Se, como foi noticiado, as eleições legislativas em Espanha se realizarem a 26 de Junho, não será apenas a proximidade de um solstício que as tornará semelhantes às ocorridas no passado 20 de Dezembro. Outras semelhanças, e mais importantes, podem e devem ser notadas. A primeira, e mais óbvia, respeita à probabilidade do resultado das eleições que aí vêm poder ser idêntico ao das que tiveram lugar em finais de 2015. É verdade que o PP poderá ver subir a sua votação em dois, três ou até quatro pontos percentuais, e que o Ciudadanos poderá perder algum peso eleitoral. Mas estas mudanças não terão efeitos no resultado global, nem tornarão a Espanha finalmente governável, neste caso por um partido ou por uma coligação de centro-direita.

Acertar na votação que o PSOE e o Podemos poderão alcançar também não parece tarefa difícil. Ambos os partidos poderão ver a percentagem dos respetivos sufrágios oscilarem entre os dois e os quatro ou cinco pontos percentuais, para “cima” ou para “baixo”, sendo que, tal como no par PP-Ciudadanos, a subida do PSOE poderá dever-se em boa parte a uma descida do Podemos, e uma subida na votação do Podemos poderá resultar de uma quebra na votação no PSOE. Mas uma vez que nenhuma das formações ganhará os votos que permitiria, com o apoio de outras forças políticas de esquerda, nomeadamente nacionalistas, constituir um Governo de coligação sancionado pelas Cortes, também à esquerda, depois de 26 de Junho, como sucedeu depois de 20 de Dezembro, não será praticável a formação de um Governo e o consequente exercício do poder político.

LEGANES, SPAIN - NOVEMBER 27: Ciudadanos (Citizens) leader Albert Rivera and Podemos (We can) leader Pablo Iglesias shake hands during a debate at Carlos III University of Madrid on November 27, 2015 in Leganes, Madrid province, Spain. Around a thousand students attended a debate with the candidates for the Presidency of Spain for Ciudadanos (Citizens), Albert Rivera and for Podemos (We can) Pablo Iglesias. There was also a few thousand further students who had to remain outside due to lack of space. The candidates of People's Party (PP) Mariano Rajoy and Socialist Party (PSOE) Pedro Sanchez were also invited, but failed to attend. According to the organizers, the students association Demos UC3M, this is the first ever debate between candidates for the Presidency of Spain that is held in a Public University. (Photo by Pablo Blazquez Dominguez/Getty Images)

Albert Rivera, líder de Ciudadanos, e Pablo Iglesias, do Podemos, durante um debate em Novembro de 2015 (Pablo Blazquez Dominguez/Getty Images)

É certo que o Podemos – provavelmente em aliança com os comunistas da Izquierda Unida, além de outras alianças que constituiu em várias regiões autonómicas nas passadas eleições e que se poderão repetir em Junho – pode ambicionar, embora tal não seja certo nem seguro, tornar-se na segunda força política espanhola (o que também pode tornar mais difícil um entendimento com o PSOE para tentar governar Espanha com uma coligação de esquerda alargada). Mas se a passagem do PSOE a terceira força política espanhola é um acontecimento que terá algum impacto no sistema político-partidário nacional e autonómico, ainda assim, e no imediato, não tornará necessariamente a Espanha governável por uma grande coligação de três partidos (PP, PSOE e Ciudadanos). Além disso, a ascensão do Podemos a segunda força política espanhola não terá que tornar mais fácil, ou menos complicada, a médio prazo, a formação de um Governo de esquerda…

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Mais difícil será prever a votação que os partidos nacionalistas e protonacionalistas irão recolher. A sua implantação varia muito de região para região, e os sufrágios que poderão arrecadar irão depender da existência, ou não, de voto útil à esquerda ou à direita nos partidos “nacionais” e nas coligações que estes integrem a nível regional (por exemplo, em Dezembro, os comunistas galegos, do Bloco Nacionalista, foram penalizados pela constituição da coligação En Marea que incluía antigos “bloquistas” [a Nova], comunistas [da Esquerda Unida galega] e podemitas, não conseguindo eleger qualquer deputado). Apesar de não terem expressão nacional, porque apenas concorrem nas respetivas regiões autonómicas, a grande dificuldade que existe na constituição de maiorias partidárias que sustentem um Governo – de esquerda ou de direita – poderá dar-lhes um peso na política nacional que não seria inédito (PSOE e PP já governaram com o apoio de partidos nacionalistas bascos e catalães e de partidos regionais). No entanto, se a “tetrarquia” partidária sobreviver às eleições de Junho, o papel dos pequenos partidos nacionalistas e protonacionalistas deverá permanecer discreto.

Finalmente, a abstenção. Se subir poderá beneficiar o PP; se descer beneficiará, ainda que de forma desigual, as demais formações. Porém, nada indica que possa vir a ser uma variável decisiva a 26 de junho.

Uma “guerra” de todos contra todos.

A segunda parecença entre 20 de Dezembro de 2015 e 26 de Junho de 2016 decorre da primeira. Embora também possa ser interpretada como sua causa. Eu explico. Assistir-se-á a uma campanha eleitoral inflamada, sem tréguas e em que todos são inimigos de todos, ou quase. Porque é da natureza das coisas. Ou melhor, este facto decorre das circunstâncias em que evolui, ou estagna, o sistema político-partidário espanhol, ao mesmo tempo que se encontra irremediavelmente contaminado por uma espécie de “darwinismo social” que ameaça liquidar implacavelmente os mais fracos e alçar os mais fortes e capazes ao firmamento da política, aí os mantendo por um período de tempo com duração imprevisível.

Note-se, aliás, que o confronto não será apenas um combate político-ideológico entre esquerda e direita, e entre esquerdas e entre direitas, mas também entre visões distintas e até inconciliáveis do que deve ser a estrutura do Estado espanhol: autonómico ou federal, dentro dos seus atuais limites; ou amputado de territórios e populações. No entanto, para que estas mudanças se possam materializar, haverá apenas duas possibilidades: ou uma revisão radical e, para muitos, impensável da Constituição, para o que seria necessário a criação de uma ampla maioria política e social que não existe e que não se vê que possa vir a existir; ou uma rotura político-constitucional cujos derradeiros efeitos será escusado enunciar mas estão perfeitamente ao alcance da nossa imaginação, mesmo que modesta.

Um enigma chamado Podemos?

E é aqui que se pode elencar a terceira, e talvez última, grande semelhança entre o “20 D” e o “26 J”. A expressão política, social e eleitoral que o Podemos “nacional”, espanhol, e uma plêiade de pequenos Podemos regionais, ou “nacionais”, ganharam na política espanhola, não só se tem mantido como é possível que possa crescer. É verdade que o Podemos e a sua liderança têm cometido alguns erros políticos desde que se iniciou o processo negocial conducente à formação de um Governo sustentado por apoio parlamentar maioritário. Ainda assim, nenhum foi irremediável. É verdade que houve crises internas sérias envolvendo personalidades mais ou menos destacadas do partido, crises essas que poderão ter, simultaneamente ou em alternativa, motivações de natureza política e/ou pessoal. É ainda verdade que há tensões entre o centro e as periferias, não só no Podemos, como entre o Podemos e formações cuja base se encontra e se limita às periferias autonómicas. No entanto, o Podemos mantém-se hoje, já sucedia em Dezembro, e assim deverá continuar em finais de Junho, como uma peça inamovível do e no panorama político espanhol à esquerda do PSOE. Tal decorre da forma como aborda as questões políticas clássicas relativas à organização política, social e económica espanhola, mas também global, e ainda do modo como aponta soluções, exequíveis ou não, para o problema dos nacionalismos históricos em Espanha.

Ora a vida do Podemos, ainda que relativamente curta, demonstra, parece-me, que a política espanhola e as mudanças por si sofridas decorrem de questões que são inatas à história recente e remota do país vizinho, às suas especificidades, e não propriamente dos efeitos profundamente nocivos produzidos por uma crise financeira que não foi prevista e depois seria deficientemente encarada por José Luis Rodríguez Zapatero. Uma crise que forçou um “resgate” internacional a uma parte da banca espanhola que a generalidade dos contribuintes teve que pagar e ainda está a pagar, mas cujo impacto na natureza e alcance das mudanças políticas em Espanha parece ser limitado e delimitável. Ou seja, o “resgate” foi talvez condição necessária para que o panorama político e social espanhol mudasse e o Podemos emergisse e se consolidasse. No entanto, não foi condição suficiente.

O impasse político que a Espanha neste momento vive e que se deverá estender para além de 26 de Junho – o que só não acontecerá totalmente se PP, PSOE e Ciudadados formarem uma grande coligação que garanta a constituição de uma maioria que apoie duradoiramente um Governo tripartido – decorre da forma como se bloqueou a resolução da questão nacional – ou das questões nacionais (Espanha versus Galiza, versus País Basco, versus Catalunha) –; da impotência mostrada pelos políticos para resolverem o problema do desemprego – o mais sério problema social espanhol – e suas ramificações; e, finalmente, da incapacidade política (voluntária?) demonstrada para tornar o problema da corrupção da classe dirigente (políticos, funcionários públicos, banqueiros, empresários, profissionais liberais…) numa realidade com proporções aceitáveis e não quase pornográficas como acontece atualmente, com a agravante, para a estabilidade e legitimidade do sistema político, de afetar predominantemente os partidos históricos da democracia espanhola instaurada há cerca de quarenta anos.

Visto isto, é claro que o Podemos é igualmente filho de novas formas de comunicação e de ação política, mas também, como muitas outras forças da esquerda radical espanhola, do extremismo ideológico nascido e consolidado, paulatinamente, a partir da segunda metade do século XIX. No passado, este extremismo, quase sempre tão violento nas ações como na retórica, foi derrotado, normalmente de forma implacável, para não dizer brutal. No futuro não sabemos o que sucederá. Mas há duas realidades que não podem ser iludidas: não será pelo e com o extremismo que triunfará a agenda política do Podemos e da sua constelação de aliados, muitos deles que aliás o precedem historicamente; com o crescimento do extremismo e a erosão política e moral dos partidos políticos que governaram Espanha desde o início da década de 1980, o país vizinho dificilmente será governável nos próximos tempos. O que não significa que ainda assim, e paradoxalmente, não possa ser governado.

Fernando Martins é historiador e professor do Departamento de História da Universidade de Évora.