Que modelo propôs o Bloco de Esquerda ao Governo no que diz respeito à exclusividade ou dedicação plena dos médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS)? O tema esteve em cima da mesa no debate entre António Costa e Catarina Martins, na última terça-feira, com formulações diferentes sobre a posição de cada partido sobre este tema, em função do líder político que se referia a eles. Quem tem razão?

O debate ia sensivelmente a meio quando António Costa se dirigiu a Catarina Martins para dizer que a coordenadora do Bloco de Esquerda “sabe bem que a grande diferença”, nas duas posições em discussão, “não é entre a dedicação plena que o PS defende — onde, por vontade livre dos médicos, podem produzir mais no SNS, com melhores contrapartidas — e a dedicação exclusiva que o BE quer, que significa proibir os médicos de trabalhar fora do SNS”.

De acordo com o líder socialista, aquilo que o Bloco de Esquerda propõe é um regime de “dedicação exclusiva” em que os médicos (referidos por Costa sem qualquer limitação desse universo, portanto, numa formulação aplicável a todos os médicos) ficam “proibidos de trabalhar fora do SNS”.

Catarina Martins foi a jogo nessa discussão para defender que o Bloco de Esquerda “nunca propôs exclusividade obrigatória” mas, antes, “um regime facultativo”. “O que dizíamos é que quem chefia serviços não pode estar ao mesmo tempo a trabalhar num hospital privado do outro lado da rua”, complementou a coordenadora do Bloco de Esquerda.

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O tema, na verdade, não é novo. Já nas negociações preliminares para o Orçamento do Estado para 2021, o Bloco apresentou uma proposta de aditamento ao documento sobre a “Dedicação Plena no Serviço Nacional de Saúde”. A proposta acabou chumbada e não integrou o Orçamento do ano passado e, um ano depois, o partido recuperou-a nos mesmos termos e condições para voltar à mesa de negociações já para o Orçamento do Estado para 2022.

E o que diz essa proposta?

Diz, antes de mais, que o que está em causa — como o nome indica — é a introdução de um regime de “Dedicação Plena no Serviço Nacional de Saúde” aplicável aos seus profissionais de saúde. E um regime que se divide entre “modalidades de dedicação plena obrigatória e facultativa”.

O modelo mais restritivo (portanto, obrigatório) aplicar-se-ia aos médicos do SNS que exerçam “cargos de direção de departamentos e de serviços de natureza assistencial, assim como de coordenação de unidades funcionais de cuidados de saúde primário”. Já a “dedicação facultativa” pretendia abarcar, “mediante adesão individual”, os médicos e “outros grupos profissionais que integram o Serviço Nacional de Saúde”. Ou seja, de acordo com a proposta do Bloco, médicos em cargos de direção de departamentos e serviços assistenciais, mas também de unidades de cuidados de saúde primários ficariam obrigatoriamente vinculados a um regime de exclusividade no SNS. Todos os outros médicos e profissionais de saúde teriam essa opção, mas não estavam obrigados a optar por público ou privado.

De qualquer modo, ficava claro na proposta que o Bloco de Esquerda considerava “incompatível” estar num regime de “dedicação plena” ao setor público e, ao mesmo tempo, exercer funções no setor privado.

Como contrapartida para os profissionais que passassem a estar enquadrados no regime de exclusividade, os bloquistas propunham incentivos — remuneratórios, de forma universal, e de redução do horário laboral, mediante determinadas condições.

Dedicação plena para médicos e com limites, mas Governo admite estender a outros grupos (só não diz quando)

E do lado do Governo? Em outubro do ano passado, o Executivo aprovou em Conselho de Ministros o novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde, um documento que aguarda pela regulamentação mas que consagra já o regime de dedicação plena, ainda que com nuances face àquilo que era a proposta do Bloco.

“O regime de dedicação plena é obrigatoriamente aplicável aos médicos que venham a ser designados para exercer funções de direção de departamentos ou serviços do SNS, implicando ainda, neste caso, uma limitação ao número de horas de trabalho que podem ser exercidas noutras instituições de saúde, em moldes a negociar com as estruturas sindicais”, refere a nota explicativa divulgada pelo Governo a 21 de outubro. A grande diferença está nas limitações aplicáveis aos médicos que sejam obrigados a aderir a este regime.

Governo e Bloco de Esquerda defendiam uma aplicação obrigatória deste regime aos médicos a exercer funções de direção nas unidades de saúde do SNS e também defendiam uma aplicação “progressiva” no tempo. Mas, enquanto o Governo admite que esses profissionais, em cargos de chefia no público, possam continuar a trabalhar no privado — desde que não ocupem cargos idênticos e com horário limitado neste setor –, o Bloco de Esquerda não aceitava que médicos em exclusividade pudessem acumular funções com o privado, fossem quais fossem.

O detalhe está na forma como António Costa colocou a questão: não, não é verdade, o Bloco de Esquerda não quer proibir todos “os médicos de trabalhar fora do SNS”; É importante ressalvar que o regime é de adesão voluntária para aqueles profissionais que não exerçam funções de chefia no setor público. A nuance ganha maior relevo tendo em conta que, quando se refere ao modelo defendido pelo Governo, António Costa menciona expressamente que a adesão (para quem não exerça funções de direção) se faz por “vontade livre dos médicos”. Nesse ponto, os dois modelos são coincidentes.

Conclusão

António Costa enquadrou a proposta do Bloco de Esquerda de tal forma que a obrigatoriedade de dedicação exclusiva parecia aplicar-se a todos os médicos do setor público de saúde. O líder do PS disse que “a dedicação exclusiva que o BE quer (…) significa proibir os médicos de trabalhar fora do SNS”, mas isso não corresponde ao rigor dos factos. Sobretudo quando, ao referir-se ao modelo apresentado pelo Governo, o líder do PS mencionou o princípio de que é por “vontade livre” que os médicos fora de cargos de direção aderem ao regime de exclusividade.

Governo e Bloco defendem a exclusividade obrigatória para cargos de chefia. Todos os outros profissionais desta classe podem aderir de forma voluntária. Mas o Governo aceita que a “dedicação exclusiva” seja acumulada com funções no setor privado, desde que não idênticas às de chefia que têm no público, enquanto o Bloco pretendia ir mais longe e impedir qualquer acumulação.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

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