Quem conhece o imponente Mosteiro dos Jerónimos, símbolo do país e homenagem aos navegadores portugueses, seguramente não está à espera de o ver quase totalmente destruído, daí o choque inicial ao ver-se uma fotografia que mostra isso mesmo. Essa foto a preto e branco tem sido amplamente partilhada no Facebook e faz-se acompanhar de uma longa descrição que diz que António Oliveira Salazar foi o responsável pela recuperação do monumento, na altura do Estado Novo. A mesma publicação refere ainda que esta atitude restauradora do Estado Novo não se ficou por aqui e estendeu-se a vários castelos nacionais — “para quem não saiba ainda em pior estado estavam a generalidade dos castelos medievais, nalguns apenas restavam os alicerces, na generalidade os castelos, como o de S Jorge, de Guimarães, de Santa Maria da Feira” — bem como ao Panteão Nacional. Apesar de haver algumas verdades nesta publicação, o seu argumento principal, sobre o Mosteiro dos Jerónimos, não está correto.

A fotografia visível nesta publicação é verdadeira e pode ser consultada aqui, no Arquivo Municipal de Lisboa, onde aparece devidamente identificada e catalogada. É graças a essa catalogação que sabemos que a imagem foi captada em 1878 e que remete para uma tragédia nacional. Foi a 18 de dezembro de 1878 que se deu um desabamento trágico que não só deixou o mosteiro no estado visível na fotografia como também matou 10 pessoas.

Dalila Rodrigues, diretora do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém, explica ao Observador que esta derrocada deu-se no momento em que todo o edifício histórico estava a sofrer grandes obras de reconversão para acomodar as centenas de crianças da Casa Pia que viriam a viver neste local: “Em 1834, extinguem-se as ordens religiosas e dá-se a passagem do património da Igreja para o Estado. No Mosteiro dos Jerónimos, esta transição antecipa-se e acontece um ano antes, porque ele [Mosteiro] passou para a alçada da Casa Pia e era preciso criar condições de alojamento e de salubridade para as crianças”, explica a diretora.

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Acontece que a obra tinha sido adjudicada “a dois cenógrafos italianos que trabalhavam no São Carlos, Aquiles Rambois e Giuseppe Cinatti, que tinham lacunas no conhecimento de engenharia” e, ao “levaram a torre a uma tal altura — ainda por cima era rematada por umas agulhas góticas intermináveis”, a construção não aguentou e cedeu.

O impacto deste desastre foi tal que “o rei D. Luís I apareceu logo no dia seguinte para se inteirar do que tinha acontecido” e, nesse mesmo dia, depois do desabamento, “foi nomeada pelo Governo, com portaria régia, uma comissão de inquérito para averiguar o que tinha acontecido”. Começou-se de imediato a pensar também na reconstrução: “Logo em 1879, um ano depois da derrocada, solicitaram o contributo do administrador da Casa Pia, que era Carlos Maria Eugénio de Andrade, para a reconstrução.” Mas todo o processo de adjudicação foi complexo, cheio de avanços e recuos.

Por fim, um projeto de Parente da Silva acabou por ser o escolhido (e é o que está em vigor até hoje), tendo depois sido concluído na primeira década do século XX, já depois do seu criador falecer. O Estado Novo começa oficialmente com a aprovação da Constituição de 1933, data em que as obras já tinham terminado, daí ser errado dizer que foi Salazar o obreiro desta recuperação.

A fotografia original que mostra o resultado da dramática derrocada no Mosteiro dos Jerónimos. D.R.

Ou seja, a afirmação de que “Salazar quando ascendeu ao poder promoveu um grande restauro do mosteiro, o qual foi concluído no final da década de 50 do século passado” está errada. A mesma diretora, anterior responsável pelo Museu Nacional de Arte Antiga, diz que “o Estado Novo tem uma participação pouco relevante” no historial de recuperações ou alterações no Mosteiro dos Jerónimos, ao contrário do que se verificou no século XIX, em que ”o espírito revivalista que tem paralelismo em Viollet-Le-Duc e na Notre-Dame” fez com que o Mosteiro fosse “profundamente afectado”.

Dentro das intervenções feitas no Mosteiro na altura do Estado Novo, Dalila Rodrigues destaca a mudança de sítio dos túmulos de Vasco da Gama e Luís Vaz de Camões: “Os dois túmulos são uma cenografia, digamos assim, uma tentativa de transformar em monumento pátrio [o mosteiro] e de fazer este paralelismo entre a matriz da portugalidade e da língua portuguesa. Os dois túmulos estavam no braço do transepto, antes, e foram em 1940 levados para ali, ficando mais perto da Praça do Império.”

O mesmo post destaca ainda o Convento do Carmo: “Apenas não recuperaram dos monumentos mais importantes, o Convento do Carmo, que ficou como memória e retrato do estado geral dos monumentos no final da primeira república”. Haverá verdade nesta frase? Por muito que seja correcto que, de facto, o Convento não foi recuperado nessa altura, não foi pelo motivo destacado.

No site oficial do Museu Arqueológico do Carmo lê-se que a obra data originalmente de 1389, ano em que começou a ser construído, e que em 1755 o terramoto e o “subsequente incêndio destruiu quase totalmente o seu recheio”. Um ano depois, em 1756, “iniciou-se a sua reconstrução, já em estilo neogótico”, mas esta viria a ser “interrompida definitivamente em 1834, devido à extinção das Ordens Religiosas em Portugal”.

Foi já em “meados do século XIX”, altura em que imperava “o gosto romântico pelas ruínas e pelos antigos monumentos medievais”, que se decidiu “não continuar a reconstrução do edifício, deixando o corpo das naves da igreja a céu aberto” e fazendo das ruínas do Carmo “um memorial do terramoto de 1755”. Em 1864 toda a estrutura é transformada no Museu Arqueológico do Carmo e desde então manteve-se assim.

Mas e os castelos de que a publicação também fala? E o Panteão Nacional que também é mencionado? É aqui que chegamos à parte verdadeira deste post. “Para quem não saiba ainda em pior estado estavam a generalidade dos castelos medievais [quando Salazar assumiu o poder], nalguns apenas restavam os alicerces, na generalidade os castelos, como o de S. Jorge, de Guimarães, de Santa Maria da Feira”, diz o autor do post em análise. Realmente, e de acordo com Luís Miguel Correia (arquiteto, investigador e professor do Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra) os castelos nacionais foram alvo de remodelações extensas a mando do governo de Salazar.

Ao Observador, o autor da dissertação de doutoramento “Monumentos, Território e Identidade no Estado Novo da Definição de um Projeto à Memorização de um Legado” (2015), diz: “A recuperação dos castelos, isso sim, pode-se dizer, foi obra do Estado Novo. Até meados dos anos 30, poucas intervenções tinham tido, só um ou outro [monumento tinham sido alvo de intervenções]. A imagem que nós hoje temos dos castelos em Portugal advém toda da época do Estado Novo”.

Luís Miguel Correia explica que esta atenção e trabalho dedicado aos castelos de todo o país justifica-se porque eles “eram a visão daquilo que o Estado Novo queria: uma ligação entre as conquistas do passado com as conquistas do então presente”, um símbolo de nacionalismo e orgulho histórico. O investigador refere que, “na segunda década do Estado Novo, chegou a haver mais de 90 castelos em obras” e o de São Jorge, por exemplo, foi um dos mais destacados — “era o castelo da capital”. Quando começaram as suas obras de recuperação, em 1938, estava num estado bastante degradado e “escondido por um quartel”.

Finalmente, sobre estas intervenções nos castelos portugueses, o académico explica: “O Estado Novo não inventou nada, herdou este processo. Nem os arquitetos foram novos, eles já estavam a trabalhar antes. O que o Estado Novo fez foi traçar um plano de recuperação e construir os quadros financeiros e jurídicos desta intervenção. Nesse aspeto, a sua atuação foi impressionante. A escala da obra, então, é uma coisa inimaginável. Pode-se dizer que os castelos foram a obra patrimonial mais visível e autoral do Estado Novo”. 

Para terminar, resta mencionar o Panteão Nacional, que também é mencionado no post em análise e é um caso em que há verdade na forma como ele é abordado. De facto, foi durante o Estado Novo que as famosas “obras de Santa Engrácia” foram concluídas. Mais concretamente, foi “a 7 de dezembro de 1966, por ocasião do quadragésimo aniversário do Estado Novo, Santa Engrácia – Panteão Nacional foi inaugurado”, como se lê no site oficial deste monumento. A mesma fonte esclarece que “a decisão política [de terminar o Panteão] procurava servir-se da imagem do monumento que, teimosamente, permanecia por terminar, ao longo de várias gerações, para provar a capacidade do regime na resolução eficaz de desafios”.

Conclusão

O destaque principal desta publicação gira em torno da ideia de que terá sido António Oliveira Salazar, durante o período do Estado Novo, o responsável por reconstruir o Mosteiro dos Jerónimos, que, como mostra a fotografia da publicação, estava em “estado de ruína”. Esta afirmação é falsa porque quando a recuperação do Mosteiro foi dada como concluída o Estado Novo ainda não existia.

Em 1878, deu-se uma derrocada grave, no seguimento de uma intervenção que estava a ser realizada no monumento em Belém, e dez pessoas morreram. Prontamente foram definidos mecanismos para apurar consequências e as obras de recuperação, planeadas por Parente da Silva, ficaram prontas ainda na primeira década do século XX. Aliás, o post diz que o suposto restauro orquestrado por Salazar terminou “no final da década de 50” mas a grande Exposição do Mundo Português aconteceu entre 23 de junho e dois de dezembro de 1940 e, nessa altura, o mosteiro já estava visivelmente composto — várias fotografias da época mostram-no aqui, aqui e aqui.

Ainda assim, algumas referências feitas na mesma publicação que falam sobre o papel do Estado Novo na recuperação dos castelos nacionais estão corretas, assim como as que falam da conclusão das “obras de Santa Engrácia” do Panteão Nacional.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

ERRADO

No sistema de classificação do Facebook, este conteúdo é:

FALSO: As principais alegações do conteúdo são factualmente imprecisas. Geralmente, esta opção corresponde às classificações “falso” ou “maioritariamente falso” nos sites de verificadores de factos.

Nota: este conteúdo foi selecionado pelo Observador no âmbito de uma parceria de fact checking com o Facebook.

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