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O estranho fenómeno André Rieu |
Na semana passada escrevi aqui sobre André Rieu. No que me fui meter, é verdade… Mas está na hora de abordar este figurão da música clássica (?), até porque temo que, para muitos, ele ainda seja um anjo da guarda da cultura. |
Por vezes acontece-me, quando ando com a Orquestra Sem Fronteiras por aldeias no interior do nosso país, as pessoas tecerem elogios ou considerações como “foi tão bonito como os concertos do André Rieu”, ou “fazia lembrar o maestro Rieu”. Já tive o padre da paróquia de Pínzio, na Guarda, a apresentar-me como “o André Rieu português” aos seus paroquianos, sentados na igreja local e à espera que o nosso concerto começasse, o que desencadeou grande risota entre os jovens músicos da orquestra. |
Mas quem é afinal André Rieu, e porque é que me interessa falar dele? Para começar, julgo que o músico dispensa apresentações. No entanto, se quiserem refrescar a memória, por favor procurem-no na internet. Não estou na inclinação de contribuir com uma visualização a mais para essa grande máquina de entretenimento, e devo dizer que escrever este texto não é fácil para mim. Sei que entre os meus leitores haverá poucos ou nenhuns fãs dele, mas não quero parecer snob do gosto de muita gente. É que já tive uma gerontóloga a dizer-me que, no lar onde trabalha, existe uma sala com uma televisão onde só mostram concertos do André Rieu, os mais populares entre os utentes. |
Este é o mesmo André Rieu que esgotou a Altice Arena já por 19 vezes na sua carreira, o que deve ser feito único em Portugal, contando todos os géneros de música e artistas que por lá passaram. Em 2019, a procura por bilhetes foi tão avassaladora que Rieu e a sua (é mesmo assim, com o pronome possessivo “his”) Johann Strauss Orchestra tiveram de encontrar datas extra, nas quais presentearam o público em deleite com uma versão d’A Loja do Mestre André, para gáudio do gosto português. |
Estou, portanto, a falar de um artista que é apreciado por muitos milhares de portugueses. E eu, que nunca esgotei a Altice Arena em nome próprio, posso parecer nada mais do que um ressabiado a falar com dor de cotovelo de um artista gigante que, de tanto sucesso obtido, pôde comprar o seu próprio Stradivari, uma jóia de violino, feito em 1667, que usa para os concertos. |
Bom, o que dizer do André Rieu, e já agora, de muitos outros músicos que fazem carreiras como a dele? A minha opinião, e friso que isto é uma opinião pessoal e subjectiva, que pode ser discutida, mas que tenho o direito a dizer, é o que se lê nas linhas adiante (respiro fundo). |
Aquilo que o André Rieu faz não é um serviço à música nem ao seu público. É sim um exercício do próprio a servir-se da música e dos públicos, na qual, por arrasto e por osmose, muitos milhares de pessoas no mundo inteiro acabam por descobrir algumas das melodias mais famosas do repertório clássico. Sim, haverá sempre quem se sinta movido às lágrimas com a música tocada por Rieu, mas essa música está invariavelmente fora do seu contexto, apresentada num formato onde a teatralidade, o sentido de comédia e de romance, todos bem previsíveis, pautam o tom geral. |
Ainda assim, há muita gente, mesmo profissionais da música clássica, que consideram que André Rieu faz um excelente trabalho de divulgação, uma vez que é visto por milhões no mundo inteiro, muitos dos quais de outra forma provavelmente não comprariam um bilhete para ouvir música clássica. Nunca esquecerei a forma como me ia caindo o queixo ao chão quando vi Sérgio Delgado, compositor e autor de programas na Antena 2, tecer laudas a André Rieu numa peça jornalística sobre o sucesso deste. |
Nesta premissa do efeito benéfico da acção de Rieu através do fenómeno de massas há alguns erros básicos. O primeiro é o de assumir que alguém, só porque está em contacto com certo produto, o vai absorver, tipo osmose, e tornar-se consumidor fiel. O segundo é que a música clássica, por muito que possa entreter, não nasceu para servir apenas a causa do entretenimento fútil. |
E nos espectáculos de André Rieu trata-se a música clássica como o mais frívolo entretenimento, razão pela qual a orquestra toca vestida numa alusão bizarra ao século XVIII, com estantes que são liras douradas, tudo a lembrar o décor de uma comédia barroca de segunda categoria, exagerada nas cores e nos pechisbeques. Depois, essa mesma orquestra, que se chama a sua Orquestra Johann Strauss, tem o nome daquele que é o rei das valsas e que viveu no século XIX. Estou a chamar a atenção apenas para um pequeno detalhe daquilo a que entendo como a total descontextualização dos conteúdos. |
Ou seja, uma orquestra vestida de século XVIII, com o nome de um compositor do século XIX, a tocar músicas natalícias, mesmo que sejam de Mozart, Händel ou Tchaikovsky, oferece um espectáculo grotesco em que cada obra musical está a ser filtrada e explorada ao serviço do entretenimento, e não a ser apresentada enquanto obra de arte, completa em si mesma e inserida num contexto que garanta as condições mínimas para a sua fruição. Tudo é em modo best of, pot-pourri, simplficado e adaptado à expressão da musicalidade de Rieu e dos propósitos que serve. Os cameramen ocupam-se tanto em filmar os artistas em palco como as reacções do público, dando a impressão de que toda a gente se está ora a divertir à fartazana, ora a ser levado às lágrimas pela beleza do espectáculo, contribuindo para uma sensação de fomo geral em quem vê. Tudo está estudado ao milímetro para se traduzir num grande espectáculo de entretenimento, e a música clássica não é mais do que uma ferramenta nessa engrenagem. |
Trocado por miúdos, dizer que o André Rieu faz um bom trabalho porque ao menos põe as pessoas a ouvir música clássica, é como dizer que é benéfico comer hambúrgueres em restaurantes de fast food, porque assim sempre se consomem umas folhas de alface e umas rodelas de tomate. O facto de haver ali uma folha de alface entre o hambúrguer e a fatia de queijo não é suficiente para deixar de ser junk food, e não faz dessa uma refeição saudável. |
O trabalho de desenvolvimento e activação de públicos para a cultura é uma missão delicada e de enorme responsabilidade, na medida em que se quer construir uma comunidade com ferramentas reais para se relacionar com esta forma de arte, e não simplesmente colocar trinta mil pessoas num auditório a bater palmas ao compasso da Marcha Radetzky. Por muito que isso possa parecer traduzir-se em interacção, envolvimento e fruição, na verdade não o é assim tanto. E pior, um concerto assim pode deitar por terra o trabalho silencioso e aturado de artistas e mediadores culturais, cujo esforço não dá frutos tão imediatos ou espectaculares. |
Por isso, tudo somado, considero que os efeitos da actividade de músicos como André Rieu são nocivos para a saúde cultural de quem os consome, da mesma forma que a fast food o é, independentemente de quão bem sabe a quem a come. Se depois as pessoas têm prazer ou preferem só ouvir música clássica neste contexto ou comer comida de plástico, isso são questões que têm que ver com oportunidades, educação, contexto social e tudo mais. |
E é por isso, repito, que é tão fundamental investir incessantemente e sem parar, na melhor educação universal, uma educação para a cidadania, para a fruição artística e para a nossa melhoria enquanto seres humanos que vivem em comunidade. Até lá, sejamos livres de ouvir e de escolher, pois claro. Esta é a minha escolha. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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