O primeiro-ministro, António Costa, afirmou esta segunda-feira que a totalidade dos incêndios rurais são provocados pela ação humana — uma afirmação que contradiz os dados científicos e estatísticos sobre esta realidade.
António Costa falava aos jornalistas em Coimbra, durante uma visita à sala de operações e comando da Unidade de Emergência de Proteção de Socorro da GNR, integrado num roteiro que o primeiro-ministro está a realizar esta segunda-feira com passagens por vários pontos estratégicos em todo o território nacional a propósito da grave situação que se vive atualmente em Portugal em relação ao risco de incêndios.
Numa mensagem essencialmente focada na necessidade de prevenção dos incêndios e no apelo para que os portugueses evitem comportamentos de risco durante a fase mais crítica de perigo de incêndios, António Costa afirmou reiteradamente que só existem incêndios se houver mão humana envolvida.
“Mas temos de contar acima de tudo com todos e cada um de nós, porque os incêndios não nascem de reação espontânea. Os incêndios nascem sempre da ação humana. Deliberada, dos incendiários, não deliberada, dos não incendiários. Mas é sempre da ação humana. Portanto, é muito importante que todos tenham presente que, perante a gravidade da situação meteorológica que vamos viver a partir de amanhã e, previsivelmente, ao longo de toda a semana, até domingo, é fundamental todos terem o máximo cuidado”, disse António Costa.
Depois, questionado pelos jornalistas sobre os meios de combate a incêndios disponíveis em Portugal, Costa insistiu: “Os incêndios só têm de ser combatidos se ocorrerem. E só ocorrem — só ocorrem — os incêndios se uma mão humana, voluntariamente ou por distração, o tiver provocado.”
“As pessoas que não pensem que é pela existência de meios aéreos que não há incêndios. Só não há incêndios se a mãozinha humana não provocar o incêndio”, acrescentou ainda o primeiro-ministro. Mais tarde, na Lousã, António Costa voltou a repetir a mesma ideia: “[Os incêndios] não têm geração espontânea, têm sempre humana, criminosa ou de pessoas que desprevenidamente em dia de calor como este criam uma faísca, que vão fazer um churrasco, que fumam na floresta, que se põem a andar de carro ou de mota e sai aquela faiscazinha.”
Horas mais tarde, já em Viseu, o primeiro-ministro insistiu na ideia de que há sempre intervenção humana na origem dos incêndios. “É preciso repetir e termos consciência disso: não há incêndio de geração espontânea, todo o incêndio nasce da mão do ser humano, ou deliberadamente ou sem intenção. Mas a verdade é que é a mão humana que provoca os incêndios.”
Mas será mesmo verdade que “os incêndios nascem sempre da ação humana”, como diz António Costa? Os dados científicos e estatísticos, bem como a história recente do país, dizem que não é verdade.
Em primeiro lugar, basta recuar a 2017, que continua bem presente na memória coletiva dos portugueses como o ano da maior tragédia dos últimos anos em Portugal. Em junho, o grande incêndio de Pedrógão Grande causou a morte a mais de seis dezenas de pessoas — e nos mesmos dias um grande incêndio em Góis aumentou a necessidade de dispersão territorial dos meios de socorro.
A dimensão catastrófica do fogo de Pedrógão Grande levou a que se buscassem respostas científicas e responsabilidades políticas, civis e até criminais em relação ao modo como o fogo foi combatido. No final, a comissão técnica independente estabelecida para investigar as causas do fogo descobriu que na origem do incêndio não estava qualquer prática criminosa nem sequer negligência por parte de seres humanos — mas sim um acidente numa linha elétrica (no caso de Pedrógão Grande) e um raio (no caso de Góis).
Efetivamente, o grande incêndio de Pedrógão Grande teve origem na pequena aldeia de Escalos Fundeiros, como é possível ler detalhadamente na página 61 do relatório final da comissão técnica independente. Segundo aquele relatório, a causa do incêndio é acidental: um raio caiu numa linha de média tensão localizada nas proximidades da aldeia, causando a rotura de alguns fios elétricos, que tocaram na copa de uma árvore muito próxima, causando uma ignição. A partir daí, o incêndio propagou-se a uma velocidade elevadíssima devido às condições atmosféricas excecionalmente instáveis que se verificavam no dia 17 de junho de 2017.
O incêndio de Pedrógão Grande foi, portanto, causado por um acidente e não pela ação humana. Isto não significa que não possam ser apontadas responsabilidades humanas a montante: parte da linha de média tensão não tinha a faixa de segurança exigida para evitar estas situações e na zona onde começou o fogo havia um conjunto de árvores mortas que não haviam sido devidamente retiradas na limpeza do terreno. Ainda assim, seria objetivamente falso dizer que o incêndio tenha sido “provocado” por “ação humana” — em particular, na formulação usada pelo primeiro-ministro, com a referência a uma origem dos fogos “sempre humana, criminosa ou de pessoas que desprevenidamente em dia de calor como este criam uma faísca”.
O relatório daquela comissão técnica independente debruça-se igualmente sobre o incêndio de Góis, que ocorreu nos mesmos dias que o de Pedrógão Grande, a poucos quilómetros de distância. Nesse caso, diz o relatório, a origem do incêndio foi um raio que caiu numa zona florestal, causando a ignição que lançou as chamas na região e fez arder mais de 17 mil hectares.
No caso dos grandes incêndios de outubro, por outro lado, os fogos foram causados por misto de razões dependendo dos lugares onde ocorreram: alguns tiveram origem na negligência de algumas atividades humanas, incluindo gestão de combustíveis, uso de máquinas e até uso de motas na floresta, e outros tiveram origem criminosa.
A realidade destes grandes incêndios do passado recente ajuda a compreender como nem todos os fogos são causados diretamente pela ação humana, como afirmou explicitamente António Costa.
Mas é possível ir além destes casos concretos. O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) publica regularmente relatórios sobre a realidade dos incêndios florestais em Portugal, nos quais são analisadas, entre vários outros aspetos, as causas mais frequentes dos fogos florestais no país.
O relatório mais recente disponível na página do ICNF data de outubro de 2021 e diz respeito aos incêndios verificados no ano passado até ao mês de publicação no relatório. No total, verificaram-se 7.610 incêndios rurais no período em estudo, 85% dos quais foram estudados pelo organismo. Dentro desse universo, foi possível encontrar uma causa para 67% dos incêndios.
Os resultados mostram uma miríade de causas para os incêndios florestais.
A principal causa encontrada pelo ICNF é o “uso negligente do fogo“, responsável por 47% dos incêndios. Dentro desta categoria incluem-se queimadas extensivas para gestão de pasto (14%), queimadas extensivas de sobrantes florestais ou agrícolas (20%), queimas de amontoados de sobrantes florestais ou agrícolas (10%), queimas de lixo (2%) e realização de fogueiras (1%).
Em segundo lugar, surge o incendiarismo por parte de indivíduos imputáveis, responsável por 23% dos incêndios.
Destacam-se, depois, as causas acidentais, que incluem situações relacionadas com transportes e comunicações (7%) e com o uso de maquinaria (6%). Os reacendimentos de fogos anteriores são responsáveis por 4% dos incêndios e as causas naturais, nomeadamente a queda de raios, originaram 2% dos incêndios em 2021.
Um outro relatório do ICNF, publicado em 2013, debruça-se especificamente sobre a análise das causas dos incêndios florestais que ocorreram entre 2003 e 2013. Nesse documento, as causas dos incêndios são divididas em três grupos: causas intencionais (responsáveis por 42% dos fogos), causas negligentes (56% dos fogos) e naturais (2% dos fogos). Importa salientar que dentro das causas negligentes são contadas as causas associadas a transportes e comunicações, por exemplo, as fagulhas libertadas pela corrente elétrica nas linhas de eletricidade ou em linhas férreas — que representam também uma parte considerável dessas causas acidentais e, embora não possam ser consideradas naturais, também não resultam de uma ação humana.
O mesmo relatório remete-nos ainda para outra conclusão importante: apesar de as causas naturais serem as mais raras, elas são também as responsáveis, em média, por uma maior área ardida em cada ocorrência — o que significa que os fogos causados por causas naturais atingem muito mais frequentemente grandes dimensões e têm impactos maiores do que os incêndios causados intencionalmente ou de modo negligente, muitas vezes apagados antes de atingirem grandes dimensões. Em média, são queimados mais de 80 hectares por cada incêndio com causas naturais.
Conclusão
António Costa disse várias vezes, e recorrendo a várias formulações, que os incêndios são sempre causados por mão humana. “Os incêndios nascem sempre da ação humana”, afirmou. Contudo, tal não corresponde em rigor à verdade. A intervenção humana, tanto intencional como negligente, é responsável pela esmagadora maioria dos incêndios rurais, mas existe uma parte considerável dos incêndios que surgem por causas naturais, como a queda de raios, ou por causas acidentais sem intervenção humana, como problemas em linhas elétricas. Basta pensar no grande incêndio de Pedrógão Grande, causado por um acidente nas linhas elétricas. Ainda que nesses casos o incêndio possa ganhar maiores proporções se tiver havido falha humana na mitigação dos riscos, é objetivamente falso dizer que “os incêndios nascem sempre da ação humana”.
Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:
ERRADO
[Artigo atualizado às 19h09 com as declarações de António Costa em Viseu em que o primeiro-ministro volta a usar a mesma formulação e a defender que só há incêndios com origem em intervenção humana]