A regeneração do sistema político é um tema central a que a nossa comunidade tem necessariamente de dar resposta. Não só no que respeita ao modelo de organização e de intervenção dos partidos políticos, mas também no que concerne ao modelo do nosso sistema eleitoral, bem como no que à reconciliação entre eleitos e eleitores diz respeito.
A este propósito, não podemos esquecer, ainda, um tema incontornável que se tem encontrado na penumbra da discussão pública, que se tem prestado aos maiores equívocos e que se configura como uma matéria central na arquitetura do sistema político em Portugal, – a descentralização administrativa e o modelo de organização da gestão do território.
Portugal é um país médio no contexto europeu, tremendamente diversificado, mas com assimetrias regionais extraordinariamente acentuadas.
Ao contrário das promessas do nosso sistema democrático, as assimetrias regionais, quer no que respeita ao emprego, à competitividade, à coesão económica e social, à distribuição da riqueza e poder de compra, às qualificações ou à capacidade de atrair investimento e serviços públicos, acentuaram-se enormemente nos últimos 30 anos.
A análise do índice relacionado com o poder de compra dos cidadãos, conduz à conclusão que, em 2019, apenas cinco municípios, (Lisboa, Porto, Sintra, Vila Nova de Gaia e Cascais), concentravam 21.65% do total do poder de compra total do território nacional. Só o município de Lisboa concentrava, em 2019, 9.6% do poder de compra total do território nacional.
Se a estes cinco municípios juntarmos Oeiras e Loures, obtemos mais de um quarto (25.88%) do poder de compra total do território nacional concentrado numa área territorial correspondente a 1% do território.
Aprofundando a análise, concluímos que 50% do poder de compra do território nacional se encontra concentrado em 26 municípios portugueses, que representam apenas 6% da área total do nosso território.
Mais impressiva se torna a conclusão referida, se tivermos em linha de conta que nos referidos 26 municípios se encontra concentrada 45% da população residente em Portugal e 47% das empresas nacionais.
Sem surpresa se constatará, que o INE tenha afirmado em 2019 que as disparidades regionais aferidas em função do PIB se têm vindo a acentuar de forma preocupante. Comparando o PIB da Área Metropolitana de Lisboa (AML) e da Região Norte com a média nacional, por exemplo, constata-se que enquanto o PIB da AML ultrapassa a média nacional em 130,2%, o Norte encontra-se 15% abaixo da média nacional.
De facto, quando discutimos os bloqueios ao crescimento e ao desenvolvimento regional não podemos ignorar o facto de sermos um dos países mais centralizados da OCDE e da União Europeia.
Se analisarmos a este propósito, o peso da despesa pública da administração local e regional no total nacional, em comparação com os países da OCDE e da UE, concluímos que nos encontramos muito longe das boas práticas dos nossos parceiros. Em 2015 (últimos dados disponíveis), a média da OCDE e da UE era, respetivamente, 40,3% e 33,2%, quando em Portugal esse valor não ultrapassou 12,3%.
Outro exemplo dos elevados níveis de centralização do Estado português é a concentração na Área Metropolitana de Lisboa das compras de bens e serviços por entidades das administrações públicas (49% do total em 2016), bem como das vendas às administrações públicas por empresas sedeadas naquela região (62% do total das vendas em 2016).
Ora, um dos grandes desafios que se colocam a Portugal é a atenuação das assimetrias regionais referidas.
Portugal não pode deixar de se afirmar como um país no qual a igualdade de oportunidades se configure como uma realidade em qualquer ponto do território nacional. Não podemos observar, passivamente, ao crescimento desigual e profundamente assimétrico do nosso território que continua perigosamente a inclinar-se para certas regiões.
Não podemos deixar de aspirar a construir uma comunidade em que os cidadãos possam participar nas decisões que lhes dizem respeito, com níveis de decisão relativas à gestão das políticas de desenvolvimento do território próximos das áreas territoriais onde produzirão impacto, não só com benefícios na eficácia das mesmas, mas também com tremendos benefícios na qualidade da democracia.
A discussão a propósito da criação de níveis regionais de administração tem assumido uma importância central em vários países da UE nos últimos anos. Não só por se reconhecer a necessidade de se desenvolverem políticas próximas das populações, mas também pelo fato de se considerar que a existência de um nível regional de administração potencia a coesão territorial, a qualidade da democracia e o crescimento económico.
De resto, vários estudos da OCDE têm apontado para a conclusão de que existe uma correlação direta entre o desenvolvimento económico e os níveis de descentralização, bem como uma relação direta entre a diminuição das assimetrias regionais e os níveis de descentralização administrativa dos Estados.
O debate público em Portugal sobre a criação de um nível regional de administração tem-se prestado a vários equívocos – uns voluntários e outros involuntários – criando-se, frequentemente, um anátema sobre o tema que não permite a ponderação serena das várias alternativas em discussão.
Ou porque se alega que a criação de Regiões Administrativas significaria uma quebra da unidade nacional, despertando sentimentos regionais exacerbados (que, de resto, a nossa longa história de cerca de 900 anos, demonstra não existirem). Ou por que se recorre ao fantasma de que um processo desta natureza multiplicaria cargos políticos, ou forçosamente significaria um aumento da despesa pública.
Na verdade, importa ter presente que, tal como tem sido demonstrado em vários estudos, a instituição das Regiões Administrativas em Portugal, tal como a Constituição prevê, não significaria necessariamente o aumento da despesa pública, nem significaria uma fragmentação das funções do Estado, nem significaria o aumento desproporcional de cargos políticos.
A realidade é que o custo das decisões que tem conduzido a que as assimetrias regionais se acentuem é incomensuravelmente superior ao custo de implementação da regionalização em Portugal. Por outro lado, como tem sido demonstrado, a implementação da regionalização assumiria plena neutralidade nas finanças públicas portuguesas, uma vez que o orçamento das regiões seria resultante das competências transferidas do Estado e dos municípios, com natural transferência direta dos orçamentos daquelas entidades para os orçamentos das regiões.
A ideia de que a regionalização poderia significar uma fragmentação do poder do Estado resulta de um equívoco e de uma confusão conceptual.
Sendo certo que regionalização é um conceito abrangente querendo significar várias realidades que configuram um reforço dos poderes das regiões, (regionalização por desconcentração, regionalização por reforço da cooperação intermunicipal, regionalização por descentralização e regionalização política), a Constituição da República Portuguesa prevê a regionalização como um processo de descentralização administrativa sem qualquer componente de natureza política.
A verdade é que, não obstante o cenário de reforço significativo das assimetrias regionais persistimos em Portugal sem desenvolver um debate sério sobre as estratégias adequadas a aproximar as oportunidades dos territórios.
Persistimos sem discutir, de forma ponderada, a eventual deslocalização de serviços públicos deslocando massa critica para as regiões que mais dela necessitam.
Persistimos sem desenvolver a necessária reforma eleitoral que permita contrariar a circunstância de mais de metade dos deputados à Assembleia da República (125) serem eleitos por apenas quatro distritos (Lisboa, Porto, Braga e Setúbal), enquanto que sete distritos (Vila Real, Bragança, Guarda, Castelo Branco, Portalegre, Évora e Beja), em conjunto, não elegerem sequer metade dos deputados eleitos pelo círculo eleitoral de Lisboa, deixando assim largos territórios e população sem representação.
E, persistimos adiando a implementação das regiões administrativas que a Constituição impõe.
Perante este quadro, o Governo, com a total passividade do PSD e com a conivência de Belém, aprovou recentemente uma alteração ao método de eleição dos presidentes das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) num modelo politicamente desadequado e juridicamente bizarro colocando assim, previsivelmente, na gaveta nos próximos 10 anos a reforma da gestão do território que o país exige.
O diploma aprovado pelo Governo, que mereceu (até ao momento) um ensurdecedor silêncio do PSD e a promulgação do Presidente da República, não cria um verdadeiro nível de governo regional, limitando-se a definir um método de eleição dos membros das CCDR.
O Governo, ao invés de desenvolver uma reforma séria, estruturada e ponderada, que envolvesse os órgãos de soberania, os autarcas e os cidadãos, criando condições para o desenvolvimento de políticas de gestão do território que potenciem a coesão social e territorial, preferiu aprovar um diploma com o propósito de satisfazer os interesses dos dirigentes socialistas.
Preferiu aprovar um diploma com o foco no Largo do Rato e não nos verdadeiros interesses e anseios das populações dos territórios e das populações persistentemente esquecidas. Com esta alteração o Governo continua fazendo de conta que encara frontalmente o problema da coesão territorial e combate as assimetrias regionais.
Como a nossa história recente bem demonstra, pior que a não implementação de uma reforma, é a aprovação de regimes que aparentam reformar problemas estruturais, mas que na verdade nada mudam. É que perante a não implementação de uma reforma os decisores sempre poderão, a qualquer momento, desenvolver as necessárias diligências com vista à sua implementação. Perante uma reforma “de faz de conta” o país continua adiando a urgente resolução dos desafios que continuamos a enfrentar.
O Governo persiste no caminho das reformas “de faz de conta”, continuando teimosamente a adiar Portugal. Será que ainda alguém consegue acreditar na vocação reformista deste governo?