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A “política realista” por oposição às “emoções imperiais” |
Não se pode compreender o esforço de defesa do ultramar sem se perceber que esse esforço se tornou a base do poder de Salazar desde 1961. Nesse ano, Salazar viu-se ameaçado por um grupo militar que parecia favorecer a posição de Marcello Caetano, suposto adepto de uma autonomia federalista para o ultramar. Salazar deveu a sua sobrevivência à resistência que a esse grupo opuseram aqueles que, dentro do regime, aparentemente queriam “integrar” a metrópole e o ultramar num Estado unificado. Foi em nome dessa integração que arranjou novas chefias para o exército. Foi também em nome da integração que recebeu o apoio de muitos republicanos outrora anti-salazaristas, mas fiéis à herança colonial da I República. A partir daí, se mudasse subitamente a política ultramarina, Salazar arriscava-se a desfazer as alianças e cumplicidades que o sustentavam. |
De resto, Salazar viu-se sempre a fazer uma política realista, baseada na análise racional dos cenários possíveis, e não em emoções imperiais. Convém lembrar, aliás, que o nacionalismo ultramarinista era recente, uma invenção de alguns militares no fim da monarquia, e depois adoptado pelos governos republicanos na década de 1920. Salazar nunca revelou a paixão colonial de um general Norton de Matos, que durante décadas proclamou a necessidade de investir e povoar as colónias para fazer com elas uma “grande nação portuguesa”. Nos escritos políticos de Salazar anteriores a 1928, não há uma única referência às colónias. Nos seus primeiros tempos de governo, dedicou apenas um discurso à questão colonial, em 1933. Na década de 1930, foi ferozmente invectivado pela oposição por sacrificar o império a critérios “economicistas”. |
Os mesmo critérios, aliás, que fez questão de impor à guerra a partir de 1961: tinha de ser barata, sem grandes custos financeiros ou humanos. A doutrina da contra-subversão, por coincidência feliz, satisfazia precisamente esses critérios. Dentro do círculo do poder, Salazar consentiu na expressão de opiniões várias, como a do ministro Arantes e Oliveira, que num Conselho de Ministros de Janeiro de 1963, defendeu abertamente a independência de Angola e Moçambique, porque “considera[va] o anticolonialismo irreversível”. Nesse mesmo ano de 1963, aliás, Salazar recebeu pessoalmente um dos líderes do independentismo armado guineense. |
Mas nunca se convenceu de que valeria a pena “fingir que cedíamos”, inventar federalismos ou prometer independências longínquas, para aliviar a pressão internacional ou seduzir independentistas: “Como se os outros se deixassem convencer com fingimentos. […] Não podemos ser ingénuos nem julgar que os outros o são”. A sua suposta intransigência não era uma ingenuidade. Insurreições do tipo que o governo português enfrentou em África foram sempre muito difíceis de extinguir. Eram uma questão de paciência. Segundo um autor americano, era como tentar comer sopa com uma faca: não é impossível, mas é extremamente difícil e moroso. O integracionismo ultramarinista estava destinado a manter nesta equação o elemento da paciência. |
Aquilo a que Salazar chamava os “fingimentos” foi, do princípio ao fim, a esperança daqueles que, rejeitando a tese do abandono, criticavam a política de Salazar – para quem os “fingimentos” jamais comoveriam um inimigo ideologicamente motivado, mas poderiam criar no campo português a confusão suficiente para o governo perder a iniciativa e o controle da situação. Se as populações do ultramar suspeitassem de que aqueles que estavam do outro lado da fronteira poderiam vir a ser, por qualquer via, os seus senhores num prazo curto ou médio, a causa portuguesa em África estaria condenada pela natural relutância das pessoas em se comprometerem num projecto sem futuro. |
Salazar sempre se gabou de não alimentar ilusões acerca da humanidade. Convencera-se de que a opinião da maior parte das pessoas era geralmente a opinião do mais forte, e de que o mais forte era, frequentemente, aquele que parecia mais forte. Era essencial parecer inabalável, para dar aos povos do ultramar razões para tomarem o partido dos portugueses. Isso não o impediu de apoiar reformas como aquelas com que Adriano Moreira, em 1961, pôs fim ao sistema colonial que até então mantivera as populações africanas à mercê da administração portuguesa. |
O independentismo no ultramar português foi sempre entendido por Salazar como um movimento motivado pela União Soviética para minar a influência do Ocidente no mundo. Por isso, a um inimigo ideológico, quis opor uma ideologia que desse às forças portuguesas uma mesma determinação e coesão doutrinal. Daí a opção pela causa “integracionista” da “pátria una e indivísivel”, uma ideia aliás de origem jacobina. A sua esperança era que com essa bandeira os portugueses resistissem o tempo suficiente para as potências ocidentais acordarem e perceberem que a sua cedência aos independentismos na Ásia e na África apenas servira para a expansão do comunismo. |
Mais do que votações contrárias a Portugal nas Nações Unidas, preocupava-o a hostilidade dos Estados Unidos da América. Durante o governo de John Kennedy (1961-1963), os EUA acusaram Salazar de, ao defender o ultramar, estar a permitir que os comunistas explorassem a causa do nacionalismo em África. Mas o êxito militar português em 1961 fez mudar a atitude dos EUA, ainda no tempo de Kennedy. Finalmente, em África, o governo português pôde desde cedo explorar as debilidades dos estados limítrofes para fazer com que a sua feroz retórica anti-portuguesa não impedisse alguma cooperação secreta com Portugal no sentido de limitar a actividade dos independentistas. |
Para ajudar nestas manobras, e ao contrário do que se diz, o governo português soube modular os seus argumentos. Salazar começou inicialmente, no fim da década de 1950, por enfatizar a necessidade da África para sustentar o poder da Europa ocidental. Depois, insistiu na ideia de que a África não era uma só: seria árabe a norte, africana no centro, e euro-africana no sul. Esta última era a África onde se tinham estabelecido populações europeias, e compreendia Angola, Moçambique, a Rodésia e a África do Sul. Seria aqui, graças à associação à Europa, que os povos africanos beneficiavam de melhores condições de vida. |
O esforço de defesa português visava, segundo Salazar, manter esta situação favorável ao “progresso” e à “civilização”. E de facto, esta argumentação tinha algum eco. Sobretudo quando, na década de 1960, as independências africanas começaram a ser sinónimo de ruína e despotismo. Publicamente isolado na assembleia geral da ONU, Portugal dispôs sempre, ao nível das relações bilaterais, de cumplicidades suficientes para adquirir armas, propiciar investimentos e atenuar ameaças. |
Na última edição do programa E o Resto é História, conversei com o João Miguel Tavares sobre os 70 anos passados sobre a morte de Estaline. Ouça aqui o podcast. |
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Rui Ramos é historiador, professor universitário, co-autor do podcast E o Resto é História [ver o perfil completo]. |
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