Há dias a TVI, pelo menos nas redes sociais, congratulou o Primeiro-ministro pelo seu aniversário natalício. Eu estranhei, mas eu devo ser um bicho cada vez mais raro, já que estas simpatias estão por cá tão entranhadas, que já não se estranham. Querem ver o que é que também não surpreende? A total ausência de referências públicas ao nascimento, há 911 anos, de D. Afonso Henriques, inventor, fundador e primeiro rei de Portugal. Eu sei que a data é discutível e discutida, mas 25 de Julho de 1109 é uma das hipóteses fortes. Também não surpreende que não existam referências à sua autoproclamação régia, precisamente a 25 Julho de 1139; há 881 anos. Ou, no campo das estranhezas nacionais, a celebração oficial da Implantação da 1.ª República a 5 de Outubro de 1910, quando esta data disputa com 1143 o reconhecimento da independência de Portugal pelo Tratado de Zamora. Mas isto já é outra conversa.
O que é que isto nos diz de Portugal? Já lá vamos; antes, porém, um pouco de História, enquanto esta não é cancelada.
De acordo com uma tese defendida por Guilherme de Oliveira Martins[1]: “Em lugar do normal primado ontológico da Nação, Portugal fez-se, essencialmente, da interacção entre o Estado e a Nação, na qual o primeiro teve um papel orientador insubstituível”. Para quem está habituado à ideia moderna de que o Estado é um edifício político construído sobre uma realidade colectiva precedente a que chamamos Nação, esta afirmação parece contraintuitiva. Aliás, Oliveira Martins não o escamoteia e deixa esse conflito de visões claro. Mas, dito isto, toma partido afirmando que “o caso português pode ser referenciado, porém, como pioneiro numa longa e fecunda gestação – [que parte d]a emancipação de D. Afonso Henriques (…) De facto, este pioneirismo fez-se a partir de um Estado que precedeu a Nação – e a construção da identidade realizou-se, a partir do século XII, pela convergência entre a Reconquista e a decadência dos reinos taifas, mediada pela influência moçárabe e pela sua sobrevivência e desenvolvimento, mas também pela constante ânsia de autonomia e de regeneração.”
Pese embora o diálogo que a Nação estabelece consigo própria sobre os eventos que a marcam ao longo do tempo – fazendo lembrar a afirmação de Alexandre O’Neill: “Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo” – concorra para a metamorfose lenta da Nação (e do Estado) e para a construção da sua identidade, esse aspecto não parece resolver cabalmente a questão aqui hoje me interessa discutir e que é o da sua formação ab initio.
O Professor Adriano Moreira[2] afirma que Alexis de Tocqueville, por volta de 1835, escreveu que “é indispensável uma nova ciência da política para um mundo novo”. Ora, para um país fundado no Séc. XII, que poderíamos designar nascido num “mundo velho”, talvez a “nova ciência da política para um mundo novo” seja desadequada para o compreender. Digo “mundo velho” para caracterizar um mundo onde o Feudalismo era a forma de organização política dominante, onde o poder material Papal se começava só então a impor como referência política entre os países e força legitimadora de soberania, onde a agricultura era a actividade económica principal, onde o comércio conhecia formas tão rudimentares que dificilmente se poderia conceber como actividade económica relevante e onde o próprio conceito de Estado-Nação, consolidado em Vestefália, estava longe de ser conhecido.
Neste caso, para interpretar os factos, valerá a pena utilizar outros conceitos que, designadamente, interpelem a fundação da república; e discuti-la à luz da virtù e da fortuna de Nicolau Maquiavel. Aliás, muito em linha com o que nos diz Renan[3]: “acreditando em alguns teóricos políticos, uma nação é sobretudo uma dinastia, representando uma conquista anterior, que foi antes de tudo aceite e depois esquecida pela massa do povo” e “é verdade que a maioria das nações modernas foram fundadas por uma família de origem feudal, que havia contratado um casamento com o solo e que era, de certo modo, um núcleo de centralização”.
Olhemos ainda, antes, um pouco mais atentamente, para lá da tese em discussão, outros contributos – históricos e geográficos – em torno da questão da formação da nacionalidade. Segundo Orlando Ribeiro[4], a formação de Portugal é um problema controverso, que carece de reflexão em torno de cinco pontos fundamentais; a saber: (i) a “formação de um Estado e a sua influência na unidade e individualidade nacionais que não podem deixar de ser, em parte, consequência da vida em comum dentro de uma fronteira excepcionalmente antiga e estável”; (ii) a definição de uma “época a partir da qual se encontram indícios de constituição duma entidade administrativa com tendência para a autonomia e como se transforma ela em Estado independente”; (iii) a existência de “possíveis antecedentes, resultantes de condições de território, de diferenciação e homogeneidade étnicas, de herança de civilização, que possam ter contribuído para a eclosão do futuro espaço político de Portugal”; (iv) a questão das origens “em larga parte comuns e a sua evolução em larga parte também paralela” dos dois Estados ibéricos, e do diálogo entre ambos; e (v) a derrogação de um passado histórico (quase pré-histórico) de uma identidade agregadora, fundadora e legitimadora da nacionalidade.
Os pontos i, ii e iv remetem para a discussão importante, mas já derrogada anteriormente, por se tratar da consolidação da nacionalidade como fruto de diálogos – entre Estado e Nação e entre Estados limítrofes – pós-fundação. Foquemo-nos apenas na fundação; no acto fundador; no momento do seu nascimento; e no seu fundador.
Se a Nação prévia ao Estado se pode alicerçar em aspectos como (i) uma geografia distintiva, (ii) uma etnia única, (iii) uma língua comum ou (iv) um passado partilhado – a partir dos pontos iii e v de Orlando Ribeiro – é justo dizer que Portugal não obedece a estes requisitos. Mais: (i) Portugal tem duas unidades geográficas distintas entre si e homogéneas com as suas contiguidades em território espanhol; mais facilmente se encontram continuidades e semelhanças entre o Sul português com a Andaluzia espanhola, que entre estas e Trás-os-Montes português e Leão espanhol; (ii) etnicamente temos de considerar as diferenças entre mediterrâneos, alpinos e nórdicos[5]; e (iii) não obstante a data de fundação da nacionalidade que se considerar – 1143[6] ou 1179[7] ou ainda outra – qualquer consideração da fundação da nacionalidade no sec. XII contrasta, em matéria da língua, com o mais antigo documento conhecido em língua considerada Português[8], no sec. XIII.
De acordo com Maquiavel, “(…) os Estados que nascem subitamente (…) não podem ter raízes e ramificações, de modo que sucumbem na primeira tempestade. A menos que (…) aqueles que repentinamente se tornaram príncipes sejam de tanta virtù que saibam rapidamente preparar-se para conservar aquilo que a Fortuna lhes colocou nos braços e estabeleçam depois os fundamentos que outros estabeleceram antes de se tornarem príncipe.”[9]
Em face disto talvez não seja excessivo afirmar que Portugal nasce da virtù de D. Afonso Henriques; do “crime fundador”[10] expresso na revolta contra a mãe, mas também do seu engenho na consolidação deste acto fundador, bem como de todo o processo legitimador do acto. Depois da revolta contra a mãe, D. Afonso Henriques inicia um processo de conquista territorial, onde a Batalha de Ourique, de facto e/ou mitologicamente, configura um marco fundamental. Querem outra curiosidade? 25 de Julho de 1139 é também apresentada como data provável desta batalha. Aí, as aparições de Cristo antes da Batalha, estória que fica gravada até hoje na memória colectiva e tem réplicas na literatura, na pintura e noutra formas de consolidação mais ou menos perene, começam por ser o que “rapidamente” D. Afonso Henriques usa “para conservar o que a Fortuna lhe colocou nos braços”; atribuindo-lhe um simbolismo e mitificando a fundação do Estado português[11]. Neste propósito, a utilização desta narrativa pode ser considerada uma expressão do instrumentum regni, cujas referências são várias na Antiguidade e da qual saliento a de Polybius[12]: “que é exatamente isso que, entre outros povos, é objeto de censura (…) que mantém a coesão do (…) Estado”.
E o que é que, então, isto nos diz de Portugal?
Isto fala-nos de um Portugal perdido nas brumas do tempo, cada vez mais esquecido, historicamente alicerçado no Estado, é certo, mas com alicerces fundados pela vontade e pela visão de um homem, feito de misturas étnicas, expansionista e ambicioso. Num país virtuoso e afortunado, cujas raízes são tão fortes, que tem sobrevivido apesar da decadência das suas elites. Fala-nos de um país onde a Igreja, o Exército e o municipalismo ou os seus primórdios – esse corpo intermédio essencial dos países livres – tiveram um papel fulcral na sua consolidação. Mas fala-nos também de esperança. De um país improvável, resiliente e capaz de se inventar e reinventar.
É, portanto, razoável esperar alguém que, menos centrado nas suas pequenas ambições de poder, seja capaz de galvanizar o imenso potencial humano, relacional, de risco, e de abertura ao mundo dos portugueses em favor de Portugal. Se pensam que estou a delirar inertemente sobre o passado estão enganados: estou a falar de futuro, de ambição e de esperança. Nem que para isso tenhamos de nos reerguer, uma vez mais, de mais um colapso económico à vista; como fizemos outras vezes ao longo da nossa longa História. Só falta uma visão e uma liderança. Se pensam, por outro lado, que estou a clamar por um D. Sebastião também estão enganados. Porque não se faz um país só com líderes iluminados (ou irreflectidos), como a nossa história também o demonstra. O que estou é a defender que não se perca a ambição e a vontade de fazer de Portugal um país mais exigente consigo e menos mendicante dos outros e que até lá, e mesmo depois disso, cada um faça o que estiver ao seu alcance para que a mediocridade reinante seja só mais uma memória.
O saudoso Francisco Lucas Pires, numa célebre frase que se colou indelevelmente à memória que dele guardamos, afirmou que ao princípio não era o Estado mas o Homem – era o Homem, o espírito e o barro. Hoje celebramos o homem – D. Afonso Henriques e o que ele representa de ambição –, amanhã, por exemplo, reformamos o Estado, sujeitando-o ao interesse do primeiro. É difícil, mas não tem de ser impossível.
[1] Identidade e Diferença. A Cultura como Factor de Defesa e de Coesão
[2] Num artigo de 25 de Maio de 2019, no Diário de Notícias
[3] RENAN, Ernest (1882), What is a nation.
[4] RIBEIRO, Orlando (1987), A Formação de Portugal, Ministério da Educação – Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, pp. 12 sg.
[5] Ibidem, pag.17: com “estrutura meã a baixa, crânio alongado, face média ou estreita” os primeiros, “crânio mais curto e pela face mais larga” os segundos, e “olhos, pele e cabelos claros e estatura mais elevada” os últimos.
[6] Tratado de Zamora
[7] Bula Manifestus Probatum
[8] 27 de Junho de 1214, data do Testamento de D. Afonso II
[9] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe.
[10] Ibidem, pp 73-74. “Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e quem nem se soube se existiram na verdade, porque há tamanha distancia entre como se vive e como se deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinar-se que a preservar-se; pois um homem que queira fazer em todas as coisas profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a valer-se ou não disto segundo a necessidade.”
[11] Mattoso, José (1993). História de Portugal (Direcção de José Mattoso), II Vol., A Monarquia Feudal (1096-1480). [S.l.]: Círculo de Leitores. p. 70.
[12] “I believe that it is the very thing which among other peoples is an object of reproach, I mean superstition, which maintains the cohesion of the Roman State. These matters are clothed in such pomp and introduced to such an extent into their public and private life that nothing could exceed it, a fact which will surprise many. My own opinion at least is that they have adopted this course for the sake of the common people. It is a course which perhaps would not have been necessary had it been possible to form a state composed of wise men, but as every multitude is fickle, full of lawless desires, unreasoned passion, and violent anger, the multitude must be held in by invisible terrors and suchlike pageantry. For this reason I think, not that the ancients acted rashly and at haphazard in introducing among the people notions concerning the gods and beliefs in the terrors of hell, but that the moderns are most rash and foolish in banishing such beliefs.” Polybius, The Histories, VI 56.