Eliminar a dor da infância, quando a dor vai sempre existir e é bom irmo-nos preparando para ela |
Comecei estas newsletters, já lá vai mais de um ano, a escrever sobre a hipersensibilidade dos pais, e o receio que cresce em mim sempre que lhes noto a ansiedade por tudo e por nada, a proteção excessiva, o facto de saltarem em sua defesa, mesmo antes de saberem por que razão foram mandados para a rua numa aula, como se os seus filhos fossem perfeitos, impolutos, incapazes de qualquer mácula. |
Como escrevi nessa terceira crónica, tenho notado, ao longo dos anos (para quem tenha chegado agora aqui, tenho quatro filhos, o mais velho com quase 22, o mais novo com quase 9) que os pais se têm tornado progressivamente mais doentios em relação às crias. E uso a palavra sem receio de ser excessiva. Há muitas pessoas que exercem uma parentalidade profundamente doente, sufocante, que não permite que os miúdos vão trabalhando a autonomia, que não lhes permite experimentar a tristeza, a falha, o castigo. |
Da parentalidade positiva (sobre a qual também escrevi aqui) saltou-se, sem dó nem piedade, para a parentalidade hiper-protetora, porque houve interpretações demasiado livres sobre tudo aquilo que é suscetível de traumatizar, de deixar marca, de imprimir sofrimento nestas crianças-cristal. |
Não me esqueço do dia em que uma amiga, vinda de uma reunião de pais, gaguejou, incrédula, que um pai tinha perguntado se havia intenção de se colar revestimento almofadado no recreio e nas colunas da escola, porque as crianças podiam cair e magoar-se. Foi o mais próximo que vi de se sugerir envolver os filhos em plástico de bolhas, para os livrar de todo o mal, ámen. |
Ora bem, nesta senda de defender os petizes dos traumas vários que os possam ulcerar para sempre, temos a mais recente anormalidade: A Disney vai lançar uma nova versão de Bambi. Quando li o título, temi o pior. E confirmou-se: a nova versão elimina a morte da mãe do pequeno cervo, para poupar as crianças a esse sofrimento. Mas está tudo doido? Será que vamos limpar tudo o que já foi escrito e filmado e cantado para que não provoque qualquer tipo de dor nos que estão a crescer? E isso significa o quê? Que vão viver sem saber o que é a tristeza, o que é a dor, o que é a morte? Quando lhes acontecer a eles, que ferramentas têm para lidar com isso? |
Há uma higienização do mundo que é tão absurda quanto perigosa. Assim de repente, os livros e os filmes da minha infância são todos galerias de “horrores”. A Capuchinho Vermelho que vê a avó engolida pelo lobo mau? Hansel & Gretel que são deixados à sua sorte por uma madrasta má e recolhidos por uma bruxa que os engorda com doces com o objetivo de os comer? O Patinho Feio, desprezado pela sua própria mãe e irmãos por ser diferente (e feio)? A Cinderela, que era feita escrava pela madrasta e pelas suas odiosas filhas? O Marco sempre à procura da mãe? E as cantigas? Que Linda Falua? “Eu peço ao Senhor Barqueiro que me deixe passar, tenho filhos pequeninos não posso sustentar. Passará, passará, mas algum ficará; se não for a mãe à frente, é o filho lá de trás”. Atirei o Pau ao Gato? Como raios sobrevivemos nós a tudo isto sem nos tornarmos uns psicopatas assassinos ou uns deprimidos à beira do suicídio? |
Quando há uns anos tive um programa de rádio com o psicólogo Eduardo Sá, falámos sobre esta abordagem ao medo, à tristeza, à maldade, muito presente no imaginário infantil. E o que ele dizia era que todas estas mensagens eram formas importantes de introduzir esses sentimentos, que são tão naturais, na vida das crianças. Chorar, quando a mãe do Bambi morre, é bom, mostra empatia, prepara para a perda (nunca nos preparamos verdadeiramente, mas vamos tendo contacto com essa realidade da qual será impossível escapar). O Rei Mufasa, pai de Simba (no filme Rei Leão) também morre e também é triste. Vamos fazer uma nova versão, também? Limpamos com éter toda a dor, e esperamos que se cresça mais saudável? Optamos por construir uma sociedade asséptica para as crianças, para que não tenham qualquer contacto com nada que lhes belisque o coração? Isso fará delas adultos mais fortes ou mais frágeis? Mais empáticos ou menos? |
Vivemos tempos de um radicalismo do politicamente correto que roça a paranóia. A Branca de Neve não pode ser branca, os anões não podem ser anões. Nos EUA há uma escalada de censura literária chocante, que não se cinge às crianças mas à sociedade em geral. Seguindo o movimento woke, há uma espécie de filtro pelo qual passa toda a cultura, de maneira a escrutinar se existe suscetibilidade de se ofender alguém. Mesmo a sério? Mas há alguém que espere mesmo passar pela vida toda sem jamais se sentir “ofendido” por algo que leu, viu, ou ouviu? Que ditadura é esta, que nos impede de sentir raiva por uma personagem ser racista, que nos afasta da tristeza por uma pessoa transgénero ser perseguida, que torna a vida inteira incólume, com um equilíbrio perfeito que não corresponde, de todo, ao desequilíbrio do mundo? |
No ano passado, o estado de Washington, um dos mais progressistas dos EUA, baniu das escolas uma preciosidade literária chamada To Kill a Mockingbird, de Harper Lee (publicado em Portugal com o título Mataram a Cotovia). Não quis acreditar. O livro conta a história de um advogado branco que defende um negro acusado injustamente de violação, e é lindíssimo pela integridade deste branco que resiste à intimidação de toda uma comunidade racista que quer condenar o alvo mais fácil. A razão para ter sido censurado? Porque a personagem do advogado Atticus Finch é um branco a defender um negro, num paternalismo e superioridade que é intolerável nos dias que correm. Say what? |
Para não irmos até aos EUA, podemos mesmo pegar num exemplo aqui “em casa”. No Porto, houve uma petição para se remover a estátua de Camilo Castelo Branco abraçado a uma mulher nua, por ser melindrosa para a moralidade de algumas almas mais sensíveis. O presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, começou por concordar com a petição, descrevendo a obra como “pornograficamente horrenda”, mas depois lá emendou a mão, e a estátua parece – até ver – manter-se onde está, há mais de uma década. Erigida por Francisco Simões, pretende homenagear as várias figuras femininas da obra do autor português. Mas houve sensibilidades que acharam uma humilhação para a mulher, pelo facto de estar nua, enquanto Camilo está vestido. Durante onze anos ninguém parece ter-se perturbado com isso, mas, claro, estamos agora a viver a fase das suscetibilidades feridas. |
A sério. Acho mesmo que estamos a ensandecer. Na ânsia de não sermos preconceituosos, estamos a apagar um passado que existiu, realidades que tiveram o seu tempo e o seu contexto, estamos a obliterar a História, a memória, a cultura. Como se isso fizesse de nós melhores pessoas. Não faz. Não somos melhores pessoas por obnubilarmos o passado. Pelo contrário: quanto mais conhecermos o que ficou para trás e o peso que teve, talvez mais dificilmente repitamos os mesmos erros. Talvez, apenas. Porque, na verdade, acho que não há muito que nos impeça de repetir os mesmos erros. |
Vale a Pena… |
… Ir ao Chocolat Festival, no WOW (Quarteirão Cultural), em Vila Nova de Gaia
É uma das maiores concentrações do mundo de chocolatiers e das suas marcas de chocolate e produtores de cacau. Vão poder encontrar produtores de cacau de várias explorações, de diferentes países e diferentes origens, que lhe proporcionarão um contacto único, exclusivo e direto com o cacau. Há chocolates para todos os gostos.
De quinta-feira, dia 19 de outubro, a domingo, dia 22, das 10h00 às 22h00 |
… Assistir ao espetáculo Que Histórias Conta a Lua?, no Porto
Uma peça para toda a família, onde o teatro, a música, a palavra e a performance andam de mãos dadas. São histórias pequeninas, poemas microscópicos, o imaginário em forma de teatro de sombras. Para toda a família.
Coliseu do Porto. Domingo, 15 de outubro, às 10h30 |
… Ler o livro O Lobo em Cuecas
Nesta banda desenhada divertida, escrita por Wilfrid Lupano e ilustrada por Mayana Itoïz, um grupo de animais da floresta partilha rumores sobre um lobo de dentes afiados e olhar gélido. Alguns deles começam a fazer dinheiro a vender alarmes, armadilhas e vedações anti-lobo. Mas quando este aparece de cuecas às riscas, todos na floresta ficam confusos. É um truque? Ou terão os animais alguma coisa a aprender? Um ótimo livro para pôr toda a família a ler e a refletir.
(ed. Zero a Oito)
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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