Não foi por falta de aviso. O Governo deixou que se instalasse um inusitado confronto público em torno de quem deve supervisionar a associação mutualista Montepio e, em particular, quando é que a idoneidade de Tomás Correia deve ser avaliada — agora ou daqui a 12 anos. Mas o Banco de Portugal deixou escrito num parecer que seria melhor evitar essa confusão e chegou a avisar o Governo nesse sentido.
Segundo um parecer a que o Observador teve acesso, o Banco de Portugal avisou há mais de um ano que seria importante deixar “expressamente previsto”, na legislação do novo código das mutualistas que estava em preparação, que a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) deveria ter “o poder de reavaliar de imediato a adequação para o exercício de funções” dos principais responsáveis pelas associações que ficassem sob a alçada do novo regulador — essencialmente a Montepio Geral Associação Mutualista, liderada por António Tomás Correia.
A recomendação não foi acatada pelo ministério de José António Vieira da Silva, que não só deixou margem para duplas interpretações na legislação — ou seja, a redação final da lei não deixou “expressamente previsto” que as idoneidades deviam ser avaliadas “de imediato” — como, também, manteve o período de 12 anos para o regime transitório de adaptação das mutualistas ao novo código. No parecer do Banco de Portugal pode ler-se que um período de adaptação de 12 anos seria “excessivamente generoso, podendo colocar em causa a própria efetividade prática do regime regulatório previsto“.
A opinião do Banco de Portugal em relação ao anteprojeto do novo código, que na altura estava em consulta pública, era que a ASF deveria ser “dotada do poder para afastar do exercício das funções as pessoas que considere desadequadas“. Esse poderia ser o caso do líder da maior mutualista portuguesa — Tomás Correia, do Montepio –, que acaba de ser alvo de uma contraordenação relativa a um dos processos que tem em análise no Banco de Portugal, um caso relativo a falhas no sistema de controlo interno do banco que foi liderado por Tomás Correia até 2015, em particular nas regras de concessão de financiamentos e de análise de risco. Tomás Correia foi multado em 1,25 milhões de euros e vai recorrer dessa decisão.
Candidatos querem novas eleições para tirar do Montepio o “abcesso” Tomás Correia
Contudo, a ASF, liderada por José Almaça, e o Ministério do Trabalho e Solidariedade Social, de Vieira da Silva, envolveram-se nas últimas semanas numa troca de argumentos, em público, em que a ASF recusa ter poderes legais para verificar a idoneidade de Tomás Correia e, por outro lado, Vieira da Silva garante que a legislação é “muito clara” ao dizer o contrário. Num comunicado conjunto, subscrito não só por Vieira da Silva como, também, pelo Ministério de Mário Centeno, o Governo diz que não é necessário fazer qualquer clarificação da lei.
O que a legislação diz é que cabe à ASF “analisar o sistema de governação e os riscos a que as associações mutualistas estão ou podem vir a estar expostas e a sua capacidade para avaliar esses riscos, por referência às disposições legais, regulamentares e administrativas em vigor para o setor segurador”. Mas para José Almaça, presidente da ASF — que até está de saída e já foi recebido em Belém pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa –, “analisar o sistema de governação” não é o mesmo que verificar a idoneidade de quem quer que seja.
Como é que a ASF recusa analisar idoneidade?
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A leitura da ASF é que a lei de agosto de 2018, que aprovou o novo Código das Associações Mutualistas, fixou um regime transitório de 12 anos até que “as associações mutualistas que reúnam os requisitos legalmente exigidos pelo artigo 136.º do referido Código passem a estar sujeitas ao regime de supervisão financeira do setor segurador”, que são a Montepio Geral Associação Mutualista e a Montepio Nacional da Farmácia Associação de Socorros Mútuos. Enquanto esse período transitório não terminar, “às associações mutualistas não se aplica o regime jurídico da atividade seguradora”, ou seja, que levaria a que a idoneidade de Tomás Correia tivesse de ser avaliada, por estar num cargo de gestão fiduciária.
A legislação final acabou, portanto, por ser redigida de uma forma que deixa margem para muitas dúvidas. Algo que levou, no último domingo, o comentador político Luís Marques Mendes a defender, na SIC, que neste “espetáculo público” — a troca de galhardetes entre a ASF e Vieira da Silva — quem tem razão é a ASF, porque, na opinião de Marques Mendes, “a lei não lhe dá o poder de decidir sobre a idoneidade de Tomás Correia”.
Marques Mendes concluiu dando uma “sugestão” ao ministro Vieira Silva: “se está de boa fé deve fazer uma pequeníssima alteração” à lei, clarificando-a e conferindo expressamente o poder de avaliar a idoneidade das questões ao regulador dos seguros. Se isso for feito, “acabam-se as dúvidas para sempre” e certifica-se que deve ser a ASF, e já, a avaliar a idoneidade de Tomás Correia — como o Banco de Portugal defendia no parecer agora revelado pelo Observador.
Se Vieira da Silva optar por não fazer esta “pequeníssima alteração, duas linhas de texto”, então Marques Mendes concluirá que “há um gato escondido com rabo de fora”. Esta foi uma declaração que causou muita perplexidade junto dos defensores de Tomás Correia, sabe o Observador, já que estes consideram que a “sugestão” feita por Marques Mendes seria fazer uma lei ad hominem.
O Observador enviou perguntas para o Ministério do Trabalho e Solidariedade Social, mas não obteve esclarecimentos até à publicação deste artigo. Este texto será atualizado caso esses esclarecimentos cheguem.
Vieira da Silva já teve (outra) oportunidade para clarificar
A realidade, porém, é que Vieira da Silva já teve oportunidade de fazer essa “pequeníssima alteração”. Foi em meados de janeiro último, já depois dos argumentos esgrimidos na campanha à Associação Mutualista, já depois dos editoriais na imprensa que davam conta de uma ausência (no novo Código das Mutualistas) de poderes da ASF para verificar a idoneidade de Tomás Correia, já depois de este ter vencido a corrida ao Montepio, garantindo um quarto mandato à frente da maior mutualista portuguesa.
A 16 de janeiro deste ano foi publicado, sem pompa nem circunstância (o novo diploma nem preâmbulo tem), uma nova alteração (a terceira) ao Regime Jurídico de Acesso e Exercício da Atividade Seguradora e Resseguradora. Este regime jurídico é a pedra-base de toda a atuação do supervisor dos seguros, a ASF, estabelecendo os limites do que pode ou não pode fazer e como o pode fazer.
Na verdade, a lei 7/2019 de 16 de janeiro visava, no geral, apenas a transposição de uma diretiva europeia (2016/97) sobre distribuição de seguros e de resseguros, mas o articulado inclui algo mais, um ponto em concreto que surpreendeu algumas fontes do setor ouvidas pelo Observador. Esta lei sobre distribuição de seguros e resseguros foi aproveitada pelo legislador para acrescentar um artigo, o 33-A, ao regime de funcionamento da ASF, mais concretamente aos artigos sobre supervisão. E o que diz o artigo 33-A?
Em termos simples: reforça e concretiza a ideia de que a Associação Mutualista Montepio Geral (e a Monaf — Montepio Nacional da Farmácia Associação de Socorros Mútuos) só estarão sujeitas integralmente à supervisão da ASF “findo o período transitório estabelecido” no Código das Associações Mutualistas de agosto do ano passado. Ou seja, o Governo reiterou que a ASF de José Almaça poderia e deveria avaliar e decidir sobre a idoneidade de Tomás Correia, mas reforça numa nova lei, de janeiro, que o supervisor só o poderá fazer “findo o período transitório” — que é de 12 anos.