lugar em que está, que nome dava à história que viveu no clube até agora?
‘Épico’. A equipa estava praticamente descida. Em três anos irmos à Liga Conferência era épico. Dava um bom documentário da Netflix.

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