Foi há 75 anos, em 1949, que George Orwell publicou a sua famosa distopia, Nineteen-Eighty Four. Seria o seu último livro. No ano seguinte morria de tuberculose, aos 47 anos.
Os traços rápidos da sua vida mostram alguém obcecado com a coerência entre pensar e existir e olhando a vida como tempo e espaço de aventura e serviço.
George Orwell nasceu Eric Arthur Blair em Motihari, Bengala, Império Britânico das Índias. O pai, Richard Blair, era um funcionário, um “Opium Agent”, do Indian Civil Service. Britânico até à minúcia taxinómica, Orwell dizia-se de “lower-upper-middle-class”, com remota ascendência aristocrática.
Como outros filhos do Império, Eric Blair vem para Inglaterra estudar. No colégio, ganha uma bolsa para o upper–upper Eaton College, mas não se demora por lá: segue os passos paternos e faz a admissão à Indian Imperial Police. E vai para a Birmânia, onde fica cinco anos.
Burmese Days contam esse tempo; como Down and Out in Paris and London é a memória das suas andanças, depois da volta à Europa, entre as margens da Mancha, partilhando a vida dos pobres entre os pobres. A saúde, comprometida nos dias da Birmânia, obriga-o, depois de uma pneumonia, a recuperar na casa de família em Southwold, Suffolk. Trabalha como livreiro em Londres, casa-se com Eileen O’Shaughnessy e vai viver com a mulher para Wallington, Hertfordshire.
E em 1937, como milhares de europeus, vai para Espanha, lutar contra Franco. Houve também quem fosse lutar por Franco. Até ingleses, como o galês Frank Thomas ou como Peter Kemp, licenciado em Estudos Clássicos por Cambridge e bombardeado pelos camaradas franquistas com perguntas sobre a Maçonaria, por ser protestante. E, claro, os 700 “Camisas Azuis” irlandeses de Eoin O’Duffy.
Orwell era um socialista sem partido, mas na Catalunha vai alinhar com o Partido Obrero de Unificación Marxista, que os estalinistas acusarão de trotskista. No Verão de 1937, assiste em Barcelona à guerra feroz entre os agentes da soviética NKVD e os dirigentes e militantes do Partido Obrero. O governo da República, chefiado por Juan Negrín, está com os soviéticos. Andreu Nin, o líder do Partido Obrero, é morto pelos estalinistas.
Orwell volta a Inglaterra e escreve a sua Homage to Catalonia. Durante a guerra, trabalha na BBC, na propaganda aliada. Depois, escreve duas contra-utopias – Animal Farm, em 1945, e Nineteen eighty-four, em 1949.
Utopias e distopias
O que terá levado George Orwell, em 1949, a projectar o seu futuro distópico no ano de 1984? A irónica alusão a uma possível conclusão, 100 anos depois, da via lenta, gradual e institucional para o socialismo da Sociedade Fabiana (fundada em Londres em 1884)? A tomada de poder em 1984 do movimento político que instala uma tirania oligárquica assente no terror na distopia de Jack London The Iron Heel (1908)? O primeiro romance de Chesterton, The Napoleon of Notting Hill, escrito em 1904 e passado em 1984? Orwell admirava Chesterton e publicou a sua primeira crónica no semanário do escritor G.K.’s Weekly. Fosse como fosse, 1984 iria ficar como o ano de todos os futuros distópicos.
Na história política e literária do Ocidente há uma riquíssima tradição utópica: da República platónica à Cidade do Sol de Campanella, da Utopia propriamente dita, a de Thomas More, às sociedades perfeitas imaginadas pelos iluminados do século XVIII entre persas, chineses e ameríndios. A ideia de imaginar e apresentar uma comunidade perfeita – geralmente como alternativa crítica aos sistemas reinantes – não parou no Ocidente, dos gregos aos cristãos primitivos e a Emanuel Kant.
A Revolução Francesa e o Terror, na medida em que representaram ensaios de sociedades novas e a caminho da perfeição – e os seus custos – refrearam ligeiramente os entusiasmos. Mas no século XIX, com as máquinas, a indústria, os capitalistas e a classe operária, nasceram outras utopias – as dos socialistas utópicos, como Proudhon e Bakunin, e as dos socialistas científicos, como Marx e Engels. E houve até capitalistas empreendedores, como Robert Owen, que quiseram edificar comunidades perfeitas. New Harmony, fundada em 1825 no estado de Indiana, foi das primeiras.
Enquanto autores populares, como Júlio Verne, cantavam as maravilhas do tempo e do futuro, mais perto do fim do século, em 1891, Jerome K. Jerome, num pequeno conto distópico, The New Utopia, adormecia depois de um faisão recheado com trufas, Château Lafitte 49, charutos e divagações sobre a nacionalização do capital e risonhos futuros igualitários entre consócios do National Socialist Club… – para, em sonhos, acordar no século XXIX entre os cinzentos terrores realistas de um mundo igualitário. Em 1895, H. G. Wells insistia na nota de dissidência escrevendo a distopia científica A Máquina do Tempo.
Entretanto, na vida real e já no século XX, Lenine, um discípulo russo de Marx, tomava o poder na Rússia em 1917 de forma muito pouco científica e muito pouco marxista – já que, na teoria marxista, a Rússia feudal do czarismo estaria muito longe de reunir as “condições objectivas” para instaurar o socialismo. Talvez por isso Lenine, Trotsky e os bolcheviques o tivessem instaurado à força, saltando várias etapas do “processo histórico”. Depois, destruídas as instituições religiosas e a propriedade privada que sempre equilibram o poder político, Estaline poria em acção a máquina do terror. Mas antes disso e ainda perante a Rússia da revolução e os primórdios do novo Estado comunista, Evgueni Zamiatine, um engenheiro bolchevique, escrevia em 1920 o romance distópico Nós. Ainda conseguiu emigrar incólume em 1931, para morrer em França, em 1937.
A distopia de Aldous Huxley de 1932 – Brave New World – seria mais crítica da mentalidade moderna, radicalmente individualista e sibarita, e de uma sociedade ao serviço de uma ideologia materialista e hedonista, usando a manipulação genética.
Era o tempo das “tábuas rasas”, dos “homens novos” e dos totalitarismos. O fascismo vencera em Itália, graças ao nacionalismo e também ao medo do comunismo. O internacionalismo comunista e o genocídio de classe que, em cumprimento da teoria, os bolcheviques tinham aplicado na Rússia, desencadeavam, para os conter, soluções radicais – autoritárias, ditatoriais ou totalitárias, como o hitlerismo. O centro político e o liberalismo só resistiam no Reino Unido, em França, nos Estados Unidos e em alguns pequenos Estados europeus.
Vencidos os totalitarismos “de direita”, foi em clima totalitário “de esquerda” que Orwell escreveu Animal Farm, um imaginado triunfo dos porcos em que todos os animais eram iguais… mas em que alguns eram “mais iguais do que os outros”. Em 1949, no pós-guerra, depois da vitória dos anglo-americanos e dos russos de Estaline, saía então a mais célebre das distopias do século XX.
1984: um futuro com 40 anos
Nineteen Eighty-four é uma distopia crítica do totalitarismo soviético escrita por um homem de esquerda e socialista, mas que recusa e abomina o socialismo concentracionário, policial e totalitário da Rússia de Estaline. Orwell nunca esteve na Rússia e a sua experiência do terror comunista era a perseguição estalinista, na Catalunha, aos seus amigos do Partido Obrero de Unificación Marxista (que também não eram propriamente uns democratas da primeira hora…)
Em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro Winston Smith, o protagonista, trabalha no Ministério da Verdade, que serve o Grande Irmão e o Partido Único. Tudo se passa na Grã-Bretanha, parte da Oceânia, grande região geopolítica que rivaliza e está em guerra com a Eurásia e a Lestásia. São tiranias de grandes espaços. Na Oceânia há (outra vez) classes – a alta, a média e a baixa. A baixa são os proletários, as massas, que têm que ser guiados pelo Partido, servido por funcionários médios, como Winston. No topo da pirâmide estão os dirigentes do Partido.
Setenta e cinco anos depois da publicação de 1984 e quarenta anos depois do futuro imaginado por Orwell, as sociedades comunistas desapareceram ou transformaram-se. A URSS e o comunismo acabaram e foram substituídos, na Rússia, por uma autocracia nacional decidida a afirmar-se como um poder na Eurásia; na China, o maoísmo, bem perto do pesadelo orwelliano, transformou-se num capitalismo nacionalista de direcção central; subsistem algumas microtiranias – como a Coreia do Norte e Cuba –, mas o grande espaço geopolítico totalitário desapareceu.
E no entanto, nas sociedades abertas, livres e democráticas da Euro-América, entre enganosos “ministérios da Verdade” em grandes écrans e não menos enganosas verdades alternativas em écrans privados, vivemos num “grande espaço” – pelo menos virtual – que não é isento de censura, de cancelamento e de condicionamento.
O Newspeak e o news speak, a modificação ideológica da linguagem por decreto, a massificação, simplificação e maniqueização da informação, o Grande Irmão colectivo e o orwelliano crimethink estão tão próximos dos actuais blocos informativos, observatórios, detectores de “discurso de ódio”, algoritmos de cancelamento e “legislação avançada” que, ao ler agora 1984, o vamos inevitavelmente fazer, não já à luz das velhas sociedades comunistas mas directamente das sombras deste nosso “mundo livre”.
Quarenta anos depois do futuro imaginado por Orwell, confrontamo-nos diariamente com novos reflexos da sua profecia distópica. E é também para compreender e combater as novas e inesperadas actualizações de 1984 em 2024 que vale a pena reler o livro.