No próximo 24 de Agosto completam-se dois séculos sobre o início da primeira revolução liberal em Portugal.
Foi no Porto – após uma longa conspiração de magistrados, comerciantes e influentes locais, que mobilizaram apoios na guarnição da cidade e noutras unidades do Norte – que se deu o acto inicial de um período da História nacional a que podemos chamar “Liberalismo Convulso”.
Este período terá duas etapas: a primeira, entre 1820 e 1834, quando o conjunto das forças liberais venceu a guerra civil de 1828-34, com a convenção de Évora-Monte e a partida de D. Miguel para o exílio; a segunda, de 1834 a 1851, quando, após um período de convulsões e conflitos entre facções conservadoras e revolucionárias, com a Regeneração de Saldanha, o constitucionalismo liberal se estabilizou até ao princípio do reinado de D. Carlos.
Como as principais revoluções portuguesas que se lhe seguiriam (a de 1910, a de 1926 e a de 1974), a revolução de 1820 começou por ser uma revolução de composição mestiça, isto é, uma revolução “contra” ou de coligação negativa que, depois de vitoriosa, fragmentou os seus participantes – que estavam contra o statu quo mas que não estavam de acordo quanto ao que queriam que o viesse a substituir. Tal como em 1974 seriam vários os projectos em carteira, de spinolistas a comunistas, em 1926 haveria monárquicos e republicanos, conservadores e fascistas e em 1910 republicanos conservadores e radicais, assim também em 1820 eram de várias espécies os conspiradores. E muitas as modalidades de liberalismo. Desde logo, um liberalismo (ou um anti absolutismo) inglês, de “rule of law”, monarquia limitada, oligarquia censitária e aristocrática, mais de liberdade que de igualdade; e outro, francês, jacobino, igualitário, quase republicano, mais de igualdade que de liberdade.
Os chamados “homens do Sinédrio” vinham, na sua maioria, da média burguesia emergente no final do Ancien Régime. Eram juristas, o que queria dizer mediadores ou especialistas ao serviço das leis do Estado que interpretavam e aplicavam. Nem todos eram maçons, mas Manuel Fernandes Thomaz, o líder da conspiração e redactor do manifesto, era; bem como Ferreira Borges e Silva Carvalho. Já a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino, formada a seguir, integrava representantes das três “ordens”: Clero, Nobreza e Povo. E quando as tropas se concentraram de manhã cedo no Campo de Santo Ovídio, actual Praça de República, ouviu-se missa.
Há um aspecto importante que por vezes fica esquecido. É que este levantamento vintista veio ao arrepio da ordem internacional que, meia dúzia de anos após a derrota de Napoleão, o Congresso de Viena e a Santa Aliança, era uma ordem assente nos princípios do Ancien Régime, liderada pelas monarquias absolutas da Rússia, Áustria e Prússia (fundadoras da Santa Aliança), com os Bourbon restaurados em França e a Inglaterra vencedora de Napoleão. A pentarquia europeia era absolutista e conservadora, indo desde o czarismo puro e duro ao liberalismo relativo da Grã-Bretanha.
O czar Alexandre I lançara a Santa Aliança no rescaldo de Viena, inspirado por uma estranha figura, a baronesa von Krüdener, que acreditava próxima a Segunda Vinda de Cristo e a preparava na companhia de alguns clérigos pietistas alemães e suíços. Fora a Krüdener que convertera à causa o Czar, futuro “messias” da reacção europeia e vencedor de Bonaparte, convencendo-o da necessidade de lutar, “em nome das verdades de Cristo”, contra as ideias liberais que tinham causado a revolução francesa, a ascensão do “anticristo” Napoleão e um quarto de século de insurreições e guerras na Europa. Ora se a Santa Aliança se fizera, precisamente, para combater, pelas ideias e pela força, o tipo de movimento que triunfara no Porto, por que não interviera em Portugal?
Mil oitocentos e vinte foi um ano de movimentos anti-absolutistas; no Reino de Nápoles, em Espanha (restauração da Constituição de Cádis) e até na Rússia (revolta dos Dezembristas). A revolta de Nápoles foi objecto de intervenção militar da Santa Aliança, em Fevereiro de 1821; em Espanha também intervieram 60.000 franceses mandatados em Verona pela Santa Aliança, restaurando, com o apoio espanhol, Fernando VII como Rei Absoluto em 1823; na Rússia, a conspiração liberal foi descoberta e suprimida. Só em Portugal não houve qualquer intervenção, o que torna a excepção portuguesa bastante curiosa.
O século abrira com a invasão de Junot em 1807, depois de o regente D. João VI se recusar a cumprir as regras do Bloqueio Continental napoleónico, fechando os portos portugueses aos navios e ao comércio britânico. Wellington veio, os padres levantaram o campo contra os heréticos franceses e as selvajarias dos invasores – a que os nossos guerrilheiros responderam à letra (vejam-se Camilo, Arnaldo Gama, Malheiro Dias) – fizeram o resto para mobilizar a população.
Entretanto, para não ficar refém de Napoleão como o rei de Espanha, o Regente partiu com a Corte para o Brasil. Gostou de lá ficar e foi ficando; envolveu-se em guerras e conquistas na vizinha América espanhola e ocupou Montevideo depois de ter feito a abertura dos portos da colónia brasileira aos ingleses. A pouco e pouco, Portugal foi sendo subalternizado pelo “Reino Unido de Portugal e Brasil” e os portugueses sentiram que a colónia, agora, eram eles. Ao mesmo tempo, depois da vitória sobre os franceses, os ingleses foram ficando para reorganizar o exército português, submetendo os nossos militares; e Beresford tornou-se um procônsul todo-poderoso.
Contra isto reagiram os portugueses: os comerciantes do Porto e de Lisboa perdiam o monopólio do comércio com o Brasil, os militares sentiam-se humilhados pela hegemonia britânica nas fileiras; e a ausência do Rei e da Corte humilhava todas as classes. Gomes Freire de Andrade, General e Grão-Mestre da Maçonaria, conspirou, mas foi descoberto e executado em 1817, com outros “mártires da Pátria”.
Havia, deste modo, uma tempestade perfeita para um movimento nacional que mudasse a situação: e ele vai ter lugar a partir do Porto, cidade cujos interesses comerciais eram particularmente prejudicados pela abertura dos portos brasileiros e onde um núcleo de altos quadros da magistratura, também identificados pela sua filiação maçónica, começou a conspirar desde o fracasso de Gomes Freire e da sua execução.
Como comentaria um grande historiador brasileiro, Oliveira Lima, a propósito do espírito do tempo em Portugal:
“O antigo reino sentia-se completamente abandonado: decaído dos seus foros tradicionais, sem mais uma política sua, quase reduzido a não constituir, sequer, uma expressão geográfica europeia, pois se acreditava geralmente que D. João VI deliberara não regressar mais e nutria a intenção de, depois de esgotar Portugal, já tão depauperado em homens e em dinheiro, trocá-lo por uma das possessões espanholas da América, convertendo-se a dinastia brigantina numa realeza exclusivamente americana.”