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VIH: do medo à inclusão

Reportada pela primeira vez nos anos 80, a doença outrora fatal passou a crónica, e o medo do desconhecido foi dando espaço à inclusão dos doentes de VIH. Mas há ainda um caminho a percorrer.

Estávamos no final de 2019 quando o mundo foi abalado por um vírus desconhecido: o SARS-CoV 2. Pouco ou nada se sabia sobre ele, exceto que poderia ser fatal. Cerca de 40 anos antes, na década de 80, o mesmo tinha acontecido, com maior incidência nos Estados Unidos da América (EUA), mas com um vírus que suscitava ainda mais dúvidas: é que a maioria dos infetados era homossexual. Os padrões epidemiológicos indicavam, assim, que fosse uma doença sexualmente transmitida. O primeiro nome atribuído a esta então nova patologia foi GRID (Gay-Related Immunodeficiency Disease, em tradução livre, Doença de Imunodeficiência Relacionada a Gays). Mais tarde, percebeu-se que, afinal, esta doença também afetava utilizadores de drogas injetáveis, hemofílicos e pessoas que tinham recebido transfusões de sangue — muitas vezes de venda sem controlo de qualidade e segurança. Quando começou a surgir também entre heterossexuais, e que nada tinha a ver com a orientação sexual, o Center of Disease Control and Prevention (CDC) — órgão de saúde pública americano — alterou o seu nome para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA). A Síndrome causada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH).

O medo do desconhecido

Perante este vírus desconhecido, o medo surgiu e, com ele, veio a discriminação de quem era infetado ou estava próximo de quem era infectado. Mas houve quem tivesse encarado este receio e se debatesse pela dignidade de quem sofria da doença. Estas pessoas foram os enfermeiros do Hospital Geral de São Francisco, nos EUA, que criaram a primeira ala hospitalar do mundo para tratar e acompanhar os doentes com VIH: a ala 5B.

5B: a ala dos heróis de São Francisco

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“5B” é um documentário produzido por Dan Krauss e Paul Haggis que conta a história de um grupo de enfermeiros do Hospital Geral de São Francisco, nos Estados Unidos da América, que, em 1983, enfrentou o medo e a discriminação ao criar a primeira ala hospitalar no mundo para tratar, acompanhar e acarinhar os doentes com VIH, os quais, à data, enfrentavam uma sentença de morte. Apresentado pela primeira vez no Festival de Cannes, o documentário conquistou, em 2019, um Grand Prix do Cannes Lions Awards. Para consciencializar a população sobre o VIH, a Janssen transmitiu, numa sessão especial no cinema NOS Alvaláxia (em Lisboa), o documentário “5B”, no passado dia 15 de março.

Como forma de lembrar este feito e para consciencializar a população sobre o VIH, a Janssen transmitiu, numa sessão especial nos cinemas NOS Alvaláxia, em Lisboa, o documentário “5B” [ver caixa: “5B: a ala dos heróis de São Francisco”]. A antecedê-lo, a farmacêutica juntou-se ao Observador para a conversa “Do Medo à Inclusão — A evolução cultural e o futuro”, que contou com o contributo do investigador Alexandre Quintanilha; do escritor Richard Zimler; do infecciologista e um dos pioneiros na pesquisa sobre o vírus VIH/SIDA em Portugal, Kamal Mansinho; e do Presidente do GAT — Grupo de Ativistas em Tratamento, Luís Mendão.

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Dos EUA para Portugal

Nos anos 70, São Francisco, nos EUA, era, talvez, uma das cidades mais livres, onde homossexuais e heterossexuais co-habitavam, e em que a sexualidade não definia uma pessoa. Foi esse “espírito” livre que fez mudar o escritor Richard Zimler de Nova Iorque para a cidade californiana. “São Francisco era o primeiro sítio nos Estados Unidos, senão no mundo, em que ser gay era um não-assunto”, começou por dizer.

“São Francisco era o primeiro sítio nos Estados Unidos, senão no mundo, em que ser gay era um não-assunto.”
Richard Zimler, escritor

Mas quando os primeiros casos de SIDA surgiram, esse não preconceito foi deitado por terra, e, “de repente, ser gay era um assunto”, recordou. “Porque todos nós [gays e lésbicas] tínhamos, possivelmente, uma bomba-relógio dentro do nosso próprio corpo”, relembrou. Para Richard, saber que poderia estar infetado e transmitir à pessoa que amava, podendo matá-la, era o pior. “Matar uma pessoa que nós amamos é um stress constante. Eu vivi anos e anos e anos de um stress absolutamente terrível e constante”, confessou. Mais tarde, Richard Zimler viveria bem de perto a realidade do VIH, depois de o irmão mais velho contrair a doença, falecendo anos mais tarde. No escritor, ficou um sentimento de culpa por não ter conseguido salvá-lo. Mas na verdade, à época, pouco se sabia sobre o vírus.

Quem também se mudou para São Francisco na década de 1970 foi o deputado e investigador Alexandre Quintanilha. Saído da África do Sul, numa época de repressão, depara-se com uma “explosão de liberdade”, como referiu.

“Matar uma pessoa que nós amamos é um stress constante. Eu vivi anos e anos e anos de um stress absolutamente terrível e constante.”
Richard Zimler, escritor

Corroborando Richard Zimler, Alexandre Quintanilha relembra como tudo mudou e como a doença foi sempre associada à comunidade homossexual, incluindo na própria designação: “Apesar dos profissionais perceberem que isto [o VIH] já existia nos anos 80, começa com nomes muito curiosos: era o Gay-Related Immunodeficiency Disease (GRID), um dos primeiros nomes; depois chamou-se 4H, porque era a doença dos Homossexuais, dos Hemofílicos, dos Haitianos e dos consumidores de Heroína, heroínianos. E só em 82 é que aparece o nome AIDS [SIDA, em Português]”, relembra.

“Apesar dos profissionais perceberem que isto [o VIH] já existia nos anos 80, começa com nomes muito curiosos: era o Gay-Related Immunodeficiency Disease (GRID), um dos primeiros nomes; depois chamou-se 4H, porque era a doença dos Homossexuais, dos Hemofílicos, dos Haitianos e dos consumidores de Heroína, heroínianos. E só em 82 é que aparece o nome AIDS [SIDA, em Português]”
Alexandre Quintanilha, deputado e investigador

Apesar de a identificação do vírus ter acontecido entre 83 e 84, só em 86 é enviada uma “carta, imensamente detalhada, a 107 milhões de moradas nos Estados Unidos, para informar sobre o VIH. E só na primavera de 87, é que [Ronald] Reagan assume que é um problema de saúde pública nos Estados Unidos”, enumera Alexandre Quintanilha.

Foi este “retrocesso” na década de 80 que fez com que o deputado e Richard Zimler (que se constituíram como casal depois de se terem conhecidos em São Francisco) decidissem eleger Portugal como a sua morada de residência, uma vez que “quase não se falava sobre esse assunto” no nosso País, nessa altura, relembra Alexandre Quintanilha.

"Só na primavera de 87, é que [Ronald] Reagan assume que é um problema de saúde pública nos Estados Unidos.”
Alexandre Quintanilha, deputado e investigador

O lado da ciência

Enquanto o vírus progredia, a comunidade médica assistia atónita. No documentário 5B, percebemos o quanto esta doença dividiu os profissionais de saúde: entre os que arriscavam e apenas queriam o bem-estar dos doentes de VIH, e os que quase os repudiavam.

“Este exercício de aprendizagem veio exatamente de quem estava doente. Não foram os livros que me ensinaram.”
Kamal Mansinho, diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital Egas Moniz

Em Portugal, como no resto do mundo, os médicos tateavam com os infetados causas e experiência que lhes pudessem dar uma pista da doença. “O meu primeiro contacto com doentes com imunodepressão foi um contacto com doentes que vinham de países da África Ocidental. Para mim, essa doença que se viria a chamar SIDA, e cujo vírus só foi isolado 5 ou 6 anos depois (e estou a falar do vírus VIH 2), tanto atingia homens como mulheres. Tivemos casais em que um dos membros esteve internado, e anos depois apareceu o outro membro do casal também com a doença. Era uma doença que começou, para alguns de nós, por estar completamente fora daquilo que era esperado encontrar-se, de acordo com o conhecimento que nós íamos tendo”, recordou Kamal Mansinho, infecciologista e um dos pioneiros na pesquisa sobre o vírus do VIH/SIDA em Portugal.

“Foi um percurso longo, um percurso difícil, um período inicial de trevas, em que os doentes chegavam e morriam.”
Kamal Mansinho, diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital Egas Moniz

Kamal Mansinho partilhou como foi importante para a pesquisa o saber como era feito o consumo de droga, de modo a que a comunidade médica pudesse construir um kit de prevenção. E para o conseguirem, foi importante a partilha detalhada feita pelos seus doentes. “Este exercício de aprendizagem veio exatamente de quem estava doente. Não foram os livros que me ensinaram.” Até entenderem a doença, “foi um percurso longo, um percurso difícil, um período inicial de trevas, em que os doentes chegavam e morriam”, independentemente de tudo o que os médicos fizessem e pesquisassem, lembrou Kamal Mansinho.

“Esse percurso foi único. De tal maneira único que me balizou tudo o que procurei fazer agora, nesta pandemia da Covid-19. Foi quase a medida que eu precisava para não perder nem a humanidade, nem o rigor científico, nem a compaixão no tratamento de uma doença."
Kamal Mansinho, diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital Egas Moniz

“Esse percurso foi único. De tal maneira único que me balizou tudo o que procurei fazer agora, nesta pandemia da Covid-19. Foi quase a medida que eu precisava para não perder nem a humanidade, nem o rigor científico, nem a compaixão no tratamento de uma doença que nós, mais uma vez, tateámos no princípio”, admitiu o infecciologista.

Diagnóstico: VIH/SIDA

“Começámos com o medo, chegámos à inclusão. Começámos com uma doença que era fatal, estamos, agora, com uma doença que é crónica. Começámos com discriminação, e estamos, felizmente, cada vez mais a falar de uma maior e mais natural integração.” Carla Jorge de Carvalho, jornalista da Rádio Observador e moderadora desta mesa redonda, começou por apresentar desta forma o antes e o agora do VIH. Uma visão pouco partilhada por Luís Mendão, Presidente do GAT: “Eu acho que a inclusão e o fim da discriminação não têm esse percurso radioso para o paraíso que, muitas vezes, gostaríamos ou pensaríamos que poderia ser”, referiu. “Mas é esse ceticismo também que me faz começar todos os dias a pensar que tenho de fazer as coisas que eu acho que sei fazer. O ceticismo não me mata, não me inibe; faz-me querer fazer o melhor”, retorqui.

"O ceticismo não me mata, não me inibe; faz-me querer fazer o melhor.”
Luís Mendão, presidente do GAT

A primeira vez que ouviu falar de SIDA foi em França, quando estudava bioquímica na Universidade Pierre e Marie Curie. Na altura, a doença era conhecida como o cancro dos gays. “Lembro-me, de na discussão na Universidade, dizer ‘mas que raio é que tem um homem homossexual na sua bioquímica que leve a que haja uma doença que seja só deste grupo de pessoas?’ E, naquela altura, com o professor, muitos de nós achámos que uma das explicações é que fosse transmissível. Que não tivesse uma origem individual, mas uma cadeia de transmissão”, recordou.

“Lembro-me, de na discussão na Universidade, dizer ‘mas que raio é que tem um homem homossexual na sua bioquímica que leve a que haja uma doença que seja só deste grupo de pessoas?'”
Luís Mendão, presidente do GAT

Quando se soube como acontecia a transmissão do VIH, Luís lembra-se de ter pensado: “Eu tenho 23 anos, nós trabalhámos tanto para a liberdade nos anos 70, e isto vai tudo virar para trás.” Não estava, de todo, errado, sobretudo quando em 1996 lhe foi diagnosticado SIDA. “O meu diagnóstico aconteceu porque durante 3 anos, eu sentia-me cada vez mais doente e sentia-me a envelhecer de maneira galopante”, recordou. Mas até chegar ao diagnóstico final, recebeu outros tantos que nada tinham que ver com o VIH, como, por exemplo, uma depressão.

“O meu diagnóstico aconteceu porque durante 3 anos, eu sentia-me cada vez mais doente e sentia-me a envelhecer de maneira galopante”
Luís Mendão, presidente do GAT

Para o Presidente do GAT, apesar de ter tido uma vida assumida com vários parceiros de ambos os sexos, sempre achou que o tinha feito de forma muito segura, o que nunca o levou a fazer o teste do VIH. “Tinha ido fazer [o teste] em 85, quando houve os primeiros testes disponíveis, para saber se estava tudo bem. E a partir daí, achei que não tinha corrido grandes riscos.” Até ao dia em que desmaiou em casa e pediu para ser internado. Altura em que fez todos os testes e exames, e descobriram o que tinha: VIH.

Em que fase nos encontramos?

26 anos depois do diagnóstico, Luís Mendão continua a fazer a sua vida graças aos avanços da ciência, mas também do esforço contínuo de várias organizações. Filipa Mota e Costa, Managing Director da Janssen Portugal, aplaudiu o papel de Portugal para atingir, em 2019, a “meta dos três 90” traçada pela Organização das Nações Unidas (ONU): 90% dos infetados diagnosticados, 90% dos diagnosticados em tratamento, e 90% dos doentes em tratamento com carga viral não detetável.

“Temos uma missão que vai muito além do medicamento, e queremos, de facto, contribuir para a comunidade em que nos inserimos.”
Filipa Mota e Costa, Managing Director da Janssen Portugal

Mas relembrou as metas que devem ser atingidas até 2030: “95, 95, 95, e há também que trabalhar no quarto 90. O 90 da qualidade de vida que estes doentes podem ter”. É neste sentido que a Janssen, companhia farmacêutica do grupo Johnson & Johnson, está empenhada. “[Na Janssen] temos uma missão que vai muito além do medicamento, e queremos, de facto, contribuir para a comunidade em que nos inserimos”, referiu. Foi por isso que a Janssen criou esta iniciativa, de modo a “contribuir para o combate de qualquer tipo de estigma e de discriminação”, realçou.

“Mas também foi graças a cientistas e à indústria farmacêutica que foi possível desenvolver-se tratamentos contra o VIH, transformando, assim, uma doença fatal numa doença crónica.” 
Filipa Mota e Costa, Managing Director da Janssen Portugal

“Chamamos à sessão de hoje ‘Do medo à inclusão’, porque foi essa evolução que se deu, de facto, nesta área. Foi graças ao humanismo dos profissionais de saúde em todo o mundo, foi graças a ativistas que contribuíram para abrir a sociedade, foi graças a investigadores que trouxeram mais conhecimento à sociedade… foi graças a todos eles que temos hoje uma comunidade mais tolerante e mais inclusiva”, enumerou. “Mas também foi graças a cientistas e à indústria farmacêutica que foi possível desenvolver-se tratamentos contra o VIH, transformando, assim, uma doença fatal numa doença crónica”, salientou.

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