A única reforma fiscal estruturante realizada desde o 25 de abril de 1974 concretizou-se em 1989. A referida reforma assumiu o propósito essencial de adequar o sistema fiscal ao enquadramento político-constitucional decorrente da Constituição de 1976 e assegurar a harmonização do normativo fiscal português à Comunidade Económica Europeia a que, entretanto, tínhamos aderido.

A reforma fiscal referida significou uma evolução extraordinária no seu tempo. Instituiu um imposto único progressivo sobre o rendimento (substituindo o sistema cedular-misto) e introduziu o imposto sobre o valor acrescentado (substituindo, entre outros, o imposto sobre transações). Seguindo a opção constitucional, o sistema fiscal assumiu o propósito de diminuir as desigualdades e de garantir a redistribuição da riqueza através da tributação, de acordo com a capacidade contributiva dos cidadãos e das famílias.

Após a referida profunda reforma do sistema fiscal operada nos anos 80 do século passado, o nosso sistema fiscal foi sofrendo várias alterações, mas nenhuma reforma de fundo e estruturada foi implementada em Portugal, não obstante praticamente todos os governos a anunciarem e proclamarem no início das legislaturas.

Nos últimos 30 anos, foram introduzidas várias e relevantes alterações no sistema fiscal, contribuindo, sobretudo, para a eficiência da máquina fiscal, para o combate à evasão fiscal, para a simplificação das regras de tributação e para a modernização do sistema.

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Todavia, nenhuma dessas alterações encarou, refletiu, ou considerou,verdadeiramente,  o coração do sistema – a tributação de acordo com a capacidade contributiva dos cidadãos e das famílias, a diminuição das desigualdades e a redistribuição da riqueza.

De resto, um sistema fiscal que prometeu aos portugueses afirmar-se como um instrumento determinante no combate às desigualdades sociais, promotor da redistribuição da riqueza, foi-se progressivamente afirmando como um acelerador das desigualdades e da perpetuação da incapacidade de afirmação da classe média em Portugal.

Na verdade, a constante proliferação dos impostos indiretos, o aumento dos impostos especiais sobre o consumo, o aumento constante das taxas marginais da tributação do rendimento decorrente do trabalho, as taxas liberatórias que incidem sobre outros rendimentos que não o trabalho, bem como o aumento da concorrência fiscal internacional, foi contribuindo para que os proclamados propósitos do sistema fiscal se fossem distanciando da sua plena concretização.

A carga fiscal em Portugal tem vindo a crescer significativamente, representando atualmente 36.9% do PIB. Mas o que é verdadeiramente impressivo é que os impostos sobre o rendimento e património representaram em 2018 e em 2019 cerca de 10% do PIB nacional.

De acordo com a PORDATA, o peso dos impostos per capita representou, em 2019, 7617,50 euros. Ora, no ano 2000, o peso dos impostos, em média, no orçamento de cada português era de 4158,80 euros.

Se tomarmos em consideração que o peso dos impostos resulta, sobretudo, da tributação sobre o trabalho, facilmente constatamos que o sistema fiscal, no modo como está concebido, significa um bloqueio tremendo a que a classe média portuguesa, as famílias, os empreendedores, os profissionais liberais e os pequenos empresários, possam afirmar-se como o verdadeiro motor da transformação que Portugal reclama.

Acresce, que a crescente concorrência fiscal internacional oferece aos que têm mais recursos, e cujos rendimentos maioritariamente não são de trabalho mas de outra natureza, múltiplas possibilidades de encontrarem refúgio fiscal que lhes permite o alívio da carga tributária.

Uma comunidade que procura encontrar caminho para a construção de uma verdadeira igualdade de oportunidades, não pode baixar os braços perante esta realidade.

Não podemos persistir aceitando que a carga fiscal seja altamente penalizadora da classe média e das famílias, limitando a capacidade de concretização dos seus projetos de vida.

Não podemos persistir aceitando que o sistema fiscal não prossiga as suas funções essenciais de mitigação das desigualdades, antes as perpetue.

Não podemos aceitar um sistema fiscal que persista tributando de forma altamente penalizadora o rendimento do trabalho e o consumo, esquecendo a tributação das heranças e aliviando a tributação do património e de outras fontes de rendimento.

Na verdade, o sistema fiscal, como o conhecemos, já não se adequa aos desafios que enfrentamos enquanto comunidade.

Reclama-se assim, não alterações pontuais e conjunturais do sistema com vista, na maioria das vezes, a satisfazer o galopante aumento das despesas do Estado e sempre com o mesmo resultado – aumento da carga tributária -, mas uma profunda reforma do sistema fiscal.

Uma reforma que simplifique o sistema fiscal, que promova o investimento e a poupança, que garanta a tributação de acordo com a capacidade contributiva dos cidadãos e das famílias e que se afirme como um efetivo instrumento na promoção da igualdade de oportunidades.

Nesse sentido, não podemos ignorar que, ao contrário do que sucedia nos anos 80 do século passado, as fontes de rendimento diversificaram-se profundamente, não podendo um sistema fiscal equitativo tributar progressivamente apenas o rendimento proveniente do trabalho. É essencial que se analise o cidadão e a família de forma global, encarando as diversas fontes de rendimento que assumem, bem como as despesas fundamentais à concretização dos seus projetos de vida.

Por outro lado, é fundamental encarar o sistema fiscal como instrumento promotor de uma estratégia de afirmação da nossa comunidade. O sistema fiscal deve ser estruturado de acordo com uma estratégia nacional de desenvolvimento económico e social do país e não como o SOS a que o Estado recorre para fazer face ao constante aumento das suas despesas.

Num momento extraordinariamente difícil como o que vivemos, em que as finanças públicas se encontram sob uma enorme pressão, é central que se encare de forma estruturada o papel que o sistema fiscal deve assumir como fator de saída para a crise, de atenuação das desigualdades e de promoção do investimento. É absolutamente fundamental que não se encare, como tem sucedido em crises anteriores, o sistema fiscal apenas como instrumento para fazer face às galopantes necessidades de tesouraria do Estado, promovendo e potenciando as desigualdades sociais entre os portugueses.

As finanças públicas não podem sobrepor-se nem ao projeto comunitário que devemos aspirar construir, nem à efetivação da mitigação das desigualdades sociais, ou da promoção do investimento privado. Não podemos persistir pactuando com a ideia, que nos últimos 30 anos tem sido comum em Portugal, nos termos da qual sempre que há crise se aumentam impostos, sobretudo os mais susceptíveis de aumentar rapidamente as receitas fiscais – impostos sobre o rendimento do trabalho e sobre o consumo -, penalizando sistematicamente a classe média e os pequenos empresários.

A ausência de discussão sobre o tema, de forma serena, ponderada e estruturada, associada à ausência de ímpeto e visão reformista deste Governo não são, contudo, sinais animadores. Cabe-nos não desistir, não esmorecer e colocar as nossas energias na reforma que garanta a consolidação do projeto comunitário que aspiramos coletivamente.