Já perto do final do debate que opôs esta, quarta-feira, os candidatos presidenciais Marcelo Rebelo de Sousa e André Ventura, na SIC, o líder do Chega introduziu a questão da libertação dos reclusos durante a pandemia. E o tema deu origem a uma longa troca de ideias entre os dois adversários que culminou num ponto: com Marcelo a contrariar a ideia de que essa medida contribuiu para o aumento da criminalidade em Portugal. “Está provado [que a criminalidade não aumentou], há números” que o comprovam, garantiu o Presidente recandidato. Os dados oficiais comprovam isso mesmo.

O confronto começou com uma intervenção do candidato apoiado pelo Chega. “Há um Governo que se apresenta à Assembleia da República e diz: ‘Uma das coisas que vamos ter no estado de emergência é libertar reclusos’. E libertar reclusos, alguns deles com crimes, enfim, de todo o tipo — alguns deles até se meteram depois em crimes, como vimos em várias peças de reportagem”, disse André Ventura. “Um presidente de direita, ou dito de direita, permite que os reclusos saiam, quando os portugueses estão confinados em casa e os presos é que vêm cá para fora”, atirou ainda o candidato.

Durante o debate, Marcelo assumiu a responsabilidade institucional pela medida. Estava em causa, justificou, uma questão “humanitária”. E, indo ao ponto de Ventura, lançou uma pergunta e atirou ele próprio a resposta: “Aumentou a criminalidade ? (…) Não aumentou”.

A troca de argumentos não ficou por aqui. André Ventura ainda disse que estava em causa “o sinal que se dava aos portugueses”, numa altura em que ainda durava o confinamento. Ao que Marcelo respondeu que “saíram bem mais tarde, numa altura em que o confinamento tinha terminado”. Marcelo ainda insistiu com o ponto central da discussão — “Não aumentou a criminalidade, ao contrário do que [André Ventura] tinha dito” — e Ventura contrapôs com outro argumento. Houve “crimes cometidos por alguns desses indivíduos — vários”. Aí, Marcelo foi mais longe: “Está provado, há números” que mostram que a criminalidade não aumentou. Mas há dados que sustentem esta afirmação de Marcelo?

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Ora, o que está em causa nesta discussão é o regime excecional de libertação de reclusos, criado pelo Governo no início da pandemia, com o objetivo de evitar um problema maior de saúde pública — depois de ter havido vários casos de Covid-19 nas prisões. Um regime que permitiu a saída administrativa, de forma extraordinária, de cerca de 2 mil prisioneiros em abril — 1.309 saídas por perdão de penas, 703 licenças extraordinárias e 14 indultos presidenciais, de acordo com uma notícia da TVI, de 23 de agosto.

Foi nesse mês de abril que “o grosso dos prisioneiros foi libertado”, de acordo com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em resposta ao Observador.

OE2021. Ministra da Justiça descarta novo regime excecional de libertação de reclusos

Os dados disponíveis sobre criminalidade até setembro permitem perceber que houve uma redução generalizada neste período. Exceções apenas para alguns crimes, como burlas informáticas, fenómenos online e condução sem habilitação legal.

E, em outubro, referindo-se a esses dados, o Governo atribuiu a descida da criminalidade à pandemia. “Em 2020, esta circunstância especial em que vivemos contribuiu para uma redução da criminalidade geral em cerca de 10%, até ao final de setembro, e uma redução da criminalidade violenta e grave em 11,4%”, disse Eduardo Cabrita no Parlamento, durante a discussão do Relatório Anual de Segurança Interna de 2019.

Em que medida então é que a libertação de reclusos contribuiu para a evolução da criminalidade? Contactada pelo Observador, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais indica que o número de retornos à prisão, entre os cerca de 1.800 reclusos libertados, “é irrelevante”, ou seja, “estatisticamente despiciendo até agora”.

Três meses e meio depois da libertação dos 2000 reclusos de abril, a TVI noticiava que 59 desses presos tinham regressado à cadeia. E, de acordo com as notícias desse período, a maioria desses retornos deveram-se a incumprimento de regras rodoviárias, furtos, roubos, ou desrespeito do confinamento domiciliário.

Também o porta-voz da PSP confirma ter havido registo, “há alguns meses”, de um “número diminuto” de reincidências por parte de reclusos libertados à boleia da pandemia. Mas o intendente Nuno Bugalho Carocha sublinha que “mesmo que todas as pessoas que foram libertadas tivessem praticado crimes, isso no cômputo global iria dar um desvio de uma milésimas percentuais”.

“Se tivessem sido libertados dezenas de milhares de presos, isso faria diferença”, mas não é o caso. “Para que essas pessoas tivessem peso na variação da criminalidade global teriam de praticar múltiplos crimes durante bastante tempo”.

Do mesmo modo, a GNR esclarece que não lhe é possível “estabelecer qualquer relação causa-efeito” entre a libertação de alguns reclusos e a evolução da criminalidade no país.

Conclusão

Marcelo Rebelo de Sousa disse no debate com André Ventura que a libertação de reclusos, por via das medidas de combate à pandemia, “não aumentou a criminalidade”, garantindo mesmo que “está provado”.

Por um lado, é factual que a criminalidade não aumentou — num ano extraordinário, marcado pela pandemia. Por outro, mesmo tendo havido alguns crimes cometidos por parte desses reclusos libertados, é estatisticamente irrelevante, de acordo com as autoridades consultadas pelo Observador.

No entanto, Marcelo Rebelo de Sousa não estará certo quando disse que os prisioneiros “saíram bem mais tarde, numa altura em que o confinamento tinha terminado”. O processo não terminou em abril, mas foi nesse mês que a grande parte dos reclusos saiu, antes de ter terminado o confinamento, no início de maio.

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