No início era a empatia e mais nada. Hoje não há quem não lhe conheça o mérito na prevenção e no tratamento da toxicodependência, mas quando começou garante que não sabia mais que ninguém. Porque não havia nada para saber. Ou melhor, havia muito para aprender, mas nenhum manual onde estivesse explicada uma forma de lidar com a tragédia do consumo de droga que enegreceu Portugal nos anos 80 e 90.
Os médicos faziam o que podiam e, enquanto a política não os acompanhou, iam tratando os doentes com “longas conversas sobre as coisas boas da vida e bom-senso”. Foi o que João Goulão, de 63 anos, fez, em Faro, quando lhe começaram a aparecer os primeiros pacientes com manifestações do vício. Trinta anos depois ainda lhe custa eleger, entre a “empatia” e a “técnica”, qual a ferramenta mais essencial para o sucesso de um tratamento.
Não foi para padre para não ter que abdicar de “algumas coisas das quais gostava muito”, mas foi isso que lhe indicaram os testes vocacionais. Mas como ser padre depois de um verão, aquele verão de 1974?
Essa “avidez” por tudo o que até aí tinha sido proibido esteve na base da “epidemia” que destruiu a vida de muitas famílias, mas é também a razão que João Goulão encontra para explicar porque é que foi aqui, num país periférico da Europa, que a descriminalização deu os primeiros passos. Se o fenómeno estivesse confinado às margens, às minorias étnicas, ninguém se importaria. Mas como também envolveu a classe média e média alta, houve que agir.
O Centro Europeu para a Monitorização do Uso de Droga e Toxicodependência (EMCDDA) revela o impacto das medidas: no caso da população com menos de 34 anos, o consumo de heroína caiu 70%. Em 2001 cerca de 1% da população toxicodependente era de dependentes de heroína; agora, a taxa caiu para menos de metade (0,3%) e a maioria participa em programas de tratamento. As mortes também diminuíram bastante. Em 2013 morreram 22 pessoas em Portugal. No Reino Unido morreram duas mil e, na Alemanha, mil. Por cada milhão de habitantes, morrem uma média de quatro pessoas por ano em Portugal. Por comparação, na Noruega ou na Suécia, esse número está próximo das 70 mortes. Uma entrevista de vida que é sobre a vida daqueles que ajudou.
Contaram-nos que andava sempre com uma caixinha de primeiros socorros atrás, já na escola primária. Quando foi a primeira vez que salvou alguém?
Essa ideia é engraçada. Com seis anos ou coisa que o valha eu lembro-me de ir jogar à bola e levar comigo uma caixinha dos primeiros socorros com mercúriocromo, que na altura era o que se usava.
Levava de casa a caixinha?
Era eu que levava a caixinha. Estávamos a jogar à bola e eu vinha a correr cá fora do campo buscá-la quando alguém se magoava. E fazia de massagista também. Foi de facto a minha inclinação desde muito cedo. Agora salvar alguém… Lembro-me de um episódio ainda como estudante no hospital de Santa Maria. Passei nas urgências e vi um doente com um pacemaker provisório levantar-se da cama e arrancar o pacemaker. Desabou. Caiu. De repente o coração parou. E eu atirei-me a ele a fazer a massagem cardio-respiratória, exagerei na força e parti-lhe logo ali umas quantas costelas. Fiquei muito aflito, falei com o chefe da urgência e exagerei na força, mas ele disse não fiques preocupado porque lhe salvaste a vida. Já tinha visto fazer isto mas nunca tinha feito.
E porque é que quis ser médico?
É de família. Tinha um tio que era o médico em Idanha-a-Nova. Um daqueles médicos que desde arrancar dentes a fazer partos, fazia tudo e mais alguma coisa e eu tinha um fascínio enorme por isso. Cheguei a ir com ele às casas das pessoas e ao consultório e ficava fascinado com os instrumentos que ele tinha. Foi talvez a primeira vez que me lembro de pensar nisso, mas é uma coisa de família. Só aqui em Lisboa, e que eu saiba, há pelo menos cinco Joões Goulões médicos.
Ele era o único médico de Idanha-a-Nova?
Não, havia mais um ou dois. Mas aquele era marcante. Era o João Semana que fazia tudo.
Andou um pouco por todo o lado na sua infância. Essa memória guardou-a, mas foi fácil fazer outras andando sempre a saltar de cidade?
Gostava de saber como é que fizeram tanta pesquisa sobre mim! [Risos] Sim andámos a saltitar. O meu pai fazia a expropriação dos terrenos que ficavam debaixo de água quando se faziam as barragens. Nasci em Cernache do Bonjardim quando foi a construção das barragens do Cabril e da Bouçã. Os meus pais já tinham anteriormente estado em Tomar, aquando da construção da de Castelo de Bode. Depois fomos para Portalegre quando o meu pai foi fazer a barragem do Fratel e depois o meu pai ainda foi para o Alqueva mas por essa altura já estava a estudar em Lisboa. Andei sempre de casa às costas, o que acabou por ter como consequência a falta de amigos de infância que eu tenha continuado a acompanhar, cujos percursos sejam próximos do meu. Há assim bolsas de amigos, mas não persistem grandes amizades desse tempo.
E na adolescência também continuou essa vontade de ser médico?
Também. Às tantas fiz os testes de vocação profissional e curiosamente as hipóteses mais fortes que me apareciam eram a de ser médico ou padre. Ora bem a de padre não me agradou tanto…
Porquê?
Porque teria que se prescindir de algumas coisas das quais eu gostava muito. Mas isso indiciava algum desejo de servir. A inclinação e o gosto pela medicina foram-se avolumando e foi uma escolha óbvia. Nunca tive grandes dúvidas. Embora o processo de seleção não fosse tão rigoroso como é hoje, as médias não eram tão altas.
Considera que a média deixa algumas pessoas com vocação de fora?
Acho que sim, acho que sim. E sobretudo deixa de fora pessoas com vivências que são também enriquecedoras de fora do curso de Medicina. As pessoas para conseguirem as médias com as quais acedem aos cursos acabam por passar o lado de aspetos importantes da vida e essa falta de vivências pode ter algumas consequências na sua prestação enquanto médicos. Para conseguirem aqueles dezoitos e dezanoves têm necessariamente que presidir do convívio, da socialização e de conhecer mais profundamente as pessoas reais. Pode empobrecer de alguma forma a capacidade relacionamento com os outros, que é dos aspetos mais fundamentais da prática de Medicina.
Lisboa da Almada Velha e das sessões duplas no Monumental
Depois veio viver para Lisboa, um mundo novo na Almada Velha…
Fui viver com a minha irmã, em 1971, que vivia em Almada. Através do meu cunhado conheci de facto muita gente nessa chamada Almada Velha, muitos comunistas, militantes antifascistas, comecei a conviver com eles e foram-me dando coisas para ler, um mundo novo que eu até então desconhecia…
Os seus pais não lhe falavam de política?
Lá em casa não era um tema, não estavam minimamente virados para atividades contra um regime. Foi um aspeto que mudou a minha vida, com a vinda para Lisboa conheci muita gente diferente. Li muitas coisas, as coisas do Cunhal, tudo coisas revolucionárias. Joaquim Judas é uma das pessoas que me lembro de conhecer. Lembro-me de entrar na sala de estudo do Santa Maria e ver um daqueles cartazes em papel de cenário como antigamente se faziam: “Liberdade para Joaquim Judas”. Ele esteve preso em 71 e 72 e curiosamente tive oportunidade de celebrar com ele um protocolo de intervenção junto dos trabalhadores da Câmara Municipal de Almada e dos serviços municipalizados de detenção e prevenção dos comportamentos aditivos.
Além das diferenças na vivência académica, política, quais foram as maiores diferenças que notou quando se mudou de um meio pequeno para Lisboa?
Aí passei a ter algumas amizades mais estáveis. Envolvi-me no movimento académico, depois vim a ser da direção da Associação de Estudantes. Isso foi importante, mas há outras coisas que me fascinaram em Lisboa. Tinha um desejo enorme de conhecer cinema. Havia as sessões clássicas no Império e no Monumental e algumas dessas sessões tinham dois filmes de seguida, eram baratinhos, era ótimo. Tinha um caderninho onde apontava as minhas próprias críticas a todos os filmes que ia ver, e juntava lá aquele panfleto que era distribuído com o filme, e apontava lá os meus próprios comentários. Infelizmente perdi esse caderninho…
E quais são os filmes da sua vida?
Ui, são tantos. Hoje vejo só filmes infantis no cinema com a minha filha, tenho pena mas falta-me tempo. “Taxi Driver” foi um dos que me marcou talvez por aquele negrume, aquela loucura associada à noite.
Não pensou em ser crítico de cinema?
Em part-time, poderia ter sido.
Quando chegou a Lisboa já se sentia alguma trepidação política?
Sim, isso notava-se. Particularmente lá em casa. O meu cunhado era uma pessoa muito ativa, depois foi para a tropa e foi um membro muito ativo do MFA. Soube na madrugada do 25 de Abril o que ainda se estava para passar. Eu estava a dormir. Entra a minha irmã no quarto a chorar ‘É HOJE! É HOJE!’, e eu ‘É hoje o quê?!’. Fui completamente apanhado de surpresa, mas ela sabia vagamente que se ia passar alguma coisa por aqueles dias. Saltei da cama e vim para Lisboa, vim logo para este lado. O meu cunhado veio a comandar uma força que, entre outras coisas, ocupou a Casa da Moeda. Ele tinha ligado para eu ir ter com ele a meio da manhã e levar comida, porque tinha dito que estavam todos cheios de fome. Quando lá cheguei já eles estavam regalados a comer todo o tipo de coisas que as pessoas lhes tinham dado. Eu levava fruta e coisas desse género e quando lá cheguei estavam eles a roer os seus frangos assados.
Apanhou a revolução aos 20 anos. Suficientemente novo para se deixar fascinar, mas também já com idade para filtrar e entender politicamente o que podia correr mal…
Vivi de facto esta altura num grande empolgamento. Foi uma época riquíssima em que houve imensas revelações, foram tantas as oportunidades que se nos abriram! Para além daquilo que foi o acesso à informação.
Foi rápida essa mudança?
Foi, foi! De um dia para outro a informação que nos chegava era completamente diferente. Um dia tínhamos um jornal censurado pelo lápis azul, no seguinte dizia-se tudo e todas as opções políticas estavam patentes. Andei ali um tempo meio atordoado sem perceber bem a minha opção partidária. Sabia claramente o campo em que me situava. O 25 de Abril foi em abril não é? Em junho estava a pegar na mochila e a partir num inter-rail. Até então íamos a Badajoz dar a voltinha dos tristes no fim de semana. A partir daí podia ir para a Europa sozinho, conhecer um mundo novo, ainda por cima gozando da enorme popularidade que Portugal tinha nessa altura, éramos quase heróis. A nossa revolução foi uma coisa muito única. A festa foi enorme e durou muito tempo e depois começou a fervilhar aquela discussão sobre tudo o que faltava fazer na sociedade portuguesa.
E como era essa Europa onde o receberam? Onde é que gostou mais de estar?
Foram dias muito sonhadores. Só em Veneza atraquei 15 dias. Arranjei uma namorada norte-americana e não via razão para não viver isso em pleno…
Uma sociedade “ávida” de tudo, incluindo de drogas
Essa nova fase na vida do país, essa abertura, facilitou também as experiências com drogas que também experimentou.
Experimentei mas não fui um grande entusiasta. Não foi algo que me tivesse marcado. Subitamente havia uma disponibilidade enorme, sobretudo de cannabis. Durante a ditadura, aqui, as coisas eram muito reprimidas, mas durante a guerra, no Ultramar, como se dizia, e particularmente entre os soldados, o uso de substâncias era tolerado se não incentivado, para manter as pessoas relativamente alienadas. É um pouco semelhante ao que aconteceu com os americanos no Vietname. Então muitos dos soldados — e mesmo das pessoas que viviam nas antigas colónias — tiveram várias experiências, alguns experiências prolongadas.
Essa sua experiência teve influência no que depois acabou por se tornar a sua carreira?
Não. Foi apenas experimentar.
Pergunto-lhe isto porque poderia ter visto alguém perto de si a sucumbir ao uso abusivo de alguma substância…
Sim, sim. Conheci pessoas que tiveram o mesmo nível de experimentação que eu mas depois fizeram uma carreira, digamos assim, em que as substâncias se foram tornando cada vez mais o centro da sua vida e algumas acabaram mal. Isso foi algo que veio com a liberdade, logo aí havia um chamamento muito grande. Nós tínhamos tido ecos de algumas situações que não nos tocaram diretamente, como o movimento hippie ou a revolução estudantil em França no final dos anos 60. Essas coisas passaram-nos um bocadinho ao lado, porque eram filtradas pela censura e de repente tínhamos acesso a elas… havia uma enorme avidez. Em simultâneo com essa disponibilidade, há organizações criminosas que entram no nosso território trazendo as outras: cocaína e heroína, aproveitando o mercado emergente.
Uma sociedade ávida de novas experiências, que “absorvia tudo”?
Subitamente há de tudo numa sociedade perfeitamente impreparada para lidar com isto. Não fazíamos ideia das diferenças entre uma coisa e outra, era droga e como era tudo droga, era fácil passar de umas para as outras. E isto acontece de uma forma que para mim é crucial na explicação do fenómeno no nosso país. Abrange de forma completamente transversal toda a sociedade portuguesa. Enquanto que em outras sociedades a difusão das drogas ocorre, sobretudo, nas margens, entre as populações mais excluídas, entre as minorias étnicas e outras, aqui o que se passou foi um boom de experimentação em todos os grupos sociais, incluindo classe média e alta. De tal forma que, numa dezena de anos, era praticamente impossível encontrar uma família portuguesa que não tivesse problemas com drogas. E este padrão de difusão é crucial para explicar porque é que mais tarde tivemos condições para adotar uma abordagem progressista. Quando as coisas se confinam às margens é muito difícil mobilizar vontades para políticas inclusivas. No Brasil por exemplo: “A coisa está na favela é na favela que deve continuar”.
Enquanto que aqui…
Aqui não. Essa tal difusão interclasses facilitou uma abertura de mentalidades para pensar de outra forma. Imagine uma mãe de classe média a falar com o pai:
– Ai o meu filho é bom rapazinho, ele não é um criminoso, ele é um doente que precisa de ajuda.
E uma mãe de uma zona como o Casal Ventoso a dizer exatamente a mesma coisa. Esta difusão súbita e transversal foi crucial para que tivéssemos algumas opções. Esta ideia de que estamos a abordar um problema que é sobretudo de saúde e de cariz social em vez de o tratarmos com um problema do domínio do direito criminal, meter as pessoas na cadeia, reprimir ou até bater, esta viragem foi crucial para conseguirmos uma abordagem pioneira.
Terminou o curso. Tinha que fazer um ano fora. Foi para Faro. Porquê?
Nos últimos anos do curso trabalhei com um dos profissionais que mais admiro, o doutor Dinis da Gama, cirurgião vascular. E tudo apontava para que, depois de cumprir o tal ano em serviço médico à periferia em Faro, regressaria para fazer a especialidade com ele. Tive que sair e ainda bem, era uma excelente medida.
Que já não existe.
Não. Aquilo que se pretendia era fazer as pessoas contactarem com a medicina fora dos grandes centros hospitalares e contribuir para fixar médicos fora das grandes metrópoles. No meu caso funcionou perfeitamente.
Ficou quase vinte anos…
Era suposto ir passar um ano e fiquei 17. Essa experiência foi perfeitamente reveladora. Fui colocado numa aldeiazinha, Conceição de Faro, onde tinha uma população idosa, carenciada, triste, isolada, e onde comecei a sentir que a mera disponibilidade, o mero facto de lhes prestar atenção, era meia cura. Não havia grandes doenças, ou melhor, havia, mas essas existem sempre. É uma medicina totalmente diferente daquela que se pratica nos hospitais dos grandes centros. As senhoras idosas entravam-me pelo gabinete e eu sabia os nomes delas, e pelo simples facto de ouvir as queixas, reais ou imaginadas, aquele ambiente familiar dava-lhes um conforto muito grande. Esse também é o nosso conforto, como médicos.
Procuravam-no pela companhia?
Sim, e isso foi verdadeiramente uma revelação para mim, porque a minha ideia sempre tinha sido aquela medicina hipertécnica, cirurgia vascular, uma especialidade ultra-sofisticada. O contraste com este tipo de medicina que fazia ali fascinou-me e decidi que era aquela medicina que eu queria fazer, clínica geral.
Parece que foram os seus pacientes que o tornaram no que é e não o doutor que escolheu o seu caminho…
Se calhar, se calhar. Sim, apercebi-me da riqueza da relação pessoal. Em si só, para além da técnica, do saber, a relação tem um poder curativo enorme. Insisto: fez clique e optei por aquele tipo de medicina. Foram as pessoas que me mantiveram 17 anos em Faro. Fiz um concurso para entrar na especialidade de Medicina Geral e Familiar e depois fui colocado no centro de saúde de Faro. Estamos no início dos anos 80, o boom da epidemia da heroína, e começam a aparecer famílias da minha lista de utentes a pedir ajuda. Eu não tinha nenhum saber técnico em relação a essa hora, mas tinha disponibilidade. Não havia formação. Em Lisboa havia equipas que já se iam dedicando a essa área, que era emergente.
Não foi atrás dessa “missão”, mas mais uma vez as pessoas procuravam-no…
Comecei a estar disponível, não busquei proactivamente mas as pessoas procuravam-nos.
Como é que tratava estes problemas, ao princípio?
Olhe com grandes conversas e senso comum. Habitualmente isto não é terapêutico, mas o senso-comum também é importante na abordagem destas coisas. Não tinha nenhuma técnica, só a vim a adquirir mais tarde, no Centro das Taipas, uma grande unidade vocacionada por inteiro para esta área.
Antes disso, como era?
Havia muito pouco. Existia uma consulta de psiquiatria no Hospital de Santa Maria e antes disso, no final dos anos 70, foram criados os Centros de Estudos e Profilaxia da Droga mas que, paradigmaticamente, foram instalados no Ministério da Justiça. Isto indicia também a forma de olhar o problema. Em 1987 abre então o Centro das Taipas, agregado ao Ministério da Saúde.
Como foi que se envolveu então nesta “especialidade”?
O doutor Nuno Miguel, que fica à frente do Centro das Taipas, mas antes geria a consulta específica que havia no Santa Maria, foi para o terreno, ele e a sua equipa, e precisava de profissionais, fora dos grandes centros, que pudessem funcionar com antenas das Taipas. E lá me encontraram no Algarve. Convidaram-me para um estágio nas Taipas, eu vim e voltei com a incumbência de abrir um polo. E aquilo que aconteceu comigo aconteceu com todos os colegas: fomos abrindo centros à imagem e semelhança das Taipas, muito inspirados naquele modelo, em escala reduzida. Fomos criando uma rede de Centros de Atendimento a Toxicodependentes [CATs]. Entretanto foi criado o SPTT [Serviço de Prevenção e Tratamento da Toxicodependência] que congregou os CATs e os serviços do Ministério da Justiça. Fui nomeado diretor regional do SPTT do Algarve com responsabilidades também no Alentejo. Fomos abrindo centros: Évora, Beja, Portalegre, uma extensão em Elvas e por aí fora fomos fazendo uma rede a pouco e pouco.
O Algarve sempre teve indicadores complicados, não? O caso de Quarteira, o mar ali tão perto, tráfico, grande população sazonal…
Sim, sim. O Algarve recebe muita gente, muitos turistas, há uma cultura de um certo hedonismo, muita festa e isso passa para a população, em particular para a juventude.
Do estigma à metadona
Qual era a perceção que as pessoas tinham de uma pessoa toxicodependente no Portugal dos anos 70/80? Alguma coisa entre o criminoso, o delinquente e o pecador ou não?
Sim, mas eu insisto na tal história de isto subitamente ter tocado de perto a maior parte das famílias…
Então não existia muito estigma?
Havia algum e o quadro legal ajudava a estigmatizar. As pessoas poderem ir para a cadeia pelo mero consumo de drogas era estigmatizante, mas a tal perceção social já era uma forma de tolerância a uma nova forma de encarar a coisa. A rede difunde-se. O Estado assume que esta é uma prioridade política até pelas implicações em termos de saúde pública. A prevalência da SIDA vem complicar as coisas.
É um único índice relacionado com o consumo de drogas no qual Portugal ainda está acima da média europeia. No consumo e no tráfico está consideravelmente abaixo.
É verdade. O que acontece é que os toxicodependentes contribuíram durante vários anos com o maior contingente para as novas infeções. Os nossos utentes estão hoje abaixo da transmissão por via sexual. Aquilo que na altura se via era muitas mortes por overdose, infeções com o vírus da SIDA, a delinquência, a pequena delinquência aquisitiva sobretudo. Tudo isto tinha uma enorme visibilidade pública, tal como o Casal Ventoso e os vários “casais ventosos” que havia por aqui. Tudo isto fez deste problema uma prioridade pública. Nos inquéritos de rua, nomeadamente no Eurobarómetro se a pergunta fosse “O que é que o preocupa mais em relação ao futuro dos seus filhos?”, as pessoas diziam logo “droga e toxicodependência”.
Acabou a passagem pelo Algarve…
Acabou em 1997. Fui nomeado pela dr. Maria de Belém para dirigir o tal SPTT a nível nacional. Voltei para Lisboa de armas e bagagens e de facto havia a possibilidade de expandir. Mas as pessoas não estavam a responder, tínhamos a necessidade de uma estratégia clara e até ali tinha sido tudo meio errático. Por exemplo, ao nível da prevenção. Estávamos a gastar imenso dinheiro em spots na televisão que não tinham retorno nenhum em termos de mudança de comportamentos e percebemos que aquilo era deitar dinheiro pela janela fora. Ao nível do tratamento, o nosso principal problema era os consumos de heroína, mas a nível técnico, entre os profissionais, não tínhamos consenso ainda sobre a bondade do uso da metadona. Havia centros onde estava disponível e outros onde os diretores se opunham.
Foi dos primeiros a apoiar a administração de metadona…
Claro. Havia metadona no Porto, por exemplo, mas não estava disponível no resto do país. É uma questão filosófica. A teoria é que estamos a substituir uma dependência por outra e isto não vale, isto é batota. Ora bem, já existia evidência científica da “bondade” da metadona. Eu consegui porque no Algarve muitas pessoas que apareciam nos nossos centros pediam-nos metadona para continuarem com o tratamento que estavam a receber nos seus países. Depois, foi um bocadinho pela porta do cavalo e foi uma revelação. Os progressos que eram possíveis alcançar no tratamento dessas pessoas, no seu equilíbrio, na sua capacidade de se tornarem funcionais era de tal forma que as pessoas começaram a ver que tinha que ser este o caminho…
Aquelas reportagens que marcaram os anos 90, o Casal Ventoso, as pessoas com os olhos perdidos, as seringas no chão… deve ter visto muito mais que nós. Como foi estar perto dessa realidade?
Sim, vi, vi. Fiz muito campo. Eram realidades muito complicadas. Esse consumo acelerado deveu-se, em parte, à explosão, à avidez. Mas há algumas realidades que são raras vezes abordadas. O Casal Ventoso por exemplo. O Casal Ventoso era um bairro sobretudo habitado por pessoas ligadas à atividade marítima, estivadores, operadores de gruas, trabalhadores do Porto de Lisboa. Depois da descolonização a nossa marinha mercante deixou de fazer grande sentido. O transporte de mercadorias caiu e o desemprego aumentou exponencialmente. Famílias inteiras viram-se privadas da sua subsistência, e conheciam gente no mar. Então viraram-se para atividades de subsistência como o contrabando das coisas mais diversas, de aparelhagens, máquinas fotográficas, tabaco e de repente repararam que o que em poucas quantidades dava muito dinheiro era a droga. Começaram a “importar” e tornou-se o centro de abastecimento do país inteiro. Eu vi uma senhora com os seus 80 anos à porta da sua barraca a vender panfletos de heroína e depois dizia assim:
— Oh meu filho estás tão magrinho, anda comer um pratinho de sopa.
Portanto isto era gente boa.
Quantas histórias dessas deve ter. O desespero das pessoas contra uma coisa que é química, que nos altera fisicamente e, por isso, é muito difícil contornar…
Isto foi uma coisa que me marcou para a vida. O que é que eu vou chamar a essa senhora? Uma criminosa? Uma perigosa traficante? Tal como agora, durante a crise assistiu-se a um aumento do pequeno tráfico. Porque as pessoas, muitas pessoas, foram também atiradas para situações de desemprego e andam os filhos lá em casa a precisar de comer. A droga é de facto um grande negócio. Mas há mais uma história engraçada.
Desses tempos no Casal Ventoso?
Sim. Tinha uma paciente que consumia heroína, primeiro injectável e nós desenvolvemos um tratamento por passos e o primeiro passo foi deixar de injectar e passar a fumar. Ele tinha um cão e o cão que tinha-se habituado a respirar o fumo, perto do dono. Passado algum tempo, o rapaz deixou mesmo de fumar e um dia aparece-me numa consulta e diz:
— Olhe eu ando muito bem, mas agora tem que ajudar o meu amigo que está a ressacar.
Incluí o cão num programa de metadona. E o cão esteve a fazer metadona, talvez um mês, até deixar de ganir. Quando eu chegava ao centro todas as manhãs o cão estava à minha espera. Era o primeiro cliente.
A mentalidade “not in my backyard” está a acabar
Há um ressurgimento dos casos de consumo aditivo, principalmente de heroína. Está relacionado com a crise?
Em boa medida será uma consequência da crise. Há um aumento da pressão para manter uma atividade de subsistência. Há outro fator: uma componente fundamental dos programas de tratamento que tivemos durante muito tempo era a reinserção social e laboral. Tivemos programas de discriminação positiva para emprego, era possível apoiar estas pessoas, nomeadamente oferecendo benefícios fiscais às empresas e, em alguns casos, o IEFP suportando o salário dos empregados num período de transição. Durante a crise isto desapareceu. Por outro lado, a maioria dos empregadores ao abrigo destas medidas eram micro-empresas e essas foram as mais fustigadas pela crise, fecharam às centenas, aos milhares. Uma das características desta doença, que é crónica e agressiva, é alguma dificuldade em lidar com a frustração. Muitas destas pessoas tinham organizado as suas vidas em novos moldes, tinham constituído família, assumido compromissos, e, de repente, tira-se-lhes o tapete. Houve de facto um número significativo de recaídas. O que é curioso é que um grande número de pessoas que se viram confrontadas com estas dificuldades se aproximaram dos serviços antes ainda da recaída acontecer. Era como se nos dissessem:
— Deêm-me a mão porque isto está difícil. Sinto-me em risco de…
Desde 2010 que não havia tantas pessoas a iniciar tratamentos por causa do álcool e droga
Essas pessoas têm hoje uma idade mais avançada.
Nós apanhámos estas pessoas nos seus vinte, trinta anos. Passaram vinte anos, trinta anos. Estão agora nos seus 50, 60, 70 anos. É muito complicado. Já não estamos a pensar em procedimentos e em envolvimentos terapêuticos com vista a devolver aquela pessoa completamente funcional à sociedade. A sua vida está lá atrás. E foi uma vida marcada pela doença, física e mental, e as maleitas todas resultantes de anos de uso.
Como é que devolve essa vontade de continuar?
A única coisa que tento, ou os nossos serviços tentam, porque eu hoje não estou exatamente “com a mão na massa” diretamente, é proporcionar a estas pessoas condições para envelhecerem com dignidade. Não temos grandes veleidades de fazer milagres. Além do mais estas pessoas estão desiludidas connosco. Tirámos-lhes o tapete. Ajudámos a conquistar uma vida com a qual já não contavam e depois, de repente, faltamos-lhes.
Vocês são “o governo”?
Sim, “são todos iguais”. Somos a face do Estado para o bem e para o mal. Tivemos os louros de algumas conquistas e agora o logro de algumas perdas. Não me atrapalha, mas preocupa-me.
Foi um ressurgimento suficientemente significativo para mudar de ideias em relação às salas de consumo assistido. Hoje apoia-as.
O uso por via injetável estava a cair tão vertiginosamente que quando tivemos condições políticas para avançar com esse tipo de dispositivo aquilo que me disseram do terreno foi:
— Agora não, agora vamos é em contraciclo. Agora não faz muito sentido.
Mas volta a fazer, porque há uns “cogumelos” de consumo. Podemos comparar de novo à realidade do Casal Ventoso. Em menor escala isto acontece em vários pontos da cidade, de muitas grandes cidades. Faz sentido que esta discussão volte a ser travada. E está a ser travada.
E será fácil dizer a um bairro de classe média ou mesmo alta que dali a uns dias vai nascer um centro para onde irão convergir vinte toxicodependentes todos os dias? Portugal está preparado para isso?
Acho que sim. Já passamos o momento mais complicado, que foi quando queríamos abrir os CATs. É aquela história do “Not in my backyard”. Toda a gente diz sempre:
— Isso faz cá muita falta mas é no quintal do vizinho, não é no meu.
E isso mudou?
Mudou. Eu lembro-me de participar em assembleias municipais pelo país todo a tentar convencer os deputados municipais dos benefícios da oferta de cuidados de saúde a toxicodependentes.
Que trabalho é que está a ser feito no sentido de avançar então com a ideia? Estariam esses centros concentrados nas zonas de uso?
Há trabalho de estudo a ser feito nesse sentido tanto em Lisboa como no Porto. Seria perto das zonas de uso. Houve uma ideia de instalar uma sala de consumo na Mouraria, a mim não me parece grande ideia. A Mouraria tem estado a ser requalificada e devolvida aos cidadãos sem este tipo de problemas e instalar ali um polo de atração a alguma da população mais desorganizada de toda a cidade parece-me uma má ideia, até porque a população local afetada é relativamente pequena, serão cerca de 20 pessoas. Faz mais sentido ir para um local menos consolidado em termos habitacionais onde essa eventual atração não fosse um fator.
E as pessoas deslocar-se-iam?
Não me atrapalha nada a ideia de que pudessem existir vários pontos. Além de uma unidade mais sólida e com mais capacidade, mais pontos que tivessem capacidade de servir as populações locais.
E dentro desses centros o que é que existiria?
Há sobretudo alguém que tenha a capacidade de falar. Às vezes ouço fantasiar um pouco em termos do staff. Não precisamos de ter médico permanente, não precisamos de ter pessoal muito especializado e muito dispendioso em permanência. Precisamos de enfermagem, precisamos de alguém que faça acolhimento e tenha treino para receber pessoas como os técnicos psicossociais e que têm capacidade de encaminhar, de aconselhar, de acompanhar as vicissitudes da vida daquelas pessoas. Ali teriam também um espaço onde pudessem conviver e tivessem encaminhamento para outro tipo de respostas. Haveria a possibilidade de serem rastreados para doenças infecciosas, por exemplo. Mas não é preciso ser uma coisa muito complicada. Aliás, tenho defendido que um dispositivo deste género fosse instalado em estruturas amovíveis tipo contentor, com boas condições: ar condicionado, extração de fumo, porque prevê-se que o uso via inalável, ou seja fumo, também seja autorizado. Alguma coisa que pudesse ser instalada num local e depois, segundo os fluxos da população, se não fosse necessária nesse local, metiam-se as estruturas em cima de um camião e vamos para outro sítio.
Quando é que soube que o passo teria que ser a descriminalização?
Eu não sou o ideólogo desta questão e às vezes sou apresentado como o arquiteto disto e não sou. Sou operário da mudança. Fui um dos participantes do grupo de trabalho que defendeu a estratégia de descriminalização. Era um grupo muito rico e variado. Todas as propostas que apresentámos assentavam no princípio do humanismo, ou seja vamos assumir que o cidadão é o centro de todo este sistema e que estamos a abordar um tema sobretudo ligado à saúde e aos problemas sociais em detrimento da área criminal. Em consonância com isso propusemos a descriminalização de todas a drogas. E de todas as drogas porquê? Porque o que verdadeiramente importa é a relação que a pessoa estabelece com a substância e não a substância ela própria.
Mas mesmo assim isso não era propriamente a abordagem comum na Europa, ou em lado nenhum do mundo…
A única baliza que nos foi colocada foi que respeitássemos os tratados das Nações Unidas que consagram o paradigma proibicionista. Nós fomos ao limite desse paradigma: descriminalizamos mas existem penalidades administrativas.
Pela venda.
Não. A venda é crime. Pela posse e consumo incorre-se em penalidades administrativas que são aplicadas pelas comissões para a dissuasão da toxicodependência. A grande originalidade é que estas penalizações administrativas são aplicadas por entidades afetas ao Ministério da Saúde. A polícia interceta alguém na posse de drogas ou a consumir drogas na via pública, leva a pessoa à esquadra, apreende a droga. Se tiver na sua posse mais droga do que a quantidade para dez dias de uso pessoal é enviado para o sistema criminal, se tiver menos é encaminhado para essas comissões, que existem em todos os distritos. O grande objetivo destas entidades é encaminhar as pessoas para as respostas mais adequadas.
Quais foram os maiores sucessos desta descriminalização, além da queda acentuada do consumo?
Queda do consumo, retardar do início dos consumos entre os mais jovens, diminuição vertiginosa dos números da SIDA entre toxicopedendentes, diminuição do estigma, capacidade de empregar as pessoas, o facto de deixar de ser um tabú e de as pessoas passarem a poder discutir isto nas famílias, nas empresas, nas escolas, uma maior aproximação dos consumidores ao sistema de saúde sem terem receio de serem referidos ao sistema criminal. Apesar de tudo, o fascismo ainda lá está atrás. Há uma história que remete para isso. Um dia estava no consultório e tinha um doente a falar comigo sobre os seus problemas. Toca o telefone, antigo, que parecia um intercomunicador. Ele de repente tem uma fúria, levanta-se, arranca o telefone:
— Está um polícia lá fora a ouvir o que eu estou a dizer?!
A polícia, ao início, rondava os centros de ajuda à procura de toxicopendentes?
Sim, sim. Lembro-me de aparecerem polícias em Faro, no centro que eu tinha acabado de criar, para identificarem os consumidores que lá estavam em busca de tratamento. Claro que fiz o maior chinfrim, o maior protesto, o mais enérgico possível e transmiti ao Ministério, para Lisboa. Hoje em dia isto é impensável, este tipo de atitude, tal como seria impensável junto de uma sala de consumo assistido haver hoje em dia a ronda da polícia com outro intuito que não fosse o de garantir a segurança das pessoas. Nem para interceptar, nem para prender.
Os comportamentos aditivos também se revelam no consumo de álcool…
E jogo…
É tão normal beber álcool. Não sei se também tem esta perceção um pouco empírica. Causa tantos problemas e é tão difícil de largar como a dependência de drogas e no entanto não se fala tanto. A sociedade portuguesa é demasiado permissiva?
Estamos a ter alguns progressos, mas temos um ponto de partida muito pesado. É mais complicado por causa da complacência social que há em relação ao álcool, sim. Não nos situamos num patamar de fundamentalismo. O nosso “negócio” é tratar o uso nocivo do álcool e é necessário estabelecer claramente os limites.
Considera poderem existir comportamentos de consumo muito acentuado, mas que as pessoas não reconhecem como um problema e por isso não consultam um médico?
Demoram muito mais tempo a assumir, sim. E torna-se muito mais complicado de lidar com isso. Não só por ser aceite pela sociedade, mas também pelo facto de que a própria pessoa é autocomplacente e muitas vezes os seus comportamentos não são assim tão diferentes daqueles que essa pessoa vê no dia-a-dia a acontecer. As pessoas têm tendência a desvalorizar, mas os impactos sociais e na saúde individual são pesadíssimos.
Legalização? Pode ser, mas temos tempo para analisar primeiro
Quais são, no seu entender, os “novos” problemas relacionados com a droga? O consumo de heroína desce mas há uma série de químicos, de comprimidos, de coisas híbridas que se vendem na internet, de medicamentos adulterados…
Há vários desafios. Um deles é a recaída dos cidadãos mais velhos. Como é que lhes proporcionamos por exemplo um envelhecimento digno? Depois há as novas substâncias psico-ativas mas na nossa realidade, felizmente, ainda não se verifica com a dimensão que tem ocorrido em outros países, mas temos que estar preparados para isso. Depois, também é preciso ter cuidado com as novas formas de comercialização, a internet por exemplo. A cannabis coloca também novos desafios pelas características novas dos próprios produtos com uma potência psicoativa muito maior, com a tal complacência associada: existe em relação ao álcool e existe, também, em boa medida, em relação à cannabis.
A legalização não é o caminho?
Pode ser. Neste momento há experiências que estão a ser levadas a cabo e devemos observar. Quando descriminalizámos o consumo estávamos impelidos a isso, quase forçados a fazer alguma coisa de inovador pela situação catastrófica que enfrentávamos. Hoje em dia esse não é o caso. Não é um problema resolvido na sociedade, mas estamos relativamente confortáveis com a progressão da maioria dos indicadores. O que nos dá tempo suficiente para analisar as diferentes experiências que estão a acontecer lá fora, como no Uruguai [cada pessoa pode cultivar seis plantas para consumo, o governo está a criar uma rede de locais próprios para a venda, agora vende-se em associações recreativas] e nos Estados Unidos [onde não há ainda locais de compra oficiais, mas venda nos canais não oficiais é enorme, é uma mercadoria como outra qualquer]. É complicado, porque há uma enorme mistura na discussão deste tema. Há a questão do uso terapêutico e do uso recreativo. Intencionalmente ou não, o uso terapêutico tem sido utilizado como um cavalo de Tróia para fazer passar a legalização do uso recreativo. Eu acho que não pode ser assim. O uso terapêutico é um assunto para o Infarmed e para a Ordem dos Médicos e o uso recreativo é uma discussão que tem a ver com o papel que o Estado deve ou não assumir na proteção do cidadão, até onde vão as liberdades individuais, até onde o cidadão poderá escolher se usa ou não, um cidadão supostamente informado.
O argumento de quem defende esta legalização é de que o consumo não faz mal, não é suposto que os consumidores sejam tratados ou como criminosos, ou como doentes, porque não são nem um nem outro…
O que é certo é há um número significativo de pessoas que fica doente, que apresenta sinais de dependência. E com o álcool é a mesma coisa. As pessoas usam drogas por várias razões mas simplificando, uma de duas: ou para potenciar o prazer, e esta ideia do prazer muitas vezes está ausente do discurso sobre as drogas: as pessoas usam drogas porque são boas, com as aspas todas, mas ninguém usa drogas para sofrer. Prazer aqui é potenciar sensações agradáveis, de relaxamento, de convívio, de descompressão, de festa, de discoteca e há drogas apropriadas a essa realidade. E outros usam drogas para avaliar o desprazer. Numa como em outra situação o maior risco é que a substância se torne na única fonte de prazer que a pessoa é capaz de sentir e, como tal, torna-se o centro da vida e a partir daí tudo o que faz é orientado para obter aquela sensação.
O tratamento saiu da alçada do SICAD. Pode voltar?
Está em discussão. Há um grupo de trabalho a preparar um relatório nesse sentido. Do meu ponto de vista não foi totalmente bem sucedido. O tratamento passou para as ARS (Administração Regional de Saúde) mas de facto temos aqui uma direção geral, pensamos as políticas, e tudo mais mas depois a implementação… Eu vivi essa experiência. Sentia-me muito mais confortável no IDT com a capacidade de pensar as políticas e de as executar diretamente.
E no meio dessa vida aparentemente sempre tão focada nas outras pessoas… onde ficou a sua vida pessoal?
De uma forma geral não me queixo. Uma vida cheia, uma vida feliz. Tenho uma família numerosa, quatro filhos…
Casou duas vezes?
Três vezes. Tenho uma boa relação com todas elas, com toda a gente. Hoje estou casado com uma amiga de infância. Uma amiga que vim a encontrar 30 anos depois, do tempo em que vim para Almada, ela morava na mesma rua da minha irmã.
E na altura não se conheceram?
Conhecemo-nos na altura! Havia assim algum chamego… mas não pegou. Depois fui para o Algarve, casei. Ela chegou a ficar a tomar conta dos meus filhos mais velhos para eu e a minha primeira mulher sairmos para ir ao cinema, ou assim, aqui em Lisboa. Reencontrei-a no aeroporto, onde ela trabalha. Ia apanhar um avião e ela estava lá. Trocamos números de telefone e tal, começamos a sair. Resultou. É uma companheirona.