Os EUA acordaram esta quarta-feira ainda sem saberem quem será o Presidente nos próximos quatro anos. Nalguns estados, como a Pensilvânia e o Michigan, a margem entre Donald Trump e Joe Biden foi-se estreitando nas últimas horas, a favor do candidato democrata, à medida que os votos foram sendo contados. Trump não perdeu tempo e foi para o Twitter insinuar que essa aproximação de resultados é sinónimo de fraude, com o aparecimento de urnas de voto “surpresa”.

“Ontem [terça-feira] à noite eu estava à frente, frequentemente de forma sólida, em muitos estados-chave, quase todos eles dirigidos e controlados por democratas”, defendeu o ainda Presidente dos EUA.

Mas, continua, “depois, um a um, começaram a desaparecer como que por magia, à medida que urnas de voto surpresa eram contadas. É MUITO ESTRANHO, e as sondagens enganaram-se completamente e de forma histórica!”, concluía.

Tal como noutras mensagens anteriores, esta também foi classificada pelo Twitter como contendo informações “contestáveis” e suscetíveis de serem “incorretas” sobre “como participar numa eleição ou num outro processo cívico”.

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Pouco depois, o ainda Presidente voltou ao tema: “Porque é que de cada vez que contam os votos por correspondência são tão devastadores na sua percentagem e poder de destruição?”, questionou.

Mas vamos por partes. Trump vencia, nalguns casos de “forma sólida”, em vários “estados-chave”, “quase todos eles dirigidos e controlados por democratas”? Olhemos para esses “estados-chave”. Embora Trump não os tenha enunciado, estaria a falar de swing states, aqueles estados que tanto tendem para democratas como para republicanos, e que costumam, por isso, ser decisivos.

Ao início da noite nos EUA (já madrugada em Portugal continental), havia essencialmente cinco estados que poderiam decidir a eleição e para os quais não havia ainda vencedor declarado nessa altura. Essa lista incluía a Pensilvânia, o Michigan, a Geórgia, a Carolina do Norte e o Wisconsin. E sim, à exceção da Georgia, todos eles são governados por democratas.

Mas Trump liderava nestes estados decisivos com uma margem “frequentemente sólida”, como disse o Presidente? Isso é verdade, por exemplo, na Pensilvânia. Pelas 4h00 (hora em Portugal), a contagem oficial apontava, com 32% dos votos contabilizados, para uma diferença de cerca de dez pontos percentuais — Trump concentrava 54,2% dos votos, enquanto Biden se ficava pelos 44,4%. Essa diferença aumentou cerca de uma hora depois. Nessa altura, Trump estava 14,5 pontos à frente. Já pelas 14h00, pouco antes de o republicano ter publicado o tweet, a margem tinha diminuído para 11,4 pontos, numa altura em que já tinham sido contabilizados 75% dos votos. E, pelas 20h de quarta-feira, com 80% dos votos contados, a diferença ia em 7,7 pontos. Ou seja, confirma-se que neste estado, a margem entre os dois se foi estreitando.

O mesmo é também verdade para o Michigan, por exemplo. Por volta das 4h00, com 37% dos votos contados, Trump vencia com 54,7% e Biden ficava-se pelos 43,5%. Pelas 14h de quarta-feira, já estavam taco-a-taco. Com quase 90% dos votos considerados, as projeções chegavam a dar a vitória a Biden, mas por uma margem extremamente curta (apenas 0,1 ponto percentual). Pelas 20h de quarta-feira, e com mais de 90% dos votos contados, Biden liderava por 0,7 pontos. Uma reviravolta, portanto.

Trump liga este estreitamento da margem entre os dois candidatos a fraude e diz que “por magia” foi perdendo a favor de Biden, à medida que urnas de voto “surpresa” iam sendo contadas. Para analisar esta frase, é preciso algum contexto. É que Donald Trump tem sistematicamente defendido que o voto por correspondência e o voto antecipado levam à fraude e que o vencedor devia ser conhecido logo na noite eleitoral — pelo que seria preferível deixar de contar votos após essa data.

“As afirmações de Trump são infundadas”. Twitter faz fact-check a tweets do presidente dos EUA

Estas acusações surgem depois de 100 milhões de eleitores terem votado por antecipação ou por correio nos EUA nestas presidenciais, um recorde absoluto e o mais do dobro face a 2016. Mas não existe qualquer relato de fraude eleitoral, nem as declarações de Trump nesse sentido foram comprovadas com qualquer tipo de elemento factual. De resto, a contagem dos votos está a acontecer como era esperado — devido ao tal recorde, é normal que demore mais tempo a que os votos sejam contados, a que os resultados oficiais sejam conhecidos e a que seja declarado um vencedor.

É que a forma como os votos são contados varia muito de estado para estado. Nalguns, apenas são contados os votos que chegam até ao fim do dia das eleições (como no Wisconsin), noutros contabilizam-se mesmo os que chegam vários dias depois. Na Pensilvânia, por exemplo, aceitam-se todos os votos que sejam colocados no correio no próprio dia das eleições, desde que tenham o selo respetivo, o que quer dizer que podem chegar às autoridades apenas na sexta-feira — por isso é que este estado diz que apenas terá uma contagem final a partir desse dia. Aliás, a Pensilvânia expandiu a votação por correspondência a todos os eleitores este ano.

Existe depois um outro ponto. Segundo este texto do projeto jornalístico FiveThirtyEight, escrito dias antes das eleições, a 29 de outubro, na Pensilvânia os votos por correspondência só podem começar a ser contados às 7h00 do dia das eleições — e nunca antes, mesmo que cheguem mais cedo. Daí que os resultados demorem mais tempo. Aliás, vários responsáveis políticos, como a própria secretária de Estado da Commonwealth, Kathy Boockvar, já previam que os boletins pudessem demorar dias a ser contados e que só na sexta-feira se pudesse terminar a contagem — sendo que, entre terça-feira e sexta-feira, poderia haver uma grande oscilação de resultados.

A CNN construiu um mapa onde é possível ver quando é que os votos antecipados, como os de correspondência, começam a ser contabilizados. Se no caso do Wisconsin, da Pensilvânia ou da Geórgia só podem começar a ser processados na manhã de dia 3, noutros estados a tolerância é maior: por exemplo, o Illinois permite que os votos possam chegar ao destino até 17 de novembro e a Carolina do Norte até dia 12. Quanto à contagem, algumas cidades do Michigan começam a poder processar os boletins no dia 2, véspera das eleições. O The New York Times também tem uma tabela que permite perceber variações na forma como os diferentes votos são contados — há estados que, tendencialmente, contam primeiro os votos presenciais (como Rhode Island), noutros não há essa diferenciação.

Há outro fator que pode levar a essa oscilação à medida que os votos são contados — e que explica porque é que Biden tem estado a recuperar (e em alguns casos a inverter) a vantagem inicial de Trump. É que, segundo o Pew Research Center, os eleitores democratas tendem a votar mais por correspondência do que os republicanos. Nas contas deste think tank, os apoiantes de Trump têm duas vezes mais probabilidade do que os apoiantes de Biden de votar presencialmente.  Portanto, não só já se esperava que a contagem demorasse muito tempo, como já se sabia que o voto por correspondência tende a favorecer Biden por larga margem.

Conclusão

Donald Trump tem conotado o voto por correspondência e antecipado, onde os eleitores republicanos têm menor presença, com fraude. E no dia das eleições voltou a insistir nesse ponto. O Presidente dos EUA disse, e com razão, que foi perdendo margem em relação ao seu adversário em “estados-chave”, maioritariamente governados por democratas, mas insinuou que essa diferença se foi estreitando por “magia”, à medida que foram sendo contados os votos de urnas “surpresa”. Ou seja, insinuou que haveria uma fraude na votação e na contagem dos votos. Mas não há nenhum relato que aponte para que isso seja verdade. Além disso, há dados que mostram que os eleitores democratas tendem a votar mais do que os republicanos antecipadamente ou por correio — e essas votações podem demorar mais tempo a ser contadas devido ao recorde de participação através desses métodos. Daí que, com o passar do tempo, a contagem favoreça mais Joe Biden. Não se trata, portanto, de “magia” nem de “urnas surpresa”. Muito pelo contrário, são tendências que já eram esperadas.

Segundo a classificação do Observador, este conteúdo é:

Errado

NOTA: este artigo foi produzido no âmbito de uma parceria de fact-checking entre o Observador e a TVI.

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