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Música clássica a redes sociais |
Ah, as redes sociais… Vistas por tantos como um sinal avançado da decrepitude da sociedade contemporânea, o derradeiro passo para a nossa perdição enquanto comunidade. E no entanto, cá está o TikTok a ajudar a aumentar as vendas de livros. Um contrasenso, ou vendemos a alma ao diabo? |
Às vezes, quando conversamos com pessoas que nunca tiveram redes sociais (falo enquanto millennial que sou), chega a ser difícil explicar o que são e o que podem as redes sociais. Para muitos, a ideia prevalente ainda é a do Instagram de 2012: serve para publicar fotografias dos cupcakes acabados de tirar do forno ou selfies às próprias pernas na praia com o mar ao fundo. |
Sim, as redes sociais continuam a ser o reino da estupidez, da vaidade e da futilidade mas 1) vieram para ficar, por isso melhor seria aceitá-las e integrá-las na vida e 2) servem para isso e muito mais. |
Pessoalmente, já tive vários destes embates frustrantes ao tentar explicar que não vem apenas mal ao mundo. Este não é um texto sobre os malefícios das redes sociais, que sei serem bem reais. O efeito nefasto do Facebook na manipulação da percepção pública pelo mundo inteiro, como já se viu em processos como o Brexit, as eleições de 2016 nos EUA ou outras, são bem reais. |
Este é um texto, sim, sobre o bem que se pode fazer com estas ferramentas que estão ao nosso dispor, para o bem ou para o mal, e a importância que podem ter na defesa de algumas causas culturais. |
Em Portugal, já vai sendo conhecido o fenómeno dos booktokers. Pelo menos das editoras de livros, que se vão agarrando a estes jovens com canais no TikTok que recomendam livros. A Fnac já tem um separador dedicado aos “Livros dos teus bloggers e youtubers preferidos”. Estes “bloggers ou yotutubers” na verdade estão activos sobretudo no TikTok e Instagram e podem ser considerados influencers, na medida em que contribuem para comportamentos de massa, nomeadamente na compra de livros. |
Antes das redes sociais, dizia-se opinion leader daquele cujas ideias, recomendações e opiniões fazem eco em quem as segue. Hoje, trata-se de influência. O princípio é o mesmo, e está a ser usado com sucesso por jovens como Sérgio Alves, Íris Bicho, Rita da Nova, entre outros (perdoem-me as omissões — não tenho TikTok…), que já fazem parcerias comerciais com editoras, takeovers às suas redes sociais, ou outras formas de monetizar o poder das suas sugestões. |
No nosso mercado livreiro, este fenómeno está mesmo a contribuir para o aumento de vendas e a ajudar algumas editoras, sobretudo aquelas cujo catálogo possa ser mais apelativo aos adolescentes e jovens adultos, que dão voz às suas preocupações e interesses nestas redes e assim se condicionam mutuamente. Não se trata de uma substituição dos críticos literários ou das clássicas recomendações de edições novas que podemos ler nos jornais, mas sim um apelo orientado aos interesses específicos de quem segue estas pessoas. |
A maior parte dos analistas concorda que a qualidade literária não é fator preponderante nestas sugestões, embora também haja recomendações por parte destes influencers de livros de Saramago, Harper Lee ou Mark Twain. No entanto, num país como o nosso, onde os índices de leitura dificilmente podiam ser mais desoladores, não deixa de ser notável o efeito salvador que estes jovens vieram ter. |
Toda a gente parece concordar que o principal é pôr as pessoas a ler, e sobretudo os jovens, para que ganhem desde cedo esse hábito. O fundamental é isso mesmo: plantar a semente da leitura. Depois, como qualquer semente, esta irá crescer (se for sendo regada, é claro) e provavelmente dará flor mais adiante. Não importa se determinado jovem lê sobre vampiros românticos ou o apocalipse zombie quando podia estar a ler Cem Anos de Solidão ou Amor de Perdição. Não se trata de fazer juízos de valor, mas sim de criar hábitos de contacto e fruição. |
É certo que as leituras destes jovens não são aquelas que o Plano Nacional da Leitura recomenda, mas sejamos honestos: ninguém começou a ler pelos clássicos. |
Pelo meu lado, enquanto leitor regular e de longa data, só posso agradecer a estes jovens o esforço e resultados que estão a ter. E, é claro, pergunto-me onde estão os influencers da música clássica. A verdade é que ainda não estão em lado nenhum. Trata-se de um sector ainda em aberto e por explorar, que provavelmente mais cedo ou mais tarde irá despontar. |
Já há exemplos de alguns fenómenos nas redes sociais, como a dupla TwoSet Violin (na imagem), cujos conteúdos humorísticos retratam as dores e as frustrações da vida dos jovens estudantes de música. No Instagram, parecem-me ser os recordistas em número de seguidores neste tipo de conteúdo, com mais de oitocentos mil. Poderia também destacar o violinista Ray Chen, cujo virtuosismo costuma estar lado a lado com vislumbres da vida do dia-a-dia e do quotidiano de um músico da sua craveira, ou Cody Fry, trompista norte-americano e embaixador da pedagogia musical, com mais de cem mil seguidores. |
Qualquer um destes faz conteúdos acessíveis e num tom desempoeirado. No entanto, ainda não são fenómenos muito conhecidos fora do meio da música clássica. Diria que a grande maioria dos seus seguidores faz parte da comunidade internacional de músicos ou estudantes de música. |
Já André Rieu (que ultrapassa os novecentos mil seguidores), pelo contrário, é certamente conhecido do mundo inteiro, mas o seu é um público tendencialmente envelhecido e que segue o mesmo formato de concertos ao vivo, cuja fórmula kitsch (para dizer o mínimo) é bem diferente dos TwoSet e Ray Chen desta vida e se mantém inalterada desde os anos 1990. |
Poderia referir alguns músicos de topo com números sólidos de seguidores, como Lang Lang ou Yuja Wang, mas os seus conteúdos são mais em tom de autopromoção ou de update sobre o que estão a fazer e por onde. Não há propriamente uma tentativa de conquistar novos públicos através destes canais. |
Há, depois, outros exemplos que beneficiam de algum hibridismo, como Lorenzo Viotti ou Cyrill Ibrahim. O primeiro, é o ex-maestro titular da Orquestra Gulbenkian. O segundo é pianista baseado em Londres. Ambos conjugam uma carreira de sucesso na música clássica com cada uma vez mais regular actividade no mundo da moda e da alta roda. É comum ver publicações de Viotti em parceria com marcas de luxo como Bulgari ou Valentino. Já Ibrahim assinala a sua presença no mesmo meio, alternando o palco de concerto com publicações remuneradas com a leiloeira Christie’s, as camisas Eton ou as malas Aspinal of London, tudo referências de luxo para o mercado britânico. No entanto, e por muito bem-dispostos que sejam, o mais provável é que se estão a conquistar novos públicos, seja através do seu brilhantismo em palco ou através da sua aparência (nada contra). |
Não são propriamente influencers e vê-se que tiram mais das redes sociais do que acrescentam. Se as suas contas desaparecessem, é provável que outros ocupassem o seu lugar. Assim, sou levado a constatar que o influencing para a música clássica é um campo que, tanto em Portugal como no resto do mundo, ainda tem muito para dar. E, quando começar a fazê-lo, o céu será o limite. |
Imaginamos o que seria a Fundação Calouste Gulbenkian ter o seu canal TikTok, onde difunde conteúdos sobre os seus jardins, os seus Laliques e a actividade da temporada de música? A Casa da Música a explodir entre o público adolescente? O Teatro Nacional de São Carlos a dar cartas no mundo digital (não me façam rir)? |
A verdade é que as instituições costumam ter muito maiores números de seguidores do que os artistas individuais. A Metropolitan Opera de Nova Iorque tem mais de meio milhão. A Filarmónica de Berlim tem quase meio milhão. Por cá, a Fundação Calouste Gulbenkian tem cento e onze mil, o que, à escala portuguesa, é gigante. Neste sentido, se as instituições sentissem como sua responsabilidade explorar estes canais da mesma forma que promovem programas de desenvolvimento de públicos, o retorno poderia ser gigante e com baixíssimo risco. Normalmente, as instituições que desprezam o potencial das redes sociais simplesmente acreditam que não é aí que está o seu público. Pois eu digo que ainda não é aí, mas que se o quiserem, poderá sê-lo em menos de nada. |
Já agora, se tem curiosidade em saber quem é a personalidade ou instituição portuguesa de música clássica com mais seguidores, a resposta é Maria João Pires, com 122 mil fãs no Instagram, mas cujo canal é mais um exemplo de exercício de agenda e memória auto-referencial, com pouca ou nenhuma interactividade, embora recentemente tenha publicado um anúncio em que procurava gestor/a de redes… Será que virá daí uma surpresa? |
Como as coisas estão, pode parecer um futuro distante, mas tenho a certeza de que chegará o dia. Há coisa de quinze anos, a pianista francesa Hélène Grimaud causava o torcer de muitos narizes no meio da música clássica por se deixar fotografar para revistas de lifestyle. Hoje em dia, a tacanhez dessas formas de estar parece estar definitivamente ultrapassada e cada vez mais se privilegiam os músicos cujo perfil é humano e com os pés na terra. Se possível até, que nos façam sonhar um pouco ou que acrescentem algo ao nosso dia. |
No fundo, está tudo pronto para a música clássica ganhar vida a sério nas redes sociais. E, quando acontecer, garanto que estarei na linha da frente para ver. Mesmo que isso implique abrir uma conta no TikTok. |
Martim Sousa Tavares desenvolve uma atividade múltipla em prol da música clássica e da cultura. Dirige orquestras, é autor de programas na televisão, na rádio e em podcast, escreve música e sobre a música e realiza conferências [ver o perfil completo]. |
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