Apesar de o debate televisivo dos partidos sem representação parlamentar, que decorreu na terça-feira em direto na RTP, ter ficado essencialmente marcado por mostras de ceticismo relativamente à pandemia por parte dos candidatos da ADN, do Ergue-te e do PCTP/MRPP, houve algum espaço para discutir o modelo de gestão dos serviços de saúde em Portugal, a economia do país e o modo como o SNS respondeu à pandemia da Covid-19 ao longo dos últimos anos. Durante o debate, a porta-voz do Movimento Alternativa Socialista (MAS) e cabeça de lista do partido por Lisboa, Renata Cambra, defendeu uma das grandes bandeiras do partido — o combate firme contra a corrupção — e disse que, em Portugal, 880 milhões de euros “fogem para offshores” anualmente, dinheiro que devia ser investido no SNS.
A alegação foi feita pela candidata durante uma interação com o moderador do debate, Carlos Daniel, sobre o nível de investimento do Estado no Serviço Nacional de Saúde (aqui, aos 47 minutos):
Renata Cambra: Em relação aos países da União Europeia, somos dos países que menos têm investido ciclicamente nos serviços públicos, e isso inclui a própria saúde. Nós já tínhamos um SNS a precisar de investimento, que já estava à beira da rutura, e a pandemia veio deixar isso ainda mais a nu.
Moderador: Mas, como sabe, [o SNS] já custa mais ou menos 12 mil milhões por ano.
Renata Cambra: Claro, mas vão 880 milhões que fogem para offshores. E isso é uma das diferenças que nós temos com o resto da esquerda. As nossas propostas não são só propostas bonitas no papel que, depois, quando o PS chora, nós abdicamos dessas propostas e dessas linhas vermelhas, e aceitamos só acriticamente o que o PS faz. Nós dizemos que é preciso mais investimento na saúde, mas também dizemos onde é que esse dinheiro está. Esse dinheiro está nos roubos que são feitos pelos grandes empresários e pelas administrações de bancos.
Mais à frente, Renata Cambra reiterou que o dinheiro destinado ao Serviço Nacional de Saúde deve ser recuperado das offshores, onde está atualmente. Mas estará realmente Portugal a perder 880 milhões de euros por ano para offshores, como disse candidata do MAS?
É fácil seguir o rasto ao número apontado por Renata Cambra. No mês passado, o presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Inspeção Tributária e Aduaneira, Nuno Barroso, mencionou-o numa conferência sobre o combate à corrupção, nas Caldas da Rainha: “Portugal teve uma perda estimada em 880 milhões de euros, dos quais 412 milhões de euros por abuso fiscal transnacional por empresas multinacionais e 467 milhões de euros perdidos por evasão fiscal offshore.”
Na ocasião, Nuno Barroso sublinhou que o valor em causa permitiria “vacinar a população portuguesa cinco vezes“.
Podemos encontrar aqueles números mais pormenorizadamente no relatório publicado em novembro de 2021 pela Tax Justice Network, grupo de investigadores e ativistas que lutam pela transparência fiscal. Nesse relatório, é atribuída a Portugal uma perda fiscal anual de 1.006,2 milhões de dólares (ou seja, 886,7 milhões de euros), o que representa 0,5% do PIB nacional. Este valor divide-se em 471,9 milhões de dólares (415,8 milhões de euros) associados ao abuso fiscal corporativo e 534,4 milhões de dólares (470,9 milhões de euros) associados à fortuna colocada em offshores — o nome que habitualmente se dá a empresas ou contas sediadas em paraísos fiscais, sujeitas a garantias de absoluto sigilo bancário e longe do alcance da lei portuguesa. São valores aproximadamente semelhantes aos apresentados por Nuno Barroso.
Com efeito, estima-se que Portugal deixe por arrecadar cerca de 880 milhões de euros em impostos todos os anos. Contudo, ao contrário do que afirmou Renata Cambra, isto não significa que todos os anos 880 milhões de euros sejam enviados para offshores. Esta prática é responsável pela perda de cerca de 470 milhões de euros em impostos todos os anos, portanto, pouco mais de metade daquele valor total.
Os restantes cerca de 415 milhões de euros são perdidos devido ao “abuso fiscal” de empresas multinacionais, que incluem práticas como o planeamento fiscal agressivo, a elisão fiscal, entre outras manobras que, embora legais numa interpretação rigorosa da lei, permitem às empresas poupar milhões de euros em impostos — por exemplo, movendo os seus lucros para países da União Europeia com regimes fiscais mais apelativos, levando a que lucros gerados em Portugal não sejam tributados em Portugal.
Tomando por base os valores da Tax Justice Network, e dada a proximidade dos valores indicados por Renata Cambra, é possível assumir que a candidata do MAS tenha partido dos dados que constam desse documento para fazer aquela afirmação. Contudo, importa ressalvar que, recentemente, o Observador verificou uma afirmação de Rui Tavares, candidato do Livre, que afirmou que a evasão e fuga fiscais retiravam anualmente a Portugal cerca de 13 mil milhões de euros — um Fact Check com resultado “inconclusivo” dada a multiplicidade de fontes de informações sobre o tema e a disparidade de valores indicados nesses relatórios.
Conclusão
Embora Renata Cambra tenha mencionado um valor sério e validado relativamente ao dinheiro que Portugal perde anualmente em impostos não arrecadados (cerca de 880 milhões de euros), foi indicou um valor demasiado elevado quando afirmou que todo esse dinheiro “foge para offshores“, uma vez que se estima que apenas pouco mais de metade desse valor esteja associado às transferências para paraísos fiscais — estando a outra parte ligada a práticas de abuso fiscal a que as empresas recorrem para pagar menos impostos. São, efetivamente, práticas distintas que lesam os Estados e que se combatem com mecanismos diferentes.
Assim, de acordo com o sistema de classificação do Observador, este conteúdo é:
ESTICADO