No meio de milhares de mulheres, todas de preto, todas de burca, destaca-se uma figura que caminha na direção oposta à das restantes. É uma mulher com a cara e o cabelo destapados que segura nas mãos um livro de capa vermelha, que parece estar a ler.

O texto que acompanha a imagem garante que ela representa as mulheres afegãs. O “inferno”, percebe-se pelo mesmo texto, refere-se à ascensão dos talibãs — para quem os direitos das mulheres são inferiores aos outros —, que tomaram o poder no Afeganistão em agosto deste ano. A publicação diz ainda que este é um trabalho da artista Shamsia Hassani. Todos estes elementos fizeram com que a fotografia se tornasse viral rapidamente. No entanto, ela foi digitalmente alterada e nem sequer faz parte do portfólio de Hassani. As afirmações são falsas.

Com o fim da intervenção militar dos EUA no Afeganistão, e depois de os talibãs tomarem o poder no país, muitos dos direitos que as mulheres afegãs tinham conquistado ao longo dos anos estavam em risco. Foi nessa altura que se espalhou a imagem viral — em francês, inglês ou espanhol. Em português há várias versões, uma delas inclui mais detalhes sobre Shamsia Hassani, “33 anos, grafiteira e professora na Universidade de Cabul”.

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É verdade que Hassani tem 33 anos, dá aulas de desenho e desenho anatómico na Universidade de Cabul e faz painéis de graffiti. O seu site oficial diz que é “a primeira artista feminina de graffiti no Afeganistão” e que através das suas obras representa “mulheres afegãs numa sociedade dominada por homens”. Porém, a imagem em causa — que nada tem a ver com graffiti — não lhe pertence. A própria clarificou a situação através do Twitter:

Recentemente reparei que centenas de utilizadores das redes sociais partilharam esta imagem nos seus perfis como sendo o meu trabalho, mas este não é o meu trabalho. Sei que queriam apoiar-me a mim e à minha arte mas, por favor, certifiquem-se de que dão crédito ao verdadeiro artista.”

Então, quem é o autor da imagem? Fazendo uma pesquisa através da mesma, rapidamente se descobre a origem. A foto foi pensada por uma agência publicitária da República Checa, a Y&R, para promover a revista “Reporter”, uma publicação do Instituto de Tecnologia de Rochester (Nova Iorque, EUA). A mulher que aparece no centro segura uma edição da publicação — e não um livro vermelho, como se vê na publicação que se tornou viral no Facebook.

A imagem tem, aliás, mais duas semelhantes, todas parte da mesma campanha publicitária. Além da mulher de cara destapada, há um soldado que caminha no sentido oposto ao dos restantes companheiros e ainda um homem que, em vez de seguir um protesto, se afasta dele. Todos têm nas mãos exemplares da “Reporter”.

A coleção, intitulada “Changing Your Perspective — Questioning Radicalism” (“Mudando a Sua Perspetiva — Questionando o Radicalismo”), pegou em “três tópicos que foram incluídos na revista este ano e que demonstram como a informação que a ‘Reporter’ fornece tem o poder de mudar a sua perspetiva”, pode ler-se na descrição. O “ano” a que se refere o texto é 2018. Foi em abril de 2018 que a campanha foi divulgada.

Paul Hejny foi o fotógrafo responsável. No seu Facebook, o checo partilhou em fevereiro de 2020 a vitória do trabalho nos Moscow International Foto Awards (MIFA). Foi primeiro classificado na categoria de publicidade. Hejny explicou que a “Reporter” é uma “revista mensal que se foca no jornalismo de investigação. Cobre assuntos importantes, muitas vezes controversos”.

Além desta distinção, as imagens já tinham vencido o Leão de Prata na categoria de Impressão e Publicação da edição de 2018 do festival de criatividade Cannes Lions.

Conclusão

Não é verdade que a imagem de uma mulher de cara e cabelo destapados que se afasta de outras mulheres de burca tenha sido criada por uma artista afegã como protesto. A foto é de 2018 e faz parte de uma campanha publicitária que pretendia promover uma revista de jornalismo de investigação, a “Reporter”. A publicação viral foi alterada: o livro de capa vermelha que a figura central segura é, na versão original, um exemplar da publicação “Reporter”.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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