Circula nas redes sociais uma publicação que alega que a cadeira em que o Papa se senta custa “40 milhões de dólares” e é “feita de ouro puro”. A publicação alega ainda que o Papa fica “sentado e rezando a Deus para ajudar as crianças famintas na África”, numa formulação que sugere que a Igreja Católica não tem qualquer ação concreta para resolver os problemas mais graves do mundo, apesar de ter património suficiente para o fazer.

“Esta é a sua religião — não veja o que eu faço, mas me escute e leia o que eu digo”, satiriza a publicação, que inclui uma imagem do Papa Bento XVI sentado num trono dourado e, ao lado, uma fotografia que mostra duas crianças subnutridas. “O mundo está ficando cada vez mais hipócrita… Essa é a verdade… A única religião é ser uma boa pessoa. Ninguém vai perdoar você além de você mesmo pelos mesmos comportamentos e ações.”

Trata-se, contudo, de uma publicação enganadora, baseada em especulações não fundamentadas e em informações erradas.

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Vamos por partes.

A primeira alegação está relacionada, diretamente, com a cadeira em que o Papa Bento XVI está sentado. Em primeiro lugar, importa sublinhar que Bento XVI deixou o trono pontifício em 2013, ano em que foi eleito o Papa Francisco — portanto, a publicação, apesar de ter sido feita em 12 de julho de 2024, começa com o erro de se referir a um papa que já deixou o lugar há mais de uma década.

Quanto à cadeira propriamente dita, seria um erro considerar que se trata de uma cadeira do Papa — ou sequer de uma cadeira feita especialmente para o Papa Bento XVI.

Na verdade, aquela cadeira é uma peça relativamente conhecida do espólio do Vaticano. Trata-se do trono de Pio IX e data do século XIX. Concebido em madeira e bronze e banhado a ouro, aquele trono é um dos muitos objetos recuperados por Bento XVI depois da sua eleição em 2005 — a par de vários outros, como algumas vestes litúrgicas de desenho tradicional e a férula. Há registos históricos de outros papas naquele trono. Pode ver aqui uma fotografia datada de 1905 que mostra o Papa Pio X junto à mesma cadeira.

Como escreveu em 2022 o historiador da religião italiano Daniele Menozzi, a opção de Bento XVI por objetos e vestes litúrgicas mais tradicionais é indissociável do próprio modo como Joseph Ratzinger desenhou o seu pontificado. Ratzinger, que foi um dos mais eminentes teólogos do século XX e ajudou decisivamente a moldar o Concílio Vaticano II e a Igreja Católica contemporânea, nunca escondeu a sua desilusão com o modo como a Igreja viveu as décadas posteriores ao concílio — e o seu percurso como cardeal e como Papa ficaria inescapavelmente marcado pela tensão e pelo confronto entre a tradição católica e o mundo moderno.

Ainda nas palavras de Menozzi, no desenho do seu pontificado, Bento XVI “incluiu também na tradição conceitos teológicos muito recentes, particularmente a reelaboração da herança contra-reformista levada a cabo pelo intransigentismo católico do século XIX”, uma atitude que “surgiu no plano exterior com a decisão de voltar a colocar na moda hábitos (o saturno, o camauro), paramentos litúrgicos (o pálio, as mitras e as capas tradicionais) e objetos (a férula e o trono de Pio IX) há muito abandonadas nas aparições públicas dos pontífices do pós-concílio”.

Estes objetos são obras de arte que fazem parte do vasto espólio patrimonial e artístico do Vaticano — e, embora tenham deixado de ser usados durante algum tempo, nunca deixaram de ser propriedade do Vaticano. Em 2013, quando o Papa Francisco foi eleito, o argentino voltou atrás em muitas destas decisões e adotou um estilo significativamente mais simples, tanto no modo de vestir como nos objetos que usa — e deixou de usar o trono de Pio IX, optando por uma simples cadeira branca, como usava João Paulo II.

Quanto ao valor da peça, trata-se de uma especulação feita pelo autor da publicação. Em toda a internet, a única referência existente aos tais 40 milhões de dólares é mesmo esta publicação — e outras variantes dela, em diferentes línguas. A publicação não inclui qualquer fonte para a especulação, embora se possa argumentar que, à semelhança do que acontece com praticamente todo património artístico e histórico que está à guarda do Vaticano, o seu real valor será inestimável. Um exemplo extremo: quem saberia calcular, com exatidão, quanto custa o teto da Capela Sistina?

A publicação procura, depois, estabelecer uma suposta incoerência entre o alegado preço da cadeira do Papa e uma eventual inação do Vaticano na resolução de problemas globais como a fome em África — apesar de ter os meios para isso.

Contudo, os números mais recentes sobre a realidade económica do Vaticano (respeitantes a 2022) desmentem esta alegação.

Naquele ano, a Santa Sé previu uma receita operacional de 757 milhões de euros, uma despesa total de 814 milhões de euros e um défice de 34 milhões de euros.

Dentro deste orçamento cabem entidades tão diversas como os vários departamentos da Cúria Romana, as embaixadas da Santa Sé em todo o mundo, as basílicas romanas ou o fundo de pensões dos funcionários do Vaticano. Uma fatia de leão do orçamento do Vaticano vai para o Hospital Pediátrico Bambino Gesú, em Roma — que, apesar de ser gerido pela Santa Sé, serve a cidade de Roma e é uma das principais referências da medicina pediátrica em Itália.

De onde vem, então, o dinheiro do Vaticano?

De acordo com os números de 2022, cerca de 65% das receitas da Santa Sé dizem respeito a entradas diretas referentes a serviços (incluindo o hospital pediátrico), receitas comerciais e investimentos imobiliários. De acordo com a Santa Sé, apenas 20% do património imobiliário da Igreja é usado para obter receitas económicas — os outros 80% estão colocados ao serviço da missão da Igreja em todo o mundo. Incluem-se aqui igrejas, universidades, hospitais e várias outras instituições em dezenas de países.

A segunda principal fonte de receitas (24% do total) são os donativos vindos das dioceses católicas de todo o mundo.

A terceira fonte de receitas é do Governorado do Estado da Cidade do Vaticano. É aqui que se incluem as receitas com origem nos Museus do Vaticano e no Instituto para as Obras da Religião (o banco do Vaticano). Estas fontes são responsáveis por 5% das receitas da Santa Sé (ou seja, mais de 37 milhões de euros em 2022). Importa lembrar que os Museus do Vaticano são um dos museus mais visitados do mundo, com mais de seis milhões de visitantes num só ano, ficando apenas atrás do Museu do Louvre, em Paris. A preservação e exibição aos visitantes do espólio patrimonial do Vaticano é responsável por gerar anualmente vários milhões de euros em receitas para a Santa Sé.

O Vaticano recebe ainda dinheiro do chamado Óbolo de São Pedro, um sistema de ofertórios em que os fiéis entregam dinheiro destinado diretamente ao Papa, para ser usado no auxílio àqueles que mais precisam.

E como é que o Vaticano gasta o dinheiro?

A maior fatia dos gastos do Vaticano em 2022 (401 milhões de euros) destinou-se ao Hospital Pediátrico Bambino Gesù. Cerca de 30% do total da despesa, por seu turno, é destinado à chamada “missão apostólica”. Isto significa que são cerca de 244 milhões de euros enviados, maioritariamente, para as Igrejas locais nas regiões do mundo mais necessitadas, mas também para as embaixadas da Santa Sé.

Conclusão

Trata-se de uma publicação enganadora. Em primeiro lugar, assenta numa especulação errónea em torno do suposto preço de uma peça artística que não foi feita para o Papa Bento XVI, mas que está no espólio do Vaticano desde o século XIX. Em segundo lugar, a publicação estabelece uma conexão ilógica entre aquele valor e uma eventual inação do Vaticano nas regiões do mundo mais necessitadas, uma vez que ignora que a exposição do património artístico (nos Museus do Vaticano) é uma das principais fontes de receita da Santa Sé — fundos que, por seu turno, são usados, em grande parte, em iniciativas solidárias por todo o mundo.

Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:

ENGANADOR

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

PARCIALMENTE FALSO: as alegações dos conteúdos são uma mistura de factos precisos e imprecisos ou a principal alegação é enganadora ou está incompleta.

NOTA: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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