Há um ano, o país mergulhava nas presidenciais com um vencedor claro, onde restava perceber a influência da abstenção na votação final e qual o possível crescimento de André Ventura, que ligou a sirene ao recolher praticamente meio milhão de votos. Em Janeiro de 2021, afirmei aqui no Observador o meu apoio a Marcelo Rebelo de Sousa, essencialmente por uma questão. O Presidente da República era, até então, o único político da direita que verdadeiramente me representava. Marcelo explicou-o como ninguém nos vários debates que teve (especialmente com Ventura, onde traçou uma linha clara e necessária) e fez aquilo que Rui Rio nunca conseguiu fazer desde que assumiu a liderança do PSD, destacar-se. Recordar as presidenciais no pós-legislativas é fundamental para entender a maioria absoluta do PS. Puxando a cassete atrás, e porque a História é sempre a nossa maior aliada, o Portugal pós 25 de Abril é um país onde existe uma maioria sociológica tendencialmente mais à esquerda, o que acabava por ser natural devido aos 48 anos sombrios de Estado Novo.
Deste modo, sempre foi natural que, para a eleição do Chefe de Estado desde 1976, a direita se apresentasse invariavelmente com um candidato único, com a missão de agregar os sociais democratas à portuguesa (sociais-liberais em toda a Europa), democratas-cristãos e conservadores. Foi assim que Freitas do Amaral esteve à porta de Belém na primeira volta de 1986, derrotado à segunda pelo fechar de olhos autorizado por Álvaro Cunhal e, finalmente, Cavaco Silva chegou à Presidência depois de 20 anos de dois históricos socialistas. No ano passado, esse fenómeno parece ter-se evaporado e apareceram duas novas candidaturas vincadamente mais à direita da de Marcelo, com Tiago Mayan e o já referido André Ventura a representarem dois dos três novos partidos com assento parlamentar, desde 2019. Se nesse artigo, referi a célebre afirmação de Vasco Gonçalves, onde “se estava com a revolução” ou “se estava contra ela”, para descrever uma guerra de polarização tribal que começa a ser visível a olho nu no nosso país, decidi deixar a causa da mesma para outra ocasião, não estando em crer que fosse tão cedo. Menos de um ano depois, tudo o Orçamento levou e o pavor do pântano instalou-se em Portugal. Ativou-se o passa culpas entre PS e os seus parceiros nos últimos seis anos e António Costa começou a abrir o livro tático (aquele que melhor conhece) e com uma jogada criticada por todos fez o all-in e venceu da forma que ninguém esperava.
Nesta fase, presumo que o leitor esteja ainda intrigado acerca da importância de umas presidenciais nos resultados do último domingo, mas a razão é clara. Em 2021, as candidaturas presidenciais puseram em cima da mesa a clareza da vitória política de António Costa, em 2015. Para a posteridade, será um mera reeleição do Presidente dos afetos e das selfies, mas é um marco fulcral no nosso sistema. Até à formação da geringonça, seria impossível pensar que um candidato como Marcelo não teria o apoio de toda a direita, tal como ainda aconteceu no início de 2016, mas em 2021 Costa começou a trilhar o caminho para um cenário que nem o próprio primeiro-ministro porventura imaginaria no dia de hoje. Quem esquece o apoio tácito a Marcelo na Autoeuropa e a indignação que tal gerou à direita? Com esse toque de Midas, Costa deu combustível ao fenómeno Ventura, que captou uma quantidade enorme de voto de protesto pela mera irritação do eleitorado à direita ao saber que um presidente dito de direita tinha o apoio informal do líder do PS. Ao fazer crescer o Chega, Costa esvaziava ainda mais o balão do PSD, que se virou para o caminho da “oposição sensata e responsável”, na tentativa de sugar para si o voto moderado e volátil. Rui Rio, ao descartar a vocação natural do PSD, esqueceu-se que entre o original e a (simulação) de cópia, o povo escolhe o que já conhece, especialmente em tempos de incerteza como aqueles que vivemos.
Subestimar as opções estratégicas de um político que já venceu duas legislativas, duas autárquicas e umas europeias foi o verdadeiro tiro no pé de um partido que se esqueceu de onde vinha e apenas pensou onde queria chegar. E esse local só podia ser o poder, porque nenhum líder partidário do PSD pode perder duas legislativas consecutivas.
Se em 1945, a nossa Amália nos cantava “Lisboa, não sejas francesa”, presumo que António Costa não seja um grande fã de fado porque olhou para o presidente francês e percebeu que ele próprio já tinha sido Macron antes de Macron o ser. Ao quebrar o arco da governação alcançou duas enormes proezas: iniciou o processo de radicalização da direita, associando-a ao governo de Passos Coelho até aos dias de hoje e rasgando definitivamente a manta de retalhos ideológica que sempre foram PSD e CDS e, por outro lado, foi lentamente confundindo eleitorados à esquerda, fazendo com que BE e PCP fossem obrigados a convergir ao centro, largando o seu ímpeto de protesto e crítica ao PS.
Desta forma, quando pôde puxar o gatilho, Costa associou os antigos amigos que o fizeram chegar ao poder à irresponsabilidade e agarrou-se aos créditos que os portugueses maioritariamente lhe atribuíram no combate à pandemia. Assim, a machadada final conduziu ao abraço do urso, com o PS a tirar mais de 344 mil votos aos antigos parceiros e atingindo a inesperada maioria absoluta.
Daqui para a frente, António Costa tem a faca e o queijo na mão e vai poder governar a seu bel-prazer com um PRR para aplicar e um Parlamento onde vai chegar, ver e vencer, e, como cereja no topo de bola, sem debates quinzenais, num acordo com o tecnocrata Rio. Veremos o que acontece, mas é certo que para aqueles que eram mais céticos, 2015 já não volta atrás.