O caso tem dois anos, mas voltou por estes dias a ser partilhado nas redes sociais e a gerar controvérsia: em setembro de 2019, a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua foi fotografada no meio de um grupo de militantes e apoiantes do partido que pintavam um mural de propaganda política num dos muros exteriores do Instituto Superior Técnico, em Lisboa.

Várias publicações nas redes sociais classificaram o ato como “vandalismo” e acusaram Mortágua e os outros apoiantes bloquistas de cometerem um crime com a pintura — onde se lia “O futuro decides tu!” — nos muros da universidade. Uma dessas publicações, consultada pelo Observador esta terça-feira, já contava com perto de 3 mil partilhas, várias dezenas delas nas últimas duas semanas.

Mariana Mortágua esteve mesmo lá? Trata-se de um crime? Ou, pelo contrário, de um ato de propaganda política protegido pela lei eleitoral e, por isso, perfeitamente legal? O caso é bicudo e esteve na raiz de várias outras polémicas nos últimos anos.

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É preciso recuar até setembro de 2019 para conhecer as origens do caso. À época, vivia-se a campanha eleitoral para as eleições legislativas de outubro de 2019 e o Bloco de Esquerda incluiu, entre as suas mensagens de propaganda política, um mural pintado na parede lateral do Instituto Superior Técnico. O mural incluía uma faixa onde se lia “O futuro decides tu!” e na imagem via-se uma pequena multidão empunhando cartazes com as seguintes mensagens: “Machismo mata”, “Propinem as grandes fortunas”, “Nem – Nem +, Direitos =” e “Não há planeta B”.

O caso gerou polémica na altura, depois de o presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira, ter denunciado a situação no Facebook e classificado o ato como “vandalização de património público”. Num curto texto, Oliveira questionou: “Um graffiti feito hoje, nos muros do Instituto Superior Técnico, por autores (pouco) anónimos. Será que a vandalização de património público consta no programa do Bloco de Esquerda?”

Na altura, o Bloco de Esquerda rebateu qualquer acusação de vandalismo, sublinhando que nada foi feito de ilegal e escudando-se na lei eleitoral, que protege a propaganda eleitoral e apenas proíbe a pintura de murais em alguns lugares específicos, incluindo monumentos, sinais de trânsito, edifícios religiosos ou sedes de órgãos de soberania.

Presidente do Técnico critica “vandalização” de parede pelo Bloco de Esquerda

Agora, a propósito do regresso daquela publicação às partilhas no Facebook (especialmente durante o período de campanha que antecedeu as eleições autárquicas), o Observador voltou a questionar o Bloco de Esquerda sobre a situação.

Através da sua assessora de imprensa, Catarina Oliveira, o partido reiterou ao Observador que “a pintura não configura qualquer ilegalidade” e remeteu o jornal para a Lei Eleitoral para a Assembleia da República, designadamente para o número 4 do artigo 66.º, onde se lê:

Não é permitida a afixação de cartazes nem a realização de inscrições ou pinturas murais em monumentos nacionais, nos edifícios religiosos, nos edifícios sede de órgãos de soberania, de regiões autónomas ou do poder local, nos sinais de trânsito ou placas de sinalização rodoviária, no interior de quaisquer repartições ou edifícios públicos ou franqueados ao público, incluindo os estabelecimentos comerciais.”

No entender do Bloco de Esquerda, não pode ser imposto qualquer limite à liberdade da expressão a não ser aqueles que estão expressamente inscritos na lei. Baseando-se exclusivamente na interpretação da lei, o Bloco de Esquerda conclui que os muros do Instituto Superior Técnico não são nenhuma das exceções incluídas na lei — e, por isso, se não é proibido, então é permitido.

Questionada sobre se esta interpretação abrangente da lei levaria então à conclusão de que até a propriedade privada estaria dentro dos limites possíveis para a pintura de murais de propaganda, a assessora do Bloco de Esquerda afirmou que o partido se baseia “no que é referido na lei” e que, por isso, “é permitido pintar em todo o lado menos nos locais que são proibidos” — isto, claro, em “períodos eleitorais”, durante os quais a atividade de propaganda política beneficia de uma proteção legal especial.

O Observador questionou também a Comissão Nacional de Eleições (CNE), que através do seu porta-voz, João Tiago Machado, esclareceu que a lei que protege a propaganda política em tempo de campanha eleitoral não abrange a propriedade privada. Ou seja, os partidos políticos não precisam de autorização para afixar propaganda ou pintar murais políticos em locais públicos (salvo as exceções já mencionadas), mas não o podem fazer em propriedade privada.

“Seria crime de dano (na sua propriedade privada)”, disse o porta-voz da CNE, acrescentando que “no caso dos edifícios públicos [os partidos políticos] têm a proteção da lei, que diz quais são os edifícios onde não podem colocar propaganda”. No caso do Instituto Superior Técnico, tratando-se de uma unidade de ensino superior e investigação da Universidade de Lisboa, o local onde foi pintado o mural do Bloco de Esquerda é propriedade do Estado e, não configurando qualquer das exceções previstas na lei, a ação do partido não foi ilegal.

Ainda assim, o tema não tem sido pacífico ao longo dos anos em Portugal.

Veja-se um caso de 2010 em que nem os próprios tribunais se entenderam sobre como agir. Cinco militantes da Juventude Comunista Portuguesa (JCP) foram detidos pela PSP enquanto pintavam um mural de propaganda política no bairro das Olaias, em Lisboa. Na altura, a direção da JCP veio a público denunciar o caso e alegar que nos anos anteriores já tinha havido “mais de cem” detenções de jovens associados aos comunistas por situações semelhantes. Na origem do problema, alguma confusão legislativa: enquanto o texto da lei prevê que as autarquias disponibilizem espaços específicos para a afixação de propaganda eleitoral (o que levava a PSP a agir contra quem o fazia fora desses espaços), um parecer do Tribunal Constitucional e outro da CNE definiam que a propaganda eleitoral podia ser colocada em qualquer lugar à exceção dos locais definidos na lei.

Assim, os militantes da JCP detidos avançaram para tribunal — e perderam na primeira instância. Mais tarde, porém, os tribunais da Relação em Coimbra e no Porto viriam a dar razão à juventude comunista.

Mais recentemente, já na pré-campanha para as autárquicas deste ano, a CNE deu razão a uma queixa apresentada pela CDU em Coimbra. Neste caso, a coligação tinha pintado, num muro público, um mural de propaganda eleitoral com um apelo à construção de uma nova maternidade no Hospital dos Covões. A câmara municipal ordenou que fosse apagado, mas a CDU recorreu para a CNE, que deu razão à candidatura e ordenou a autarquia a dar dos seus próprios meios à CDU para que o mural fosse refeito.

Conclusão

Apesar de toda a questão em torno da pintura de murais políticos ter gerado discussão e ter dado origem a casos polémicos nos últimos anos, há uma certeza: o Bloco de Esquerda fez aquela pintura num mural que é propriedade do Estado e que não configura nenhuma das exceções proibitivas previstas na lei. Assim, e uma vez que a lei determina que a afixação de propaganda eleitoral não carece de autorização prévia — e que a própria CNE confirma ao Observador que, no caso de edifícios públicos, só se aplicam as exceções da lei —, o que o Bloco de Esquerda e Mariana Mortágua fizeram não é ilegal. Desse modo, as publicações que alegam, nas redes sociais, que aquele ato é criminoso ou representa um caso de vandalismo são erradas.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook este conteúdo é:

FALSO: as principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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