As mães e a sua tendência para se sentirem culpadas de tudo e mais alguma coisa |
A minha irmã mandou-me, há dias, uma mensagem a dizer que se sentia péssima mãe. Não vou entrar em detalhes, mas queixava-se de ser demasiado dura com os miúdos, às vezes até se sentia má, e que, apesar de os adorar e de saber que não estava a fazer a coisa certa, não conseguia agir de forma diferente. Tudo porque tinha visto um estudo da University College London (UCL), publicado no jornal científico Child Abuse & Neglect, que concluía que gritar com uma criança pode conduzir a um maior risco de automutilação, consumo de drogas, e propensão para um futuro de criminalidade. |
Tentei aligeirar a coisa, fiz uma piada qualquer sobre “se isto fosse verdade, eu era psicopata ou já me tinha matado”. Mas fiquei a pensar naquilo, e em como vivemos o tempo da maternidade com culpa. No tempo dos nossos avós, alguém se sentia culpado se não brincava com os filhos, se dava umas boas nalgadas, ou mesmo se os mandava trabalhar aos 10 anos de idade? No tempo em que eu era criança, alguma vez a minha mãe se culpabilizou de berrar comigo porque não conseguia fazer contas básicas, ou por me deixar sozinha no quarto enquanto ela trabalhava em traduções pela noite dentro, depois de chegar a casa vinda do emprego? Pois. Creio que não. |
No tempo dos nossos avós e dos nossos pais, a coisa era mais prosaica: era preciso sobreviver. Havia muitos filhos para sustentar, havia muita pobreza (que a primeira e segunda guerras mundiais ajudaram a agravar), e mesmo quando as famílias eram de classe média ou alta, as crianças cresciam sem grande atenção por parte dos adultos, por vezes brincando todos os dias na rua (que saudades!) ou sendo educadas mais por empregadas do que pelos pais. |
Depois, vieram os psicólogos. E — atenção! — defendo com fervor que tenham vindo, que nos tenham mostrado – e continuem a mostrar – que as crianças não são pouco mais que bonecos que podem ser tratadas ao pontapé, e que nada lhes fica gravado no disco rígido. Foi graças a todos os estudos feitos que pudemos evoluir para um ponto em que já não se sovam crianças de cinto (pelo menos de forma tão aberta que seja conversa de café – porque obviamente que ainda haverá casas onde isso acontece), que se percebeu que os insultos deixam mossa, bem como outras barbáries similares. O problema é que, de tanta informação que nos chegou, seja por via da literatura, seja por notícias de jornal, documentários, reportagens, palestras, páginas nas redes sociais, o medo apoderou-se de nós: estaremos a fazer algo de errado na educação dos nossos filhos? E se estivermos? Será recuperável ou perdemo-los para sempre no túnel fundo e escuro do fracasso? |
Os pais passaram a carregar uma culpa permanente. Sobretudo as mães. Bem sei, bem sei, nos dias que correm, é arriscado dizer que um dos géneros sofre mais do que o outro (ou fazer qualquer outro realce de diferenças, porque hoje o politicamente correto é homogeneizar os géneros, como se não existissem diferenças entre eles), mas ainda assim arrisco dizer que as mães são as que sentem mais culpa, por tudo e por nada. |
A criança nasceu antes de tempo? A culpa só pode ter sido da mãe, que fez esforços em demasia. Não mama? Péssima mãe, que nem leite tem para alimentar a sua cria. Chora o tempo todo? Demasiado colo, ou colo a menos, ou a casa muito aquecida, ou fria demais. Dorme a noite toda? Calhando está deprimida, ou talvez tenha algum problema ao nível do desenvolvimento – se as outras acordam por quererem atenção ou por sentirem os estímulos da vida, talvez a criança não esteja bem. |
Isto é logo ao nascer. Mas, pela vida fora, a culpa persegue as mães (talvez também os pais, mas eu só oiço estes desabafos em mães) por tudo e por nada. Também se vangloriam pelos sucessos dos filhos (como se fossem a prova provada de que fizeram a coisa certa) mas o que sobressai mais é a culpa: se são maus alunos, se sofrem de ansiedade, se fazem xixi na cama até mais tarde, se são vítimas de bullying ou agressores, se fumam, se bebem demais, se se metem em drogas, se não entram na universidade, se têm relações tóxicas, se são gordos, se sofrem de anorexia, se, se, se. |
Há muitos anos, escrevi um livro sobre isto, que continua, e continuará actual. Chamava-se, justamente, A Culpa Não é Sempre da Mãe e procurava tentar retirar das costas das mães esta contrição perpétua, por mais que eu soubesse, à partida, que era uma missão impossível. Hoje, mais até do que quando escrevi o livro, em 2014, as mães sentem-se responsáveis por todo e qualquer desaire, e praticamente não há dia em que não sintam que fizeram pouco, fizeram mal, estragaram tudo. |
Eu incluo-me neste pacote, claro, não estou acima de ninguém. Para verem até que ponto pode chegar esta paranóia maternal que também me atinge, um dia, quando o meu filho mais velho ficou a saber que precisava de óculos e que a sua miopia era uma herança minha, senti o peso da penitência. O meu filho não via bem ao longe, ia precisar de óculos e… a culpa era minha. Agora, que já passaram uns anos (e, sobretudo, aquele primeiro impacto) não deixo de pensar: quão idiota pode ser isto? Quão ridículo pode ser uma alminha culpar-se de algo que não controla, que está inscrito nos genes, e que não tinha como evitar, a não ser que optasse simplesmente por não ter filhos? E, por outro lado, dei por mim a pensar como deve ser terrível quando uma mãe transmite a um filho, geneticamente, uma doença realmente grave, incapacitante, potencialmente fatal. Nesses casos, o peso da culpa deve ser brutal. |
O que acho importante não se perder de vista é que somos, provavelmente, a geração mais informada relativamente ao bem-estar das crianças e que fazemos (em geral) muito mais (e melhor) do que fizeram connosco. Por vezes, como já escrevi nestas newsletters, até acho que fazemos demais, tratando as nossas crianças como se fossem de cristal Baccarat, capazes de se estilhaçar ao primeiro tom de voz um decibel acima. Exageramos. Culpabilizamo-nos demais. |
Ainda assim, e foi exatamente o que disse à minha irmã, cada novo dia é uma nova oportunidade de sermos melhores. Ontem tivemos um dia de trabalho terrível, chegámos tarde a casa, não tivemos paciência e houve alguma brusquidão na forma como tratámos quem mais amamos na vida? Acontece. Somos humanos. Se o detetámos, já é um excelente princípio. E o dia seguinte permite fazer de novo, e fazer melhor. Procurar compensar. As nossas vidas são como cobertores curtos: ora puxamos e tapamos os ombros, ficando os pés descobertos, ora cobrimos os pés e vem aquele frio ao pescoço. Igual com o equilíbrio entre trabalho e família. Uns dias, um lado vai ficar prejudicado; outros dias, será o outro. O equilíbrio faz-se dia a dia. De preferência, sem culpas. |
Vale a Pena… |
… Assistir à peça O Mundo Mágico de Jack, no Teatro Armando Cortez, em Lisboa
Jack é um menino que quer fazer todos os possíveis para ajudar a sua humilde aldeia. Movido pela incrível convicção de que existe um mundo melhor do outro lado do rio, aventura-se numa animada jornada onde troca, para grande desespero da sua mãe, a preciosa vaca Branquinha por feijões que acredita serem mágicos. Depois de atirados à terra rebentam num enorme pé de feijão que cresce e alcança as alturas. E é então que decide escalar a magnífica planta, para descobrir, acima das nuvens, um mundo mágico habitado por extravagantes criaturas. Tenho de ir com o meu mais novo que, coitadinho, nunca vai a lado nenhum (é o mal de se ter ido a todas as peças e mais algumas com os três primeiros).
Teatro Armando Cortez, Lisboa, de 21 de outubro a 24 de março. Bilhetes: 15 euros |
… Ver o mais recente espetáculo de Filipe La Feria, A Bela Adormecida – O Musical, no Teatro Politeama, em Lisboa
em Já se sabe: La Feria é mestre nos musicais e este não será exceção. Interpretado por atores, cantores, bailarinos, músicos e acrobatas, A Bela Adormecida é uma história de amor e coragem, com mensagens de tolerância e humanidade (e bem precisamos).
Teatro Politeama, Lisboa, sábados e domingos, às 11h00 e às 15h00. Bilhetes: entre 7,50 e 20 euros |
… Ler o livro Portuguesas com M Grande – edição revista e aumentada
Escrito por Lúcia Vicente e com ilustrações de Cátia Vidinhas, esta é uma belíssima ideia: reunir em livro mulheres portuguesas extraordinárias. Um livro para nunca esquecermos como aqui chegámos e para nos lembrarmos de que podemos ir ainda mais longe. Neste livro fala-se de Brites de Almeida, Beatriz Ângelo, Beatriz Costa ou Paula Rego. E muitas outras. Mulheres de garra, que lutaram pelos seus ideais, pelo direito a terem a sua voz, e que a fizeram chegar mais longe. Com coragem e determinação.
(ed. Nuvem de Tinta) |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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