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Será que só discutimos o Natal por causa do consumismo? Ou será que o Cristianismo faz mesmo falta? E quem era o Jesus histórico, o que é que sabemos sobre Ele? Eis o que ficou das reflexões e leituras da minha semana natalícia, eu que sou um não-crente — mas pouco indiferente. |
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Há muitos anos, já não sei dizer exactamente quantos, conversava eu com um amigo espanhol, jornalista do El Pais, enquanto passeávamos pelas ruas de Estocolmo quando ele se vira para mim e, com a firmeza da sua mais profunda convicção, me atira: “não me venhas com dúvidas sobre a Fé, na Península somos todos católicos”. Eu que sabia que ele tinha tudo menos Fé comecei por ficar espantado, mas depois percebi o que queria dizer e dei-lhe razão: quem nasceu neste canto da Europa, mesmo não acreditando em Deus, cresceu e foi educado numa cultura católica, enquadrado por instituições marcadas por uma matriz história católica e obrigado a seguir leis que, mesmo quando parecem propor o contrário, são marcadas por valores católicos. Mas será que aquilo que era verdade talvez há duas décadas continua a ser verdade? |
Voltei a pensar no assunto por estes dias de Natal não por causa dos habituais, mas pouco úteis, discursos sobre a “deriva consumista” desta quadra, mas por questões que me foram suscitadas ao ler um interessante artigo de um dos melhores colunistas do londrino The Telegraph, Charles Moore. Ele interroga-se sobre como não temos dúvidas sobre a gravidade da situação na Ucrânia — onde, apesar de tudo, a árvore de Natal voltou a ser erguida na principal praça de Kiev –, sobre a justeza das reivindicações das mulheres no Irão, sobre a gravidade da situação na China assim como sobre as tensões fronteiriças dessa mesma China com a Índia e como encolhemos os ombros perante o “politicamente correcto”, hoje cada vez mais transformado numa agressiva ideologia woke. |
Não vou entrar no detalhe desse artigo mas notar que ele atribui alguns dos avanços censórios dos últimos tempos à ideia de que as referências cristãs que marcaram aquilo a que hoje chamamos Ocidente (e a que já chamámos Cristandade) estão não apenas na defensiva como a desaparecer. “No princípio era o verbo”, assim começa o Evangelho de João, uma ideia que Charles Moore contrapõe ao policiamento da linguagem. Para acrescentar: se queremos manter a nossa capacidade de liderar o mundo em cultura, segurança, liberdade e paz civil, temos de recuperar o valor da linguagem e recuperar as palavras que nos revelam a verdade em vez de as analisarmos à procura de saber se ofendem alguém. |
Dir-se-á: é um detalhe, a obsessão de um jornalista pela liberdade de expressão. Não penso que seja, como ainda esta semana defendi num contra-corrente – Somos todos racistas e transfóbicos, dizem eles –, um programa onde participou a Patrícia Fernandes, que tão certeiramente (e com muito informação) tem escrito sobre estes temas. |
Aqui há uns tempos Tom Holland, um historiador de que falarei de novo mais adiante a propósito de um livro e de um podcast, deu uma entrevista aqui ao Observador onde notava que a expressão na história do Cristianismo “é a de um movimento revolucionário que afectou o modo como toda a cultura se formou, o modo como vemos e percebemos o mundo. E fê-lo de uma forma tão profunda que mesmo hoje, no Ocidente, mesmo que possamos pensar que vivemos num mundo pós-cristão, ainda assim as nossas noções, a nossa moral e mesmo o quadro de sentido em que criticamos e até rejeitamos o cristianismo são cristãs”. Ele ia até ponto de notar que Richard Dawkins – um ateu militante, autor de um livro marcante, A Desilusão de Deus, talvez o ateu mais convicto que entrevistei na minha vida – lhe parecia ser uma figura marcadamente Cristã, “muito evangélico, mais confiante espiritualmente do que muitos bispos”. |
Compreendo-o muito bem e compreendo-o especialmente nesta época do ano onde, nas nossas sociedades, o Natal é a festa da família e sentimos – pelo menos eu já senti – como pode ser difícil estar longe da família nesta noite, a noite da Consoada. |
Aconteceu-me em 1995, já lá vão 27 anos, em Sarajevo, uma cidade que vivia um Natal de paz depois de muitos anos de guerra, uma cidade onde antes dessa mesma guerra apenas 7% da população de declarava como católica. |
Na noite de Natal que lá passei fui à Missa do Galo – um hábito que não tinha e a que só muito esporadicamente regresso – e entrei numa catedral a abarrotar consciente de que nessa manhã acordara ao som do chamamento para a oração dos muezzin, a melopeia que ecoava dos minaretes das mesquitas que enchiam as colinas da cidade velha, consciente também de que, na véspera, um dos últimos judeus que resistira primeiro do Holocausto e depois à guerra me levara a visitar a Sinagoga e me falara um pouco em ladino, a língua dos descendentes dos judeus expulsos no século XV da Península Ibérica. |
Nessa noite, muito amena para o habitual naquelas paragens e nesta época do ano, as ruas da cidade velha estavam cheias porque todos, mesmo os não católicos tinham por hábito celebrar o Natal a 25 de Dezembro – “as nossas festas eram partilhadas, os dias santos de cada uma das religiões eram festejados por todos”, disse-me na altura uma jornalista muçulmana do principal jornal da cidade, o Oslobodenje. Eu é que não tinha por hábito estar longe da família, como estive nesse ano e não voltei a estar, e ajudou-me a perceber a força deste período – e de quem o inaugurou, dizem que há 2022 anos. |
Em busca do Jesus histórico |
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Uma das coisas mais extraordinárias, e mais marcantes, destas sociedades em que vivemos é que, mesmo podendo ter sido marcadas e continuar a ser marcadas pela cultura cristã, é imensa a nossa ignorância sobre a figura de Jesus Cristo, sobre quem ele possa ter sido e como chegou a nós a sua mensagem, no Novo Testamento. Eu próprio, que tive uma cultura católica tradicional, com catequese, primeira comunhão e até crisma, sinto-me profundamente ignorante. Aqui e além vou procurando colmatar o que só posso considerar ser uma falha grave e, quanto mais o faço, mais compreendo aquilo que Frederico Lourenço, o classicista a que devemos uma notável tradução da Bíblia, que “é cismando sobre as palavras de Jesus que chegamos mais perto dele”, como ele notou numa entrevista ao Público que vale a pena ser lida. E vale tanto mais quanto foi feita a propósito da sua recente tradução dos Evangelhos Apócrifos, sendo que um deles, o de Tomé, é considerado fundamental para compreender melhor o Jesus histórico, porventura mesmo a integralidade da mensagem do Messias. |
Do alto da minha ignorância digo isto porquê? |
Em boa parte porque, além da minha sempiterna curiosidade que me permite seguir notícias como a da possível descoberta do túmulo de Salomé, que terá sido a parteira de Cristo (imagem acima), andei a ouvir podcasts de quem sabe muito, nomeadamente dois do próprio Tom Holland, naquele programa de já aqui vos falei uma vez, The Rest is History (o nosso O Resto é História, do Rui Ramos e do João Miguel Tavares é mais antigo, não se assustem os que temem um plágio). Estes dois programas, muito informados porque Holland é um especialista na Antiguidade Clássica, começam por abordar Jesus como mistério e não deixam lugar para grandes dúvidas: Ele existiu mesmo e é interessante conhecer os documentos e as fontes. Depois passam aos detalhes da sua história, muitos deles naturalmente misteriosos até porque os quatro Evangelhos não coincidem em todos os detalhes, a começar pelos relativos ao local de nascimento. |
Habituados que estamos a um só relato e apenas às interpretações modernas, nomeadamente as teológicas, que só foram fixadas (as iniciais) no século IV, no Concílio de Niceia, reunido já depois da conversão do imperador Constantino, esta simples ideia de que há um Jesus histórico que nem sempre coincide com os mitos que sobre ele temos é muito fascinante – e tema de investigações sem fim. |
É por isso também obrigatório (desculpem-me a ousadia) ouvir o último 45 Graus, o podcast de José Maria Pimentel, este uma conversa com Dale B. Martin, um historiador e um académico, actualmente professor emérito na Universidade de Yale e especialista no Novo Testamento e nas origens do cristianismo. |
Na mesma colecção de entrevistas do 45 Graus há uma outra que também recomendo muito sobre este mesmo tema – já tem alguns anos mas não envelheceu. Refiro-me à longa e proveitosa entrevista com Frederico Lourenço onde muito se fica a saber sobre como foi escrito o Novo Testamento, mas não só. |
Last but not least não percam também, ou até comecem por aí, o podcast do Observador Jesus nasceu a 25 de dezembro do ano 0? , a nossa mais recente A História do Dia, em que o Ricardo Conceição conversa com João Francisco Gomes, o nosso jornalista especializado em temas religiosos e revisita os que nos dizem os factos sobre o nascimento do cristianismo mas não só, porque aqui também se fala de Árvores de Natal, da tradição de São Nicolau e até de bacalhau. Seja lá como for sobre bacalhau e tudo o mais que enche a mesa da Consoada a referência mesmo é o contra-corrente desta sexta-feira, em que eu acompanhei o muito saber da Helena Matos: Ceia de Natal. Afinal a tradição ainda é o que era. Nós divertimo-nos a fazê-lo, se ainda não ouviu, não deixe de o fazer porque também se vai divertir, estou certo. |
Dois livros bem a propósito |
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Quem leu esta newsletter até aqui já terá percebido que uma das recomendações indispensáveis tinha de ser a tradução de Frederico Lourenço dos Evangelhos Apócrifos, uma edição da Quetzal. É aqui que encontramos o evangelho de Lucas, constituído só por citações atribuídas a Jesus – algumas muito belas, como aquela “o reino de Deu está dentro de vós”, Lucas 17:21 – e que não devem ser menorizados por serem tidos por gnósticos. Como nota Frederico Lourenço nas suas notas, “o facto do termo ‘gnóstico’ ter surgido com intuito condenatório tem levado a que, hoje, a sua utilização seja contestada em quadrantes académicos em que a bipolarização ortodoxia/heresia é vista como redutora”. |
O outro livro para que nos queria chamar a atenção é Dominion, de Tom Holland – edição portuguesa da Vogais, Domínio – Como o Cristianismo transformou o pensamento Ocidental –, uma obra notável que nos ajuda muito a compreender o mundo em que vivemos. Organizado em episódios, este livro vai-nos guiando por momentos em períodos marcantes e permite-nos compreender o que o autor disse na entrevista que já citei. |
Em redor do presépio… |
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2022 anos depois – se forem mesmo 2022 anos – a verdade é que continua a ser possível escrever de forma interessante sobre o Natal e em particular sobre o presépio, uma tradição muito mais recente que devemos a São Francisco de Assis. Isso mesmo nos recorda José Tolentino Mendonça, num belo texto editado esta semana pelo Expresso, Uma estrela nas nossas mãos vazias. Partindo de três representações da Natividade – “a pioneira natividade de Giotto, a chamada ‘natividade mística’ de Botticelli e ‘o neonato’ de Georges de La Tour” – o nosso Cardeal na Curia Romana conclui que… |
O Presépio somos nós. É dentro de nós que um Deus nasce. Dentro destes gestos que em igual medida a esperança e a sombra revestem. Dentro das nossas palavras e do seu tráfego sonâmbulo. Dentro do riso e da hesitação. Dentro do dom e da demora. Dentro do calor da casa e do relento imprevisto. Dentro do declive e da planura. Dentro da lâmpada e do grito. A nossa estirpe é a dos recém-nascidos. |
Referência ainda a mais três textos que gostei de ler: O Menino Jesus, de José Ribeiro e Castro, e Natal, o mais importante legado, de João Távora, ambos no Observador, e ainda O menino Jesus possível, de Henrique Monteiro, no Expresso. |
…e dentro do Presépio |
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Tinha pensado partilhar hoje convosco uma fotografia de um dos presépios que tenho nesta altura espalhados pela casa – como tantos portugueses tenho mais de presépio – e até já tinha escolhido um, o que trouxe de Belém, comprado bem perto do local onde se diz que Jesus nasceu (contestável, muito contestável…) e que é muito simples, apenas madeira de oliveira esculpida. Mas depois lembrei-me que eu próprio já compus um “presépio vivo”, teria talvez uns seis ou sete anos quando andava no Jardim Escola João de Deus. Fiz de São José, ou não me chamasse também eu José, e rezam as lendas familiares que fiz muito bem. É desse presépio vivo – ou semi-vivo, pois o menino era um boneco enquanto a vaca e o burro seriam de papelão – que vos deixo uma velha imagem, com votos de um Santo e Feliz Natal, em companhia dos vossos. |
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José Manuel Fernandes, publisher do do Observador, é jornalista desde 1976 [ver o perfil completo]. |