“Somos o país mais desigual da Europa, não estamos a conseguir lutar contra as desigualdades.” Na comissão parlamentar de Economia onde, esta quarta-feira, esteve a apresentar aos deputados a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação 2020-2030, António Costa Silva colocou Portugal no fundo da tabela europeia no que diz respeito ao fosso entre ricos e pobres. Não haverá, segundo Costa Silva, nenhum país mais desigual. E ainda acrescentou que Portugal tem sido incapaz de mudar essa realidade. Ambas as afirmações estão factualmente erradas.

Um ponto de cada vez. Foi já no espaço dedicado às perguntas dos partidos que António Costa Silva disse que Portugal “é o país mais desigual da Europa”. A dúvida sobre a que tipo de desigualdade o gestor se referia — se ao acesso à educação, à cultura, aos cuidados de saúde ou a condições materiais — já tinha ficado esclarecida no início dessa intervenção, quando respondia ao deputado comunista Bruno Dias. “Não precisamos só de criar riqueza, mas de ter mecanismos para distribuir essa riqueza. Isso tem de estar no centro da reflexão” dos responsáveis políticos, defendeu Costa Silva. Aliás, acrescentou de seguida, essa tem sido uma preocupação “muito presente na cabeça” do primeiro-ministro e um assunto recorrente nas conversas que os dois têm mantido nos últimos meses.

A questão é que o ponto de partida está errado. Considerando os dados que o gabinete de estatísticas da União Europeia (Eurostat) tem compilado — e atualizado com regularidade — sobre esta questão, Portugal não surge como o país “mais desigual da Europa”. Os dados mais recentes sobre a “desigualdade da distribuição de rendimentos” (de 2019) mostram que é a Bulgária o país mais desigual, numa amostra de que constam os restantes países da União Europeia e outros Estados com processos de adesão em curso (como a Sérvia ou a Turquia) e em que é calculado o rácio entre os 20% da população com níveis de rendimentos mais elevados e os 20% com menores rendimentos. Nesse universo, atrás de Portugal (que apresenta um rácio de 5.16) surgem quatro países: Espanha (5.94), Lituânia (6.44), a Roménia (7.08) e a Bulgária (8.10).

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Estes dados de 2019 estão incompletos, quando comparados com a realidade do ano anterior, em relação à qual o Eurostat já dispõe de informação sobre mais países. E, nesse ano de 2018, Portugal surge várias posições acima na tabela — ou seja, aparece como ainda menos “desigual”. Nesse ano, encontram-se não quatro, mas 12 países com níveis de desigualdades superiores aos de Portugal. São os casos da Grécia, Reino Unido (que concretizaria o Brexit em janeiro deste ano), Luxemburgo, Espanha, Itália, Macedónia do Norte (adesão em curso), Letónia, Lituânia, Bulgária, Roménia (o mais desigual da União Europeia), Sérvia e Turquia (ambos candidatos à adesão).

Num e noutro caso, Portugal não ocupa, em definitivo, a posição de “mais desigual” da Europa e está, inclusive, relativamente afastado dos lugares do fundo da tabela.

Mas há outras formas de analisar esta realidade. Em vez de considerar o universo dos 20% mais ricos e confrontar esse dado com o dos 20% mais pobres de cada país, é possível recorrer a todo o universo demográfico dos diversos Estados e avaliar a desigualdade entre os cidadãos. No recurso ao chamado Coeficiente de Gini, quanto maior for o valor atribuído a um país, maior o nível de desigualdade. E, para Portugal, haverá alguma diferença?

Mais uma vez, recorrendo ao gabinete de estatísticas da União Europeia (que, neste caso, não apresenta dados mais recentes que os de 2018), o Eurostat mostra uma realidade diferente da apresentada por António Costa Silva. Há dois anos, havia 11 países abaixo de Portugal no ranking dos mais desiguais: Grécia (com um índice de 32.3), Espanha (33.2), Luxemburgo (33.2), Itália (33.4), Reino Unido (33.5), Roménia (35.1), Letónia (35.6), Sérvia (35.6), Lituânia (36.9), Bulgária (39.6) e Turquia (43) apresentavam níveis de desigualdade superiores aos de Portugal.

Resumindo: Portugal, ao contrário da afirmação de António Costa Silva, não é “o país mais desigual da Europa”. Mas será que, ainda assim, os responsáveis políticos se têm revelado incapazes de lidar com os níveis de desigualdade nacionais? “Não estamos a conseguir lutar contra as desigualdades”, como afirmou Costa Silva? Também não é completamente verdade.

Podemos começar por considerar a primeira tabela do Eurostat — que avalia os 20% da população com maiores e menores rendimentos. Aquilo que o gabinete de estatísticas da UE mostra, com dados de há mais de uma década (de 2008 em diante), é que houve evoluções contrastantes ao longo dos últimos 12 anos. Entre 2008 e 2010, as desigualdades reduzem-se e o índice que estava nos 6.11 passa, dois anos mais tarde, para os 5.56. Há, depois, um período de novo aumento das desigualdades, e que coincide com os anos em que Portugal esteve sob assistência financeira da troika: dos 5.56 de 2010, Portugal passa, em 2014, para os 6.23.

A partir desse momento, e até 2019, verifica-se uma contínua e ininterrupta redução das desigualdades em Portugal. Ao ponto de o cenário do Eurostat revelar o cenário mais positivo dos últimos 12 anos na sua coluna mais à direita: o índice estava, no ano passado, nos 5.16.

Recorrendo ao Coeficiente de Gini — que se fixa no período entre 2010 e 2018 –, os resultados são muito semelhantes. Depois de um acentuar das desigualdades até 2014 (com um índice de 34.5), há uma redução desse indicador, que chega a 2018 com um valor de 32.1.

António Costa Silva disse que Portugal é o país mais desigual da Europa. Mas será mesmo assim? A “Hora da Verdade“ é uma parceria TVI/Observador.

Posted by TVI24 on Wednesday, September 16, 2020

Aliás, o próprio primeiro-ministro, que encomendou a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação 2020-2030 a António Costa Silva, tem dito isso mesmo nas suas intervenções. No artigo que publicou no Jornal de Notícias no primeiro dia de 2020, António Costa escrevia isto: “Atingimos, em 2019, o mais reduzido nível de desigualdade, desde que há registos, provando que não há inevitabilidades que resistam a boas políticas”.

Conclusão

A afirmação de António Costa Silva no Parlamento, perante os deputados da comissão de Economia, é duplamente errada. Como mostram os dados do gabinete de estatística da União Europeia, não é verdade que Portugal seja “o país mais desigual da Europa” — nem é verdade que não estejamos a “conseguir lutar contra as desigualdades”. Pelo contrário: os níveis de desigualdade têm diminuído nos últimos anos.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

NOTA: este artigo foi produzido no âmbito de uma parceria de fact-checking entre o Observador e a TVI

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