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Filhos: material frágil, manejar com cuidado (sobretudo se forem pais-helicóptero, sempre a pairar sobre eles) |
Nestes vinte anos que levo de maternidade (filhos com 20, 17, 12 e 7 anos), tenho conhecido – como imaginam – muitos pais. E, correndo o risco de generalizar, atrevo-me a dizer que os pais de hoje são bastante mais ansiosos e protetores do que os pais de há duas décadas. Pelo que tenho lido, não é uma tendência exclusivamente portuguesa. Tudo terá começado nos Estados Unidos (o que já não é uma novidade), mas rapidamente se espalhou pela Europa, sendo já objeto de múltiplos estudos e preocupação por parte da comunidade científica. Alarmada com este fenómeno crescente, a Comissão Europeia tem em curso um projeto para tentar encontrar causas e soluções. |
Vejamos: se no tempo dos nossos avós as crianças eram, vezes demais, negligenciadas, não só com vulgarização do trabalho infantil (as famílias tinham muitos filhos e era preciso pô-los a contribuir para a economia doméstica), como com o emprego de castigos físicos (e não só), já para não falar da relação relativamente distante entre pais e filhos, hoje assistimos a uma total alteração desse paradigma. E ainda bem. Mas – o diabo é haver sempre um mas – quer-me parecer que passámos diretamente do 8 ao 80, esquecendo que o 40 pode bem ser o número certo. |
Além da redução do número de filhos, que permitiu dar uma atenção diferenciada a cada um, assistimos também a uma melhoria da qualidade de vida, à redução da mortalidade infantil, ao estabelecimento da escolaridade mínima obrigatória e, paralelamente, ao nascimento e multiplicação de estudos psicológicos sobre esse período único e fundamental: a infância. |
Este debruçar sobre todas as questões relativas aos primeiros anos de vida, com uma profusão de livros de uma pluralidade de autores, é bem capaz de estar no cerne desta nova parentalidade insegura, angustiada e, por isso híper-envolvida. Não é que estes estudos não sejam ferramentas importantes para um melhor e mais informado desempenho desta tarefa tão nobre. São, sem sombra de dúvida. Trouxeram luz a todo um caminho de más práticas, permitindo-nos corrigi-las e – em teoria – criar seres humanos mais equilibrados e felizes. O pior é que alguns pais, perante tanta literatura, parecem ter perdido o norte e a naturalidade, esmagados pela consciência de poderem ser os eventuais causadores de traumas nos seus filhos. Isto, aliado a uma pitada (generosa) de culpa pela falta de tempo que a maioria sente nos dias de hoje… pode produzir um caldo perigoso. E quem o toma às colheradas são, justamente, as crianças. |
Ora, este caldo pode ter diferentes efeitos secundários. Pode ser bem tolerado (como alguns medicamentos), mas também pode dar origem a pequenos ditadores, como tão bem explica o psicólogo Javier Urra (primeiro Provedor de Menores em Espanha), ou a verdadeiros totós, segundo a opinião de Carlos Neto, professor e investigador da Faculdade de Motricidade Humana (FMH), em Lisboa, a trabalhar com crianças há mais de quarenta anos. |
Os ditadores sê-lo-ão por terem crescido com a ideia de que tudo lhes é devido, sem nunca terem escutado aquela palavrinha mágica, que ninguém gosta de ouvir, mas que se revela de extrema importância. Um “não” na hora exata é a terapia mais barata (acabo de inventar um provérbio). De resto, no livro Ensine o Seu Filho a Dizer Não, de Paulo Sargento, Fátima Caetano e Rita Rebelo (ed. Matéria-Prima, 2018), reforça-se a relevância do advérbio e a renitência que alguns pais têm em usá-lo: “Temos dificuldade em dizer não porque achamos que isso vai traumatizar a criança, mas vai traumatizar muito mais uma mão queimada ou uma queda das escadas abaixo. Dizer ‘não’ na maior parte das vezes e quando é bem dito, é um ato de amor. Dizer sim é, às vezes, apenas um ato de extrema tolerância e desresponsabilização parental.” |
Quanto à teoria de que podemos estar a criar totós, prende-se com a tal educação excessivamente protegida, que torna as crianças incapazes de tomar uma decisão porque os pais se antecipam, receosas de dar um passo porque os pais não o permitem, inábeis perante uma sociedade que conhecem apenas a partir da sua bolha. |
Se começa a sentir-se incomodamente retratado, saiba que não está sozinho e que há mesmo uma terminologia criada para definir estes progenitores tutelares: são os pais-helicóptero (porque parecem sobrevoar os filhos, sempre a baixa altitude). |
Fico sempre com a ideia de que, para estes pais, os filhos são frágeis, como se fossem o mais fino cristal Baccarat. E, além disso, são raros, especiais, e isentos de defeitos. A mistura é explosiva: não se lhes pode ralhar porque podem partir-se, mas é imperioso inscrevê-los no mandarim logo no infantário. Não se pode deixá-los ir para a escola sozinhos, mas é crucial que saiam das aulas para novo período de estudo, porque há que potenciar todo aquele talento natural. E, claro, se tiverem uma má nota ou uma falta disciplinar, a culpa nunca é deles (cruzes, credo!), pelo que se revela urgente pedir satisfações a esses biltres que são os professores. |
Ao longo destas duas décadas, já vi de tudo: pais na creche a quererem saber o “conteúdo programático” previsto (falamos de bebés com três anos), pais de meninos no pré-escolar a sugerirem que as crianças saiam dali a saber ler (quando é suposto que o façam apenas no primeiro ano), pais ofendidos com outros pais porque o filho não foi convidado para uma festa de aniversário (que só tinha oito crianças, das 24 da turma, que o aniversariante escolheu por serem os amigos mais próximos), pais que não deixam os filhos de 14 anos irem sozinhos para a escola (morando num bairro tranquilo, e duas ruas ao lado) e outros que nunca os deixam sair com os amigos, mesmo já em estádios avançados de adolescência. |
Nem preciso ir mais longe: já tinha este texto acabado, prontinho a enviar para o Observador, quando uma publicação que fiz nas minhas redes sociais e respetivas reações me fez voltar aqui, para introduzir mais este episódio, tão fresquinho que até fazia dó deitá-lo ao lixo. Depois de publicar uma foto no Instagram de uma folha A4 com a frase “Na sala de aula devo estar calada e passar tudo o que está no quadro”, repetida cem vezes, explicando que tinha sido o castigo oferecido à minha filha pelo professor de Matemática, comecei a receber dezenas de mensagens indignadas. “Se fosse comigo fazia queixa!”, “Coitadinha da Madalena, que horror! Esse professor é lamentável!”, entre outras pérolas similares. |
Eu, que me tinha divertido com o castigo, relembrando os meus tempos de tagarela incorrigível, sorri sem surpresa. Lá estavam eles, os pais para quem tudo é suscetível de traumatizar as suas crianças sem mácula. Podemos até questionar a eficácia do “castigo”, podemos até revirar os olhos perante a bafienta punição ao jeito do Estado Novo. Mas daí até ficar em transe perante a crueldade de um lente vil que subjuga o pupilo indefeso… vai uma distância de quilómetros. |
Felizmente, dos quatro grupos de pais no Whatsapp que cheguei a ter, restam-me dois (vê-los crescer não é isento de dor, mas tem esta belíssima vantagem). Porém, quando tive quatro (e mesmo agora que o tormento reduziu para metade) assisti a momentos verdadeiramente épicos. Podia sugerir vários, mas talvez o pináculo seja aquela mãe que se manifestava chocada com a ideia de uma viagem de finalistas de quarto ano, e não era por ser simplesmente “parvo” chamar-lhes finalistas. Não. O problema desta mãe residia no facto de o filho ir dormir uma noite (sim, uma, singular) fora de casa, coisa que nunca tinha acontecido. É importante sublinhar que a turma ia dormir num conceituado campo de férias, com monitores especializados a acompanhá-los durante as 24 horas do dia. Nem isso a tranquilizou. |
E, quando eu já revirava os olhos a olhar as mensagens no telemóvel, ela aplicou a estocada final: “Sentir-me-ia mais tranquila se pudesse acompanhar o grupo como voluntária”. Escusado será dizer que nem ela foi como voluntária, nem o filho pôs os pés na viagem (que foi divertidíssima, por sinal). Não sei o que acontecerá quando o filho desta senhora namorar e a ela se voluntariar para… segurar a vela. Não sei. Mas temo muito por todos estes miúdos, vítimas de um amor sufocante. Porque, lá está, se o 8 é pouco e o 80 é demais, talvez não seja mal pensado apostar ali no 40. Afinal, como dizia o outro (no caso, os outros), “Too much love will kill you”. |
Coisas que descobri |
Um parque de aventuras ideal para crianças e jovens |
Se é um pai que morre de medo que o seu filho seja aventureiro, pode custar-lhe levá-lo aqui mas é bem capaz de ser um primeiro excelente passo. O Adventure Park, no Complexo Desportivo do Jamor, em Oeiras (perto do Estádio Nacional) é um parque de arborismo com diferentes níveis de dificuldade. Os mais pequenos (que têm de medir um mínimo de 1,10m) podem fazer a “Pequena Floresta” – um percurso no topo das árvores (obviamente que os miúdos estão bem presos por cordas e arneses) com a duração de uma hora. Os mais crescidos (mínimo 1,40m de altura) já se podem aventurar no “Mega Circuito”, que atinge uma altura de 14 metros, e tem quatro slides de duzentos metros. Não aconselhável a quem tenha vertigens. Mas atenção: se os pais tiverem vertigens mas os filhos não… é deixá-los ir. Os monitores asseguram-se de que tudo decorre com toda a segurança. Está preparado para os deixar aventurar-se? |
Um livro para descomplicar: Libertem as Crianças, de Carlos Neto (ed. Contraponto) |
Não é novo, tem já alguns anos, mas mantém-se muito atual, e temo (e creio que este professor catedrático também) que continue a manter-se atual por muito tempo. Carlos Neto é um dos maiores especialistas mundiais na área da brincadeira e do jogo e da sua importância no desenvolvimento das crianças. Foi ele quem disse, em 2015: “Estamos a criar crianças totós, de uma imaturidade inacreditável”. Vale a pena ler (ou reler). As crianças precisam de espaço para crescer, sem se sentirem sufocadas pela proteção por vezes excessiva dos pais.. |
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Sónia Morais Santos é autora do blogue “Cocó na Fralda“. Ex-jornalista, tem quatro filhos e dois cães, já passou por vários jornais e revistas em Portugal e publicou quatro livros [ver o perfil completo]. |
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