O cenário é caótico: num vídeo de pouco mais de um minuto que circula nas redes sociais, o médico francês Jean-Paul Théron aparece a ser agarrado à força pela polícia do Taiti, ilha da Polinésia Francesa, num confronto agressivo em que acaba por cair ao chão, rodeado dos gritos de quem assiste à cena.

Para o utilizador — um de muitos — que partilhou o momento, aquela é uma situação “inacreditável”, uma vez que, argumenta, o médico “idoso” terá sido “espancado e preso” pela polícia “apenas por receitar ivermectina e cloroquina aos seus pacientes”.

Neste post de um utilizador indignado ainda se argumenta que Théron será um “herói” que tentou “salvar vidas”. Se o tivesse feito “incentivando o uso de vacinas ou entubando pacientes”, o resultado seria diferente, diz o autor do post. Mas será que foi mesmo assim?

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É preciso, em primeiro lugar, esclarecer o que estaria em causa: tanto a ivermectina como a hidroxicloroquina são medicamentos usados para combater piolhos e sarna (no primeiro caso) e malária (no segundo) que já foram testados para tratar doentes com Covid-19, inclusivamente em Portugal, e que foram usados e promovidos publicamente por líderes mundiais como Jair Bolsonaro ou Donald Trump.

No entanto, em Portugal (e não só), já não é assim. Em março deste ano, e já depois de o Observador ter noticiado que médicos portugueses estavam a tomar ivermectina e a receitá-la a centenas de pacientes com Covid-19, o Infarmed lançou um alerta, numa nota divulgada na sua página na internet (que parece já não se encontrar disponível). Nessa altura, o Infarmed sublinhava que não existiam provas de que o medicamento, que é normalmente usado em doentes com sarna ou piolhos, fosse eficaz a combater o novo coronavírus.

Na mesma nota, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde lembrava a existência de vários estudos que analisam a eficácia do medicamento, frisando as dúvidas quanto à dose adequada e à segurança. A conclusão era, então, que analisando a produção científica até à data, e dadas as “limitações metodológicas” nos ensaios clínicos que envolveram o medicamento, a sua eficácia não estaria comprovada. Nesse mês, também a OMS esclarecia que não recomendava o uso do remédio em doentes com Covid-19.

Por outro lado, já no final de maio do ano passado o Infarmed tinha anunciado que suspenderia o tratamento de doentes com Covid-19 com recurso à hidroxicloroquina, medicamento usado para combater a malária, enviando essa orientação aos hospitais e argumentando que era preciso perceber o nível de “risco” do uso deste medicamento. Portugal tornava-se assim o quarto país europeu a avançar com a medida, depois de Itália, Bélgica e França e depois de a Organização Mundial da Saúde ter suspendido os ensaios que envolviam este medicamento.

Neste verão, a OMS viria anunciar a descontinuação definitiva dos testes com hidroxicloroquina, por não se verificar uma redução de mortalidade entre estes pacientes.

Investigação na Ordem e agressões

De volta à história de Jean-Paul Théron: embora, segundo o utilizador e as legendas que acompanham o vídeo publicado no Facebook, a detenção tenha a ver com a prescrição destes medicamentos, isto já foi desmentido pelas autoridades da Polinésia Francesa.

No final de setembro, em conferência de imprensa citada por vários órgãos internacionais, o procurador de Papete (capital da Polinésia), Hervé Leroy, esclareceu isso mesmo: Théron foi detido por atacar física e verbalmente agentes da autoridade. Estava, isso sim, a ser investigado antes por praticar medicina apesar de já estar reformado e por nem exercer regularmente a profissão nem ter os equipamentos necessários para isso, como explica a Associated Press.

Segundo escrevia o jornal francês Libération, a investigação, que está a ser conduzida pela Ordem dos Médicos, aponta para “falhas diversas e repetidas” em relação ao código deontológico. Um dos reparos tem a ver com a prescrição de hidroxicloroquina. E a Ordem, sugerindo que o médico optou por uma metodologia de “pesquisa observacional ou experimentação pessoal”, pergunta-se: “Como é que exerce Medicina? Tem um gabinete?”

A 16 de setembro, um oficial de Justiça tinha já entregue a Théron documentos relacionados com a investigação. E, segundo as autoridades, Théron já tinha atacado o homem, atirando-lhe objetos e insultando-o, o que levou à queixa por agressão.

Terá sido depois, a 18 de setembro, que as autoridades voltaram à residência de Théron para o interrogar, tendo os agentes sido insultados pelo médico e, em consequência disso, aberto uma investigação por desobediência. Depois, ainda segundo a Associated Press, Théron não apareceu na audiência em tribunal que estava marcada para 19 de setembro.

O vídeo que supostamente o mostraria a ser “preso e espancado” por receitar medicamentos cuja eficácia não está comprovada contra a Covid-19 — mas que, na verdade, mostra, segundo as autoridades, uma detenção após queixas de agressão — foi gravado a 20 de setembro.

O procurador Hervé Leroy chegou mesmo a dar uma conferência de imprensa com o objetivo de esclarecer o filme dos acontecimentos. Segundo Leroy, Théron terá “agredido física e verbalmente” o agente que lhe foi entregar os documentos a casa e ter-lhe-á mesmo atirado um objeto metálico, fazendo com que o oficial de justiça tivesse de ficar de baixa durante oito dias e em “choque psicológico”. Depois, na segunda visita a casa de Théron, terá havido as tais novas agressões verbais.

No dia da gravação, garante que o médico teve atos de “violência voluntário sobre pessoas que estavam a cumprir uma missão de serviço público”. Mas em nenhum caso, como cita o Libération, a detenção “teve a ver com factos ligados à sua atividade como médico”. Théron arrisca agora uma pena de prisão de cinco anos.

Conclusão

A publicação que afirma que o médico Jean-Paul Théron foi “espancado e preso” por receitar medicamentos cuja eficácia não está comprovada contra a Covid-19 é falsa. Como as autoridades esclareceram, existe de facto uma investigação da Ordem dos Médicos sobre as práticas de Théron, mas a detenção aconteceu depois de ter agredido física e verbalmente os oficiais de Justiça que tentaram contactá-lo em sua casa no decorrer do processo.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

 ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

 Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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