A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que, por força do impacto da crise pandémica e da crise económica por esta originada, o desemprego possa vir a sofrer um aumento global de 25 milhões de cidadãos em todo o mundo. Em Portugal, o desemprego pode atingir níveis históricos, tendo já aumentado nos últimos dois meses cerca de 10% face ao período homólogo.

A brutalidade desta circunstância não nos pode deixar nem desanimados, nem resignados.

Antes, deve convocar-nos para uma séria reflexão que conduza não só ao desenvolvimento de políticas ativas de proteção do emprego, como de salvaguarda dos rendimentos das famílias.

De acordo com a OIT o impacto no desemprego da crise que corajosamente enfrentamos, poderá ser fortemente mitigado se forem desenvolvidas políticas ativas e coordenadas a nível global, de estímulo económico e de proteção do emprego e dos rendimentos.

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Todavia, é evidente que a crise económica não se revelará da mesma forma em todos os setores da nossa comunidade. Os setores socialmente mais vulneráveis serão especialmente afetados e encontram-se particularmente desprotegidos.

Nesse sentido, esta crise não pode convocar-nos apenas para a discussão de políticas de promoção do investimento, do reforço da competitividade da nossa economia e de reforço da tesouraria do nosso tecido produtivo. Necessariamente tem de nos convocar para uma discussão estruturada, séria e descomplexada sobre as políticas de proteção social.

É dever fundamental do Estado, tutelar e assegurar a proteção e integração dos cidadãos que se encontram em situações de especial vulnerabilidade e desproteção na nossa comunidade. Este dever primário do Estado decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, da ideia de Estado Social e da concretização do conteúdo mínimo dos direitos fundamentais dos cidadãos. Sempre que se encontra em falência ou em crise a resposta pública a situações desta natureza é a própria ideia de Estado Social que se encontra posta em causa.

Ora, esta crise não pode significar que a nossa comunidade falhe com aqueles que mais reclamam a nossa intervenção.

Do mesmo modo, que na sequência da II Guerra Mundial as lideranças políticas europeias foram capazes de redefinir a natureza, os fundamentos e os instrumentos de intervenção social e de apoio aos setores mais vulneráveis, fundando as sólidas bases em que ainda hoje assenta o Estado Social, também hoje se reclama uma refundação do modelo de proteção social.

Tal como no final da primeira metade do século XX, vivemos atualmente uma profunda transformação cultural, social e económica.

Os mecanismos de organização do trabalho alteraram-se profundamente, as taxas de natalidade baixíssimas no mundo ocidental ameaçam a pirâmide etária e a sustentabilidade do sistema de pensões e a eclosão de movimentos populistas com discursos radicais, ameaçam o nosso modelo de organização social e política.

Por outro lado, a crise financeira que recentemente vivemos demonstrou que a canalização de recursos para o sistema económico e financeiro através dos mecanismos tradicionais, nem sempre significa a garantia da proteção dos rendimentos das famílias e dos indivíduos.

Reclama-se, assim, que os decisores políticos tenham a lucidez, a visão e a coragem de implementarem uma Nova Geração de Políticas Sociais.

Que tenham a lucidez de compreender as profundas transformações que vivemos assumem um impacto profundo na sustentabilidade do Estado Social.

Que tenham a visão de construir um modelo de resposta social que afirme e aprofunde os valores civilizacionais da nossa comunidade – a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a capacitação para a autonomização dos cidadãos face às prestações sociais e a sua plena realização e bem-estar.

Que tenham a coragem de destruir ideias feitas e complexos ideológicos e afirmem políticas sociais que assegurem não só a coesão social, a capacidade de realização individual dos cidadãos, mas também que contribua para o reforço dos sistemas democráticos e para a afirmação dos nossos valores civilizacionais.

Os populismos, (de esquerda e de direita), alimentam-se das desigualdades sociais. O eventual reforço das desigualdades por força da crise, significaria a falência das políticas moderadas e um retrocesso civilizacional.

Combater as desigualdades sociais, lutar para que os indivíduos e as famílias possam realizar os seus projetos de vida e alcançar bem-estar social, significa não só cumprir os valores civilizacionais da nossa comunidade, mas também afirmar a democracia como o sistema político adequado à salvaguarda da nossa liberdade e da nossa realização social e política.

Todavia, os modelos sociais assistencialistas em que se multiplicam prestações sem coerência, em que a burocracia do sistema consome recursos necessários para as políticas de coesão, em que as perversidades dos modelos de prova de rendimento afastam demasiados cidadãos do mercado de trabalho e em que o estigma social é crescente, esgotaram a sua utilidade.

Desde logo, é duvidosa a sua eficácia no que respeita à finalidade de integração dos cidadãos beneficiários, (não há, na verdade, dados oficiais que permitam retirar qualquer conclusão), como não permitem assegurar a garantia de situações de vida com dignidade, liberdade e autonomia. Note-se que em Portugal, o valor médio da prestação Rendimento Social de Inserção em 2019 foi de €117,12 por pessoa e €259,42 por agregado familiar, valor naturalmente insuficiente para assegurar a satisfação das necessidades mínimas dos seus beneficiários.

Se as primeiras políticas sociais assentavam numa ideia assistencialista e condicional, a Nova Geração de Políticas Sociais deve assentar numa lógica de universalidade incondicional.

Se as atuais políticas sociais são acompanhadas de uma tremenda complexidade burocrática em que os que mais precisam são frequentemente engolidos pelas teias do sistema que se alimenta a si próprio, a Nova Geração de Políticas Sociais deve afirmar-se pela sua simplicidade de aplicação, não descurando a necessária fiscalização na sua atribuição.

Se as atuais políticas sociais não encontram no sistema fiscal progressivo um instrumento de correção das desigualdades sociais, a Nova Geração de Políticas Sociais encontrará no sistema fiscal um instrumento determinante.

É neste contexto que me parece profundamente adequada a discussão a propósito do Rendimento Básico Incondicional, (RBI), como um instrumento potencialmente promotor da liberdade individual, da capacitação e autonomização dos indivíduos, da coesão social e da afirmação da dignidade da pessoa humana como princípio estruturante das políticas sociais.

O RBI como prestação universal teria a imediata vantagem de garantir a salvaguarda do rendimento das famílias, promovendo e potenciando a liberdade individual na plena realização dos projetos de vida de cada cidadão. Por outro lado, na medida em que se afirmaria como universal e incondicional não criaria incentivos perversos que tantas vezes afastam os beneficiários de prestações sociais do mercado de trabalho.

Afirmando-se como uma prestação universal significaria a afirmação da dignidade da pessoa humana retirando qualquer efeito estigmatizante às políticas de apoio social. E por fim, garantiria, num momento de profunda crise económica que os apoios públicos alcançariam a economia real, não se perdendo algures no sistema burocrático do Estado ou no sistema financeiro.

Conheço bem as objeções que o RBI tem frequentemente suscitado, designadamente as dificuldades do seu financiamento, a circunstância da universalidade não garantir uma distinção entre os que mais precisam e aqueles que efetivamente não reclamam apoio do Estado, assim como os eventuais custos de transição de regime.

Todavia, não ignoro não só as suas potencialidades, como a fragilidade de algumas das objeções.

Na verdade, a sua universalidade não significa que no fim de contas todos os cidadãos a ele tenham acesso. O sistema fiscal sempre corrigiria através de um aprofundamento da sua progressividade o rendimento distribuído aqueles cujos rendimentos não o justificaria.

O RBI funcionaria, nesses casos, como um empréstimo do Estado aos cidadãos uma vez que na liquidação do IRS muitos dos contribuintes devolveriam parte ou a totalidade do valor recebido. Na verdade, é justamente o que atualmente acontece de modo inverso. Através da retenção na fonte em sede de IRS uma grande percentagem de cidadãos financia o Estado que consolida os acertos financeiros com os contribuintes na nota de liquidação de IRS. Com o RBI o sistema manteria a mesma filosofia, invertendo-se.

Relativamente ao alegado elevado financiamento de uma medida desta natureza, vários estudos têm apontado que a implementação de tal medida em Portugal, poderia significar em valores líquidos algo como 1,6%-1,8% do PIB. Ora, de acordo com a PORDATA em 2017 a despesa com subsídios e apoio social em percentagem do PIB representou em Portugal cerca de 15%.

Por fim, e no que diz respeito aos custos de transição não há como negar o seu impacto, designadamente no que diz respeito aos direitos adquiridos. Todavia, a simplicidade que um sistema desta natureza introduziria e o potencial em termos de bem-estar económico e social que geraria não nos pode permitir esmorecer perante tais desafios.

Não creio que o RBI possa ser considerado o modo de encontrarmos as soluções definitivas para os desafios que se colocam no domínio das prestações sociais do Estado e na resposta aos mais vulneráveis. Todavia, parece-me que é fundamental que, sem complexos ideológicos, ponderemos o RBI e avaliemos a sua aplicabilidade e impacto nesse domínio. Não ignorando as dificuldades e desafios que a sua aplicação e implementação implicariam, mas não esquecendo o seu potencial.

Estou profundamente convicto que a atual crise, tal como sucedeu em crises anterior, poderá constituir uma singular oportunidade para afirmarmos os nossos valores civilizacionais, reforçarmos a coesão social e reinventarmo-nos enquanto comunidade.

Mas, só alcançaremos esse propósito se destruirmos barreiras, abalarmos o convencionalismo e assumirmos com determinação, coragem e visão de longo prazo os desafios que as novas gerações nos colocam.

Esse não pode deixar de ser o nosso propósito!