O convite apanhou-me desprevenida, o tema, não: tratando-se de Soares, não. De modo que me apressei a dizer a David Castãno – historiador, investigador e autor de excelentes biografias — que sim, que e tal como Francisco Assis, também apresentaria o seu último livro, justamente sobre Mário Soares. Um livro especial e especialmente bom. Na semana em que passa tanto tempo e tão pouco sobre Abril de 74, trouxe hoje para o Observador as palavras que disse há dias publicamente. Foram estas:
1 Tenho saudades do cidadão Mário Alberto Nobre Lopes Soares, dou pela sua falta na montra do país. No Largo do Rato, no Parlamento, em Belém, nos écrans, no papel de jornal, nas representações oficiais, nas salas, nas ruas. Quer isto dizer na politica, nas instituições, na saúde da democracia, nos destinos da pátria. E sinto a ausência do celebrador da vida. O dr. Soares cantava-lhe hinos, não a dissociava de si mesmo, na glória ou no desastre, no ócio ou na batalha, em família, dentro ou fora de portas. O formidável político foi igualmente um formidável praticante da vida.
A lutar contra Marcelo Caetano, a derrotar Cunhal, a bater Freitas do Amaral, a entrar numa livraria, a comer joaquinzinhos fritos, a tomar banho de mar, o Dr. Soares vivia. E se preso, deportado em S. Tomé ou exilado em França rejubilaria menos, nunca deixou de celebrar a vida enquanto se ocupava a pensar estrategicamente dois futuros, o do país e o seu.
2 Sabíamos que Mário Soares semeara a democracia no caetanismo; festejara a liberdade em 74, liderara a contra-revolução, governara, escolhera, decidira, presidira ao país. Ganhando uma vezes, perdendo outras.
E ao contrário do que levianamente ainda se acha hoje, nada lhe foi fácil. Achávamos também que conhecíamos a convicção, a anti-desistência, a coragem, a desilusão, as vitórias. E também a intuição, a ambição, os combates, a Europa. Sabíamos tudo, dizíamos nós.
Mas David Castãno vem explicar-nos fundamentadamente que talvez não seja bem assim. Não nos traz felizmente um novo Mário Soares – apanharíamos um susto! – mas uma ampliação em quatro grandes quadros de um resistente, um combatente, um permanente, um democrata. Chama-se “Mário Soares e o 25 de Abril – o Essencial” (“Edições 70).
O critério é tão interessante quanto a radiografia do que o autor elege como essencial, olhando para Mário Soares estampado na paisagem portuguesa de aquém e além mar, em Abril de 1974.
O primeiro quadro chama-se “Soares e Marcello Caetano”; o segundo, “Soares, Spínola e a descolonização”; o terceiro, “Soares, Cunhal e o MFA” e o último “A Europa (e os EUA) com Soares”.
3 Memória, história e biografia de um só lance, mas em certo sentido uma descoberta, em certo sentido uma surpresa. Sendo acima de tudo um documento substancial mas desde já indispensável, o livro possui uma fluidez notável na vastíssima informação; na minúcia, no detalhe, no mais complexo enquadramento; fluidez mesmo quando as coisas aparentam ir ser impossíveis, talvez mesmo trágicas; fluidez no rigor do retrato contado e na seriedade do que foi politicamente avaliado pelo autor.
A ampliação de Soares nunca é laudatória, e há nela um duplo e sedutor propósito: por um lado David Castano traz-nos um político plus vrai que nature a quem o quiser reencontrar ou relembrar; e simultaneamente oferece – e eis o que não é pouco! – parte substancial da vida de Mário Soares a quem não possua ainda o conhecimento que a figura justifica, a quem o traga semi-esquecido, a quem ocorra uma imagem – intencionalmente ou não – desfocada.
Destes quatro capítulos, arrematei particularmente um deles embora todos me tenham surgido hoje de notável utilidade política. Lembrarei o primeiro e aludirei ao ultimo, começando esta breve viagem pelo princípio, como devem começar as boas histórias.
4 Até quase ao início da década de sessenta, o dr. Soares era geralmente tido – no regime e na oposição – como um advogado do reviralho. O pai tinha um colégio, Maria Barroso era uma grande actriz do Teatro Nacional, havia dois filhos e ele conspirava com amigos republicanos em escritórios da Rua do Ouro. E no entanto, quem souber ler estes anos como leu David Castano verá a que ponto o dr. Soares esteve sempre lá: mesmo que uns o proibissem, outros o recusassem e outros ironizassem. E mesmo que estando só na penumbra dos bastidores ou até mesmo que pudesse parecer que não estava – por pouco produtivas que fossem as suas incursões na oposição – ele sabia que era preciso começar por estar, para suprir a sua “non existence” política. O ponto de partida mostra-o como autor ou co-autor da Resistência Republicana, depois Resistência Republicana e Socialista; da Açcão Socialista Portuguesa, de documentos, manifestos, cartas clandestinas. De presenças em Congressos da Oposição Republicana, criação de Plataformas de Acção Comum. Mas o advogado do reviralho, porque não era só o advogado do reviralho, queria mais. Queria protagonizar o futuro, quando chegasse o outro futuro. E por isso – e para isso – desacreditou das primaveras de Marcelo Caetano, fundou um partido, publicou um livro chave, interveio na Internacional Socialista, internacionalizando-se a si mesmo em tournées pela Europa e o mundo. Aprendia e intuía, percebendo o essencial antes de outros e agindo estrategicamente antes deles. Mesmo que aos solavancos e com deportações, prisões e exílios pelo meio; mesmo se as polcas com a esquerda comunista e a radical, e as valsas com a social democracia – fossem por vezes dançadas com ambiguidade ou ambivalência – Soares tentava talhar-.se um lugar cativo na política e pré -assinava-o: era o seu e para os seus.
5 Quando por exemplo recusou a mão de Marcelo Caetano – apesar de como afirmou haver no início do caetanismo “ um largo crédito de esperança” – soube recusar essa mão intuindo lucidamente que se a acolhesse “os créditos da oposição seriam o exclusivo de comunistas ou católicos progressistas”. E não existindo nem na política nem no papel, a figura de meia ditadura, a resposta foi não. Acusado pelas declarações feitas um jornalista estrangeiro e consideradas “ofensivas para a honra do país” – e talvez fossem – não se arrependeu, nem as negou: e como tal, foi preso e deportado para S. Tomé. Não soçobrou nessa longínqua Africa tão para si desconhecida, começando a redigir “O Portugal Amordaçado”. No regresso, num golpe de asa político -mas só pode ter o dom do golpe de asa político quem esta dentro dela, a amassá-la – separa-se dos comunistas nas eleições de 1969, criando a CEUD – Comissão Eleitoral de Unidade Democrática com a qual os socialistas concorrem em Lisboa, Porto e Braga. O magro resultado de 5% contra os 18% da CDE, Comissão Democrática Eleitoral – integrada também por não comunistas – não o desanima: semeava uma alternativa política no chão da oposição, chamada “socialismo democrático”. Fazia-o apesar da sua tradição no país ser escassa e “pouco brilhante” como ele próprio concordava. Sabendo que o caminho iria ser duro, produzir a desconfiança, e ser olhado com o soslaio da dúvida, Soares percebe porém o que deve fazer com a sua alternativa: trabalhá-la aqui, anunciá-la longe daqui. É o que faz início da década de setenta viajando pelas Américas, depois pela Europa. Conhece e faz-se conhecido. Mas o que diz fora, continua a desagradar dentro. O veredicto é pesado: ou de novo a prisão, ou o exílio. É a escolha do exílio em França que de novo nos sinaliza o sentido estratégico do combate: ao contrário do que ia ocorrendo nos sectores oposicionistas exilados, Soares não se isola, nem desune, não desperdiça, nem se desperdiça: segue um rumo. A imprensa estrangeira começa a noticiá-lo e a citá-lo. Passa a ter alguma importância, ia a caminho. Entretanto combatia o fastio dos sectores mais jovens cujo fervor revolucionário não lhes consentia a confiança; combatia uma social -democracia julgada demasiado amável e afável com o capitalismo; combatia a hegemonia comunista.
Percebendo que a luta intramuros não era desligável da outra, extra – muros, insiste no combate fora. Como quando – e escolho intencionalmente este exemplo – farejando o perigo, reage com determinação aos concertados e em certo sentido exitosos esforços que o regime operava para uma real aproximação de Portugal à Comunidade Económica Europa e que não podiam senão inquietá-lo. Presente em alguns fóruns e sedes europeias, não hesita: “sem democracia, não!”
Nascia talvez o maior europeísta da oposição à esquerda e em certo sentido talvez o primeiro. Desconhecedor da Africa que falava a nossa língua, o Império nunca o comoveu, nem lhe interessou, a Europa era um porto político e simultaneamente um desejado destino. Essa Europa que começava então a olhar para o político com curiosidade e na qual o cidadão ia tecendo cumplicidades. Ambos estavam certos: valia a pena olhar para ele, valeram muito a Soares, os amigos que lá semeou. (E agora permito-me um parêntesis: também vale muito a pena agradecermos daqui Soares essa Europa onde ele nos fez entrar, décadas depois. Bem e com felicidade. Foi pela mão desse primeiro europeísta da oposição que Portugal lá entrou para ficar. Eis o que diante deste novo livro e desta plateia, eu gostaria que não fosse esquecido.)
6 Por entre revezes, desavenças, traições, sobressaltos, e não poucas contradições na sua “interpretação” do socialismo democrático, um político chamado Mário Alberto Nobre Lopes Soares tinha-se feito a si mesmo durante o caetanismo, apesar de por vezes tropeçando em si próprio. Possuía um partido, camaradas, militantes, simpatizantes e pares no estrangeiro. Quando chegou a Portugal, no final de Abril de 1974, já não era o advogado do reviralho. Mesmo que meses depois fosse começar outra história muito complicada ele agora já se chamava Mário Soares. Foi por isso que a venceu.
7 E finalmente partilho o meu próprio entusiasmo face ao que li de tão interessantemente “dado a saber” no último capítulo deste livro, “A Europa (e os EUA) com Soares”. Trata-se do dr. Soares fora do país, um Soares activando-se na Europa, em nome de uma pátria aflita. Mas trata-se de portas que ele próprio entreabrira, muito anos antes, contra os ventos de outro tempo e as marés de outro regime.
Apesar de três livros feitos com o nosso protagonista ainda me espantei: que trabalhos de Hércules teve o dr. Soares! Cercado como estava Portugal entre o final de 1974 e o ano de 1975, pelas extrema-esquerda comunista e radical e os seus cúmplice militares que trabalho para libertar o país desse cerco, repor o 25 de Abril, fazer regressar a liberdade. Esforço, liderança, coragem. Mas um dia foi preciso mais, o país, dividido ao meio e não só geograficamente, estava pior um fio, as portas da Europa abriam-se agora de par em par para um dos “seus”. O modo como logo os seus pares europeus estenderam a mão ao amigo e disponibilizaram meios ao político certificaram a legitimidade daquela luta e a urgência em a vencer. Eles sabiam que a missão daquele chefe civil de um exército incontável de portugueses tinha de chegar ao destino. E também sabiam que esse “chefe” tinha consigo muito bons generais políticos, tinha atrás dele um país quase inteiro, tinha ao seu lado, militares responsáveis. Chegaram ao destino.
8 Vida fora, muitos foram os que quiseram seguir Mário Soares outros, também muitos, combatê-lo. A todos deve ter valido a pena. Soares valia como escolha e como adversário.
Este livro também vale muito a pena: ler para saber, reler para não esquecer.