Entre a revolução de 1820, que iniciou o ciclo liberal em Portugal, e o golpe militar de Abril de 1974, que pôs fim ao Estado Novo e ao império ultramarino, há uma história marcada por revoluções, contra-revoluções, golpes de rua, golpes palacianos, eleições, crises, tempos de liberalismo, tempos de autoritarismo e tempos de democracia.

Quando a Terceira República se aproxima do meio século, tendo este ano ultrapassado em longevidade a Segunda – que para os antifascistas mais acirrados não passará nunca de um tempo de trevas e terror indigno do nome de República –, vale a pena uma breve reflexão sobre o 25 de Novembro, o seu significado, as suas razões e os seus limites.

A natureza estrutural da realidade portuguesa dos últimos 200 anos é essencial para perceber como é que dos dezoito meses que vão do 25 de Abril ao 25 de Novembro, resultou um Thermidor político-militar, institucionalizado na Constituição de 1976 e na eleição do General de Eanes, que deu origem a um sistema político-partidário assente num rotativismo entre dois partidos: o PS e o PSD. Um rotativismo com ocasionais muletas à direita e à esquerda, mas dominado (e, nos últimos anos, praticamente monopolizado) pelo Partido Socialista.

Esta solução de estabilidade partidária institucional tem sido feita à custa da perda de condições objectivas de independência do país, com a desnacionalização suave e indolor da economia portuguesa, o empobrecimento relativo dos cidadãos, a emigração dos mais aptos e a resignação da maioria, entre a disseminação discreta mas constante e progressiva de preconceitos ideológicos e instrumentos de cancelamento das resistências.

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Mas a solução “centrista” do 25 de Novembro, dentro das forças em presença depois do 25 de Abril e após a neutralização da Direita, no 28 de Setembro de 74 e no 11 de Março de 75, foi também facilitada por factores históricos que, por ignorância ou estratégia, os inúmeros comentadores e analistas de serviço não costumam mencionar.

Um deles é a obediência mais ou menos acrítica ao poder herdada dos “brandos costumes” do salazarismo, que ocupou o Estado e submeteu a sociedade. Outro, que também contribui para a aceitação tendencialmente resignada dos mandatos do poder central – mesmo quando prejudiciais para a comunidade –, é facto de sermos uma nação muito antiga, sem separatismos, sem regionalismos e sem movimentos de secessão étnicos ou religiosos. Depois, há a natureza periférica do Portugal de hoje em relação à realidade geopolítica e económica europeia e ocidental.

Tudo isto faz com que tentativas de saída do conformismo do Centrão dominante, sobretudo pela direita, sejam dissuadidas à partida. Em crises históricas, como na guerra civil de 1828-1834, foi a mudança política em França e em Inglaterra que determinou a solução interna a favor dos liberais. Foi também assim em 1975.

Em 1975, foram a Europa, os Estados Unidos, a ordem de Ialta em vigor e a dependência económica, financeira, política e cultural do país que determinaram a solução adoptada, contribuindo decisivamente para que o contra-golpe do 25 de Novembro, protagonizado essencialmente pelas companhias de convocados do Regimento de Comandos, não tivesse a natural exploração do sucesso que teria levado a outras soluções.

A terceira via

O processo do 25 de Novembro obedece à tipologia gramsciana de saída por terceira via de duas forças radicais em conflito. No Verão de 1975, e na sequência da radicalização dos golpes ou contra-golpes da Esquerda de 28 de Setembro de 74 e de 11 de Março de 75, o poder dominante era do Partido Comunista, com bom apoio militar e da comunicação social. Após o golpe corporativo e politicamente indefinido de 25 de Abril, o PCP lançara-se na colonização intelectual do MFA e encontrara boa receptividade. Jogava também na aceleração da descolonização, com a entrega dos então territórios ultramarinos às forças políticas que, na época, estavam mais ligadas à União Soviética.

A estratégia era neutralizar os movimentos ou partidos contrários à descolonização ou que não favorecessem uma descolonização incondicional. O movimento militar, que começara por razões corporativas e sem grandes preocupações ideológicas, estava, quanto aos territórios africanos, obrigado a seguir esta orientação; tanto que, ainda com o processo de Angola por concluir, a ideia de continuar a guerra era tabu para a oficialidade.

Os meios para conseguir esta neutralização foram as prisões sem culpa formada do 28 de Setembro, as nacionalizações depois do 11 de Março e a condenação ao exílio e ao silêncio dos recalcitrantes, através de violência verbal e ideológica. Tudo isto, orquestrado pelo PCP, podia ter apoios em círculos radicais, militares ou jornalísticos, mas não correspondia ao sentimento da maioria.

A partir do momento em que os partidos moderados do Regime – o PPD e o PS – deixaram de ser cúmplices dos radicais antifascistas, (até por se verem directamente ameaçados), estavam criadas as condições para que um movimento popular, enquadrado por sacerdotes católicos e por populares e militantes da Direita, pusesse em marcha uma estratégia de ataques violentos ao PCP e às suas sedes, submetendo os comunistas ao mesmo tratamento que geralmente davam aos inimigos nas áreas que dominavam.

Ao mesmo tempo, no terreno militar, formou-se uma coligação anti-comunista, que ia dos oficiais conservadores e patriotas ao chamado Grupo dos Nove. E antigos oficiais milicianos dos Comandos começaram a percorrer o país, mobilizando e formando a respectiva Associação. No exterior, alguns movimentos entraram também em açção, recorrendo a formas superiores de luta.

A política segue regras dialécticas de parada e resposta. A resistência nacional radicalizou-se e o PCP e os seus partidários militares recuaram. A União Soviética era um poder já em decadência e que respeitava as regras geopolíticas de Ialta, e o Partido Comunista Português obedecia às suas directivas. Por maior que fosse o ímpeto revolucionário dos militantes comunistas e de alguns intelectuais e literatos orgânicos, o Secretário-Geral Álvaro Cunhal era um homem realista e sabia que, se houvesse uma guerra civil, a esquerda perderia e o Partido podia ter de voltar à clandestinidade.

É este o quadro do 25 de Novembro e o quadro da acalmação que se lhe seguiu, garantida pelo Grupo dos Nove e pelo PS, poupando o Partido Comunista, que manteria intocado, neutralizando a chamada Extrema-Esquerda e saindo pelo centro das forças em presença. Este centro puxado à esquerda, esta “terceira via”, daria origem ao Centrão, com o Partido Socialista como partido dominante e um Partido Social Democrata que, depois do interlúdio cavaquista e do breve intervalo passista, se resignou a ser a direita do Regime, isto é, a direita da Esquerda: um partido com um programa de esquerda, dirigentes e quadros de centro-esquerda e militantes e eleitores de direita.

É à sombra desta acomodação que tem vivido a Terceira República, cada vez mais enfeudada à esquerda, perante uma opinião pública aparentemente dócil, trabalhada e adormecida por uma comunicação social sempre alinhada com as “boas causas”.

Nada disto é, entretanto, novidade: desde a Revolução de 24 de Julho de 1820, que a História de Portugal é marcada por características e síndromas de dependência periférica e feita de acalmações centristas.

Só com uma mudança no Centro poderá chegar um outro paradigma. Já se esteve mais longe.