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Não costumo, nesta newsletter, alimentar polémicas, mas nesta semana em que todos recordámos o heroísmo dos ucranianos, e a histórica resposta de Zelensky “não preciso de uma boleia, preciso de munições”, não podia deixar passar em claro dois textos, um de Miguel Sousa Tavares, outro de Boaventura Sousa Santos, ambos a considerarem que a guerra na Ucrânia é no fundo uma guerra da NATO por procuração. No fundo o mesmo que defende aquele PCP que esta semana não cumpriu sequer um minuto de silêncio na Assembleia. |
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Há um ano todos pensámos que o destino da Ucrânia estava traçado – mais dia, menos dia, mais semana, menos semana, o país seria submetido pela Rússia. Houve até quem sugerisse a Vlodomir Zelensky que teria ajuda e protecção para fugir de Kiev. Mas o presidente da Ucrânia respondeu que não queria uma boleia, precisava era de armas para resistir. |
Foi assim que tudo começou, é bom lembrar – e é bom lembrar porque há quem escreva que este ano de heróica resistência ucraniana não foi mais do que “um ano de estupidez humana” pois “nem Putin conseguiu a rápida vitória que teria previsto nem a NATO conseguiu, por interposto Zelensky, correr com os russos da Ucrânia”. Tal como há quem ainda pense que aquilo a que assistimos, perante “O Silêncio dos Intelectuais”, não é mais do que um enfrentamento onde “se exploram dois nacionalismos para submeter a Europa à total dependência dos EUA e travar a expansão da China”. |
Se o leitor não teve curiosidade que clicar em nenhum dos links, até por higiene mental, digo-lhe apenas que estas duas visões maniqueístas não constam de nenhuma coluna do Avante, o jornal do PCP, são antes lamentos de dois muito prezados comentadores da nossa praça, a saber, Miguel Sousa Tavares e Boaventura Sousa Santos. Claro que nenhum dos dois defende Putin – o PCP também não o faz –, mas o essencial não é a sua condenação, malgré tout, da agressão: o pior é mesmo continuarem a olhar para esta guerra como uma espécie de “guerra por procuração” da NATO e dos Estados Unidos quando sabemos como muitos, tanto na NATO (e na União Europeia) como nos Estados Unidos, teriam suspirado de alívio se a Ucrânia tivesse sido rapidamente derrotada depois de terem aliviado as suas consciências com manifestações de solidariedade formal. |
Não foi isso que aconteceu e não aconteceu porque, ao contrário do que estes “democratas” continuam a pensar, há povos que querem mesmo ter a liberdade de escolher o seu modo de vida. Mais: o nosso modo de vida, o deste Ocidente que tantos abominam, continua a ser o modo de vida por que muitos acham de vale a pena morrer (como estão a morrer os ucranianos) ou então correr riscos inimagináveis (como correm os imigrantes que continuam a cruzar o Mediterrâneo ou o Rio Grande). Houve muitas coisas que aprendemos nestes últimos meses eu falei delas no Contra-corrente emitido no dia em que passou exactamente um ano sobre a invasão da Ucrânia (12+1 lições de um ano de guerra na Ucrânia), o segundo sobre este tema nesta semana que passou (o outro foi Biden e Putin ocupam o palco, só um sairá vencedor), mas talvez a mais importante tenha sido mesmo recordarem-nos que a luta pela liberdade vale sempre a pena, mesmo quando a diferença de meios parece insuperável, e que mesmo quando o “preço da liberdade” parece imensamente elevado vale a pena pagá-lo. Mais: que quando um líder age com coragem, isso é inspirador e pode fazer toda a diferença. |
É por isso que regresso sempre a esse momento em que Zelensky respondeu a Joe Biden que precisava de munições, não de uma boleia, o momento definidor que não permitiu que os governos e as opiniões públicas na Europa e nos Estados Unidos se refugiassem no habitual calculismo e indiferença. É que para os ucranianos esse foi também o momento que fez a diferença e não apenas por os inspirar na resistência – fez a diferença por sentirem que não estavam condenados a que lhes acontecesse o mesmo que aconteceu, noutras crises, a outros povos dessas “terras sangrentas”, a consagrada expressão de Timothy Snyder. Ontem, ao ouvir a novelista ucraniana Oksana Zabuzhko no podcast do Telegraph Ucraine: The Latest (aqui em vídeo, a partir do minuto 41), percebi como aquela resposta foi importante para dizer aos ucranianos que não aconteceria com o seu país o mesmo que tinha acontecido à Polónia em 1939, quando a Alemanha nazi a invadiu e o seu governo fugiu para a Roménia. E que não lhes aconteceria também o mesmo que aos afegãos, que viram o seu presidente fugir mal deixou de contar com a proteção das tropas dos Estados Unidos. |
Vou lembrar-me sempre daquele momento e daquela frase – penso que nos vamos lembrar todos – assim como do seu significado, do seu duplo significado: primeiro, que a liberdade vale todos os sacrifícios; depois que, na luta pela liberdade, só o Ocidente pode dar aos povos o amparo que eles pedem, necessitam e exigem. |
Há quem ache que tudo isto não é mais do que “estupidez humana” – e mim parece-me que é o supremo exemplo de coragem pois, como ouvi a um tenente-coronel do exército ucraniano neste outro podcast (minuto 33), quando nenhum de nós está preparado para dar a vida pela liberdade, todos acabaremos por morrer numa tirania. |
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PS. A “estupidez humana” é capaz de ser tão perigosa como a ignorância teimosa e preconceituosa. No mesmo artigo, MST escreve que “60 mil soldados russos morreram na II Grande Guerra” para “resgatar” Odessa dos nazis. Não eram soldados russos, eram soldados soviéticos e boa parte deles eram ucranianos. E não foi para “resgatar” Odessa, foi para a defender no cerco pelo exército romeno, sendo que essa batalha acabou com a derrota do Exército Vermelho. Também não é verdade que a Crimeia tenha uma história “secular” como russa: foi tomada apenas em 1783 por Catarina a Grande e passou para a Ucrânia em 1954, não “por descuido de um irresponsável chamado Ieltsin”, mas por uma decisão de Kruschev, o então líder soviético. Mais tarde, em 1991 a Crimeia votou “sim” no referendo que decidiu a separação da Ucrânia da URSS, era ainda Gorbatchev o líder soviético. A única intervenção de Ieltsin foi em 1994 quando, pelos acordos de Budapeste, a Ucrânia cedeu o seu arsenal nuclear à Rússia em troca da garantia por Moscovo que não mais ameaçaria ou usaria a força contra a integridade territorial ou a independência política da Ucrânia – uma promessa que Putin violou grosseiramente. |
Algumas leituras sobre um ano de guerra |
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Nos últimos dias foram publicados inúmeros trabalhos sobre este primeiro ano de guerra na Ucrânia. A seguir partilho convosco algumas referências, todas relativas a textos que me pareceram especialmente interessantes ou reveladores: |
- Um ano de guerra de conquista russa: fim incerto, impacto certo, um ensaio de Bruno Cardoso Reis no Observador, onde defende que “Podemos também ter a certeza de que estamos a viver num Mundo mais imprevisível e perigoso. Procurar uma paz a qualquer preço neste momento pode ser um desejo bem intencionado, mas ignora o risco de que daí possam resultar mais guerras de agressão no futuro.”
- A guerra e a paz, uma análise de Jorge Almeida Fernandes no Público, onde se escreve que “A Ucrânia ainda não ganhou a guerra, mas já escolheu a sua posição geopolítica, a do Ocidente. E, no horizonte, desenha-se uma longa guerra de atrito.”
- Temos de continuar a apoiar o caminho difícil da Ucrânia para a vitória, um excelente texto de Timothy Garton Ash no Expresso, um texto onde dá conta do que viu numa recente viagem pela Ucrânia e explica que, neste momento, não há caminhos isentos de riscos, mas lembra também que “O medo é mau conselheiro, como dizia o Papa João Paulo II, e a mensagem para o Ocidente, não só dos ucranianos mas também dos bálticos e da Europa de Leste, que conhecem melhor a Rússia, é “não tenham medo!”.”
- Ainda de Timothy Garton Ash, mas também de Mark Leonard, vale a pena ler The West may be more united, but it’s also more isolated, no Politico, uma análise sobre uma mega-sondagem realizada não apenas no Ocidente, mas nos maiores países do mundo, uma sondagem do European Council on Foreign Relations cujos resultados podem ser vistos com mais detalhe aqui.
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- ‘They didn’t understand anything, but just spoiled people’s lives’ é um relato impressionante de uma outra autora muito citada nesta newsletter, Anne Applebaum. Que com Nataliya Gumenyuk escreve na The Atlantic sobre o que tem vindo a ser revelado sobre os crimes de guerra russos. Nesta passagem ela descreve como os russos procuram iludir o que estão a fazer nas povoações que ocupam: “The Potemkin-village legend persists because it reflects a phenomenon we recognize: the courtier who creates a false reality to please the distant monarch. For Ukrainians who have lived under Russian occupation, the Potemkin story helps explain what they have experienced. Marunyak, the mayor of Stara Zburjivka, put it like this: “I am following their activities. They are all done for a camera shot in Russia. Even people who live in the occupation don’t believe it is for real. It’s like a huge Potemkin village. It can’t function. They try to glue it together, but it doesn’t work.” Ainda de Anne Applebaum e na mesma revista recomendo uma boa análises dos dois principais discursos desta semana, Biden’s Hope vs. Putin’s Lies.
- How Putin blundered into Ukraine — then doubled down, uma longa e muito interessante peça do Financial Times onde se recordam os momentos-chave deste último ano e se revelam pormenores deliciosos e reveladores, como esta conversa tida pelo ministro russo dos Negócios Estrangeiros com um grupo de oligarcas convocado para o Kremlin depois da invasão: “Stunned, the oligarch asked Lavrov how Putin could have planned such an enormous invasion in such a tiny circle — so much so that most of the senior officials at the Kremlin, Russia’s economic cabinet and its business elite had not believed it was even possible. “He has three advisers,” Lavrov replied, according to the oligarch. “Ivan the Terrible. Peter the Great. And Catherine the Great.”
- The Kremlin’s Grand Delusions – What the War in Ukraine Has Revealed About Putin’s Regime, um ensaio na Foreign Affairs de duas das mais reconhecidas especialista em “kremlinlogia”, Fiona Hill e Angela Stent. Muito informado, nele defende-se que “The war has revealed the full extent of Putin’s personalized political system. After what is now 23 years at the helm of the Russian state, there are no obvious checks on his power. Institutions beyond the Kremlin count for little. “I would never have imagined that I would miss the Politburo,” said Rene Nyberg, the former Finnish ambassador to Moscow. “There is no political organization in Russia that has the power to hold the president and commander in chief accountable.”
- One Year Into War, Putin Is Crafting the Russia He Craves, uma reportagem do New York Times onde se defende o mesmo ponto de vista, ilustrando-o com exemplos de como pensam os homens que rodeiam Putin: “Liberalism in Russia is dead forever, thank God,” Konstantin Malofeyev, an ultraconservative business tycoon, bragged in a phone interview on Saturday. “The longer this war lasts, the more Russian society is cleansing itself from liberalism and the Western poison.”
- Também gostei de ler Putin’s obsession with Russia’s ‘Great Patriotic War’ could be his downfall, uma boa análise do historiador Iain MacGregor na Spectator, How and When the War in Ukraine Will End – Forecasting a conclusion to an unpredictable conflict, de Uri Friedman na The Atlantic, um trabalho baseado em conversas com dezenas de analistas, Drones Are Giving Ukraine a Wartime Edge, uma reportagem do Wall Street Journal onde se explica como “A $2,000 vehicle made in China destroys a Russian tank worth millions. They call it ‘delivering pizza.’”, e ainda How Kaja Kallas Rose To Become One of Europe’s Leading Voices, um retrato da alemã Spiegel sobre a cada vez mais influente primeira-ministra da pequena Estónia.
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As milenares guerras do trigo e as guerras de hoje |
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Em 2011, quando a atenção do mundo se virava para a “rua árabe” onde uma sucessão de revoltas provocada inicialmente pela subida do preço do pão levaria à queda de governos considerados inexpugnáveis, a atenção de Scott Reynolds Nelson virava-se para os “trilhos negros” que convergiam para Odessa, no sul da Ucrânia. Esses trilhos eram as antigas rotas seguidas pelos carros de bois que transportavam o trigo cultivado nos solos mais férteis do mundo, as planícies de terra negra da Ucrânia. Onze anos depois, na primavera de 2022, seria nos nós desses “trilhos negros” que cruzam planícies de terra argilosa e ainda enlameada, que os ucranianos parariam os tanques russos que convergiam para Kiev. |
Em 2011 Scott Reynolds Nelson estava ainda a preparar As Guerras do Trigo — Uma História Geopolítica dos Cereais (Zigurate, 2022), um livro escrito e publicado ainda antes da guerra começar (a edição original americana saiu a 22 de Fevereiro de 2022…), mas quando ela estalou o autor não pode deixar de pensar em como revivíamos histórias antigas, nomeadamente no porquê de Putin estar tão obcecado em voltar a percorrer os mesmo caminhos de Catarina A Grande, algo que explica nesta entrevista. Quanto a nós refazer esse milenares “trilhos negros” pela mão de Scott Reynolds Nelson é uma forma de compreendermos melhor não só as raízes profundas da actual guerra, mas também o papel dos cereais e do comércio de cereais na economia mundial ao longo dos séculos, mesmo milénios, pois há indicações de já se cozeriam pães de trigo há 14.400 anos. É o que também tenho vindo a fazer nos últimos dias ao percorrer as páginas deste A Guerras do Trigo (numa edição portuguesa que, infelizmente, devia ter uma tradução mais rigorosa). E é uma viagem que também vos recomendo que façam. |
Duas fotos indiscretas |
Há muitos anos o Adelino Gomes, que andava a fazer uma investigação que o levara aos arquivos do desaparecido Diário Popular, trouxe-me uma fotografia que lá encontrara, uma imagem de 1976 onde eu, então com 19 anos, aparecia na mesa de uma conferência de imprensa a representar a chamada UEDP, o ramo estudantil da UDP, um dos partidos que se fundiu no actual Bloco de Esquerda. Anos mais tarde reproduziria essa imagem no meu livro de memórias sobre os meus anos revolucionários (Era Uma Vez… a Revolução, Aletheia, 2012) e voltei a lembrar-se dela por estes dias quando descobri uma imagem antiga de Luís Moita, professor, sociólogo, investigador e, noutros tempos, sacerdote católico e um dos protagonistas da vigília da Capela do Rato, recentemente desaparecido. Essa imagem mostra Luís Moita numa visita, penso que em 1977, aos acampamentos de Tindouf, no sul da Argélia, acampamentos que eram a base da Frente Polisário, o movimento que reivindica a independência do Saara Ocidental. E lembrei-me porque em ambas há um protagonista comum: João Vieira Lopes, na altura dirigente da UDP, hoje o rosto da Confederação do Comércio, a CCP. Ele já recordou esse passado de activismo numa entrevista de vida pelo que julgo que republicar estas fotografias “indiscretas” não o incomodará, como não me incomodou a mim nem certamente incomodaria Luís Moita. |
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(na foto de cima João Vieira Lopes com Nuno Teotónio Pereira e Luís Moita, na debaixo ele está em primeiro plano, eu sou o jovem de bigode que está ao fundo) |
Tenham um bom domingo. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |
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