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Escolheram um dos hotéis mais caros da Suíça, do grupo Kempinski. O empresário António Coelho insistiu que ali ficassem e fez até questão de pagar a Emílio G. todas as despesas. Afinal, tinha sido ele a preparar esta viagem para que o amigo pudesse conhecer as instalações da empresa onde estaria a ser investigado e concretizado o seu projeto: o “Dar Life”, um “chip injetável” capaz de detetar precocemente o cancro, cuja patente já estaria registada e que estaria prestes a ser comercializado.
Até então, nada tinha levado Emílio a suspeitar do amigo ou sequer do seu projeto. Nem o facto de nenhum investigador do tal chip estar nos escritórios da Suíça: estariam a viajar nessa altura, justificou-lhe António. Tinham-se conhecido há cerca de um ano e depressa se tornaram próximos, passaram a frequentar a casa um do outro e até a viajar juntos. E, por arrasto, as famílias de ambos. Emílio confiava em António: sabia que era “uma pessoa bastante influente, com grande poder económico” e com “diversos investimentos” na área da investigação biotecnológica. Era até amigo de Isabel dos Santos e partilhava com ele conversas e negócios que tinha com a filha do, à data, presidente angolano. Tudo isto, segundo lhe dizia António.
Mas o hotel caro, a viagem à Suíça, os supostos negócios e até a amizade com Isabel dos Santos não eram se não um “esquema de persuasão muito requintado e cauteloso” que António desenvolveu para mostrar credibilidade, iludir as suas vítimas e depois dar o golpe final: convencê-las a investir nos seus negócios, que eram, afinal, fictícios. Não havia nenhum chip injetável capaz de detetar o cancro a ser desenvolvido. “[António] não era detentor de quaisquer ações e as sociedades descritas como detentoras da patente “Dar Life” não têm existência jurídica”, lê-se no acórdão que o condenou esta quarta-feira, vários anos depois.
Emílio foi só a primeira vítima deste esquema. Depois dele, houve mais três. As queixas de algumas delas deram origem a uma investigação que levou António a tribunal por quatro crimes de burla qualificada e um crime de falsificação de documento. Agora, dez anos depois de ter conhecido a sua primeira vítima, foi condenado a cinco anos e meio de prisão por quatro crimes de burla qualificada e ao pagamento de 335.802 euros a três dos quatro lesados no processo, tendo sido absolvido pelo crime de falsificação de documento.
Na leitura do acórdão, esta quinta-feira, o presidente do coletivo de juízes condenou o arguido a cinco anos e seis meses de prisão por quatro crimes de burla qualificada e ao pagamento de um total de 110.802 euros a três dos quatros lesados, tendo sido absolvido pelo crime de falsificação de documentos. Numa breve explicação da decisão, o tribunal considerou que a “esmagadora maioria” dos argumentos da acusação foram considerados como provados e, por isso, “não teve dúvidas” em dar razão aos quatro ofendidos no processo, acrescentando que o arguido induziu-os em erro, criando uma “mise em scène”.
“O arguido construiu uma realidade para convencer os ofendidos de investimentos financeiros, da existência de uma patente, de uma sociedade, da realização da venda de ações e da sua capacidade financeira”, sublinhou o presidente do coletivo de juízes. Segundo o tribunal, a versão apresentada pelo empresário portuense durante o processo “não resiste” a duas questões fundamentais: “O arguido é a pessoa que aparentava ser? A resposta é negativa. O arguido tinha capacidade financeira para investir no desenvolvimento do projeto e queria fazê-lo? A resposta é negativa.”
Primeira vítima pagou 250 mil euros por ações de sociedade inexistente. Segunda era um empresário de biotecnologia e medicina regenerativa
A amizade que António foi alimentando com Emílio fazia parte de um “plano delineado” por ele para “granjear a confiança” de Emílio e, assim, conseguir com que ele “lhe disponibilizasse quantias em dinheiro, a pretexto de investimentos seguros e rentáveis” — que na verdade eram “inviáveis” pois não havia qualquer investigação em desenvolvimento. Mas António não queria outra coisa se não “apropriar-se de tais quantias”, segundo se lê no acórdão do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
Convencido de que António detinha a patente do chip, que estaria a desenvolver na Suíça, nas instalações que ambos tinham visitado, Emílio assinou um contrato denominado “assignment of shares”, redigido em inglês. Nesse documento, de 10 de Abril de 2012, o acordo era este: António vendia ações da sociedade Ulley Group Suisse S.A., detentora da patente “Dar Life” e, em troca, Emílio transferia-lhe 250 mil euros — o que fez, sem saber que a Ulley Group Suisse S.A. não tinha existência jurídica e, por isso, o contrato que acabara de assinar não tinha qualquer correspondência com qualquer negócio ou atividade existente.
Foi por intermédio da primeira vítima que António conheceu a segunda, em junho de 2012: Rui S., um empresário da área da biotecnologia e medicina regenerativa. O método que usou para um não foi muito diferente do que usou para o outro. Tal como fizera com Emílio, começou a fomentar uma amizade e rapidamente passaram a frequentar a casa um do outro. Mas existiram algumas particularidades neste caso.
Para convencer Rui de que podia confiar nele, disse ser médico veterinário e ter uma pós-graduação em ciências económicas. Depois, não só garantiu que era “um investidor abastado” e que tinha “vastos recursos financeiros” como manifestou interesse em investir na empresa de Rui, ligada à área da biotecnologia e medicina regenerativa. Mais: pedia-lha ajuda para escrever textos técnicos sobre a tecnologia para deteção precoce do cancro, para dar mais credibilidade ao suposto chip injetável para deteção de indicadores cancerígenos que estaria a desenvolver. Contava até a história de que tinha começado a desenvolver a tecnologia do chip depois de a mãe ter morrido, vítima de cancro.
Burla de 348 mil euros com ações, patente e chip falsos em julgamento no Porto
António acabou por convencer Rui a adquirir ações, em seu nome e em nome da empresa que tinha na área da biotecnologia e medicina regenerativa, em três sociedades suas: uma, sediada nas ilhas virgens britânicas, que era a suposta detentora da tecnologia do chip injetável, outra que possuiria a patente do “Dar Life” e ainda uma terceira, que António dizia ter direitos sobre uma dívida de São Tomé e Príncipe.
Rui acabou por transferir-lhe mais de 5,7 mil euros em várias tranches. Além disso, em setembro de 2013, fez oito entregas em dinheiro, em envelopes fechados, no montante total de cerca de 5,5 mil euros, para investir na tal empresa que António dizia ter direitos sobre uma dívida são tomense. Os envelopes foram entregues na morada onde o empresário dizia residir.
Mantendo a sua promessa, António acabou mesmo por dizer a Rui que queria avançar com a intenção de investir na sua empresa ligada à área da biotecnologia e medicina regenerativa. Em outubro de 2014, entregou um pagaré — “um meio de pagamento frequentemente utilizado em Espanha, que consiste numa promessa unilateral, escrita, de pagamento de um determinado montante numa determinada data”, segundo é explicado no acórdão. Esse pagaré dizia respeito ao montante de 65 mil euros e, dias mais tarde, entregou outro no mesmo valor.
No dia em que entregou o primeiro destes dois títulos, o arguido pediu a Rui que “lhe fossem depositados 10% dos valores que ia investir alegando que tal montante era imprescindível para que as autoridades espanholas não colocassem a hipótese de os pagamentos por ele efetuados corresponderem a movimentos de branqueamento de capitais”. E assim fez, a empresa de Rui transferiu mais de 14 mil euros. António comprometeu-se a devolver todos aqueles valores. Mas, segundo o acórdão, devolveu apenas 1,5 mil euros.
Para justificar o restante dinheiro em falta, António enviou uma mensagem a Rui, remetendo uma captura de ecrã, que supostamente comprovaria que as suas contas bancárias tinham sido bloqueadas. O arguido nunca entregou o restante dinheiro, nem sequer o registo das ações das empresas nas quais Rui teria investido.
Leitura do acórdão do caso de burlas com chips para detetar cancro adiada
António ofereceu ações da alegada empresa detentora da patente à terceira vítima. E levou a quarta à sua quinta no Douro
António tinha várias formas de aliciar as suas vítimas. À terceira, Serafim S., além de garantir que a patente já estaria registada e que o chip estaria prestes a ser comercializado, chegou mesmo a oferecer-lhe algumas ações dessa sociedade de investimento que possuía na Suíça, influenciando-o de seguida a comprar mais. Dizia-lhe que “seria um ótimo investimento, uma vez que a patente teria um valor incalculável”, lê-se no acórdão. Convencido pelo arguido, Serafim foi-lhe entregando várias quantias em dinheiro ao longo de dois anos. O total? 50 mil euros. Recebeu mesmo documentos que supostamente comprovavam que tinha adquirido ações.
António aproveitou-se da morte de um irmão para se aproximar da sua quarta e última vítima — pelo menos — conhecida. Rui C. passava por uma “fase difícil da vida” e o arguido mostrou-lhe “solidariedade e muito apoio”. A amizade veio quase que naturalmente: “Rui começou a conviver assiduamente com o arguido, tendo chegado a deslocar-se à quinta que o arguido possuía no Douro”.
António acabou por atingir o seu objetivo: fazer com que investisse no suposto chip injetável — o que Rui acabou por fazer. Entregou-lhe 50 mil euros para o suposto projeto. Segundo o acórdão, recuperou cerca de 38 mil, mas ficou lesado em cerca de 12 mil.