Em rigor histórico, esta é  a quarta pandemia, depois da Praga de Justiniano (século VI), da Peste Negra (século XIV) e da Pneumónica ou Gripe Espanhola (1918-1920). Como o próprio nome indica, pandemia é uma epidemia que cai sobre todos,  que atinge o mundo, pelo menos o mundo conhecido e habitado – o mundo mediterrânico, o Médio Oriente e a Ásia, no século VI; a Ásia, o Norte de África e a Europa, no século XIV; e os cinco continentes no século XX e agora no século XXI.

Mas em todas estas pandemias, as áreas ou regiões são atingidas de modos diferentes, em termos de infectados e de vítimas mortais. A Pneumónica, Gripe Espanhola  ou Influenza, por exemplo, matou muito mais gente na Ásia (na Índia, então colónia britânica) do que na Europa e nos Estados Unidos. Embora ainda hoje haja uma grande polémica quanto ao número de vítimas mortais da pandemia do século XX (com discrepâncias de 20 para 100 milhões), o consenso aponta para que na Europa as mortes tenham rondado os 2,5 milhões e nos Estados Unidos os 700.000.

Escreve John M. Barry, autor de um excelente livro sobre o tema (The Great Influenza: The Epic Story of the Deadliest Plague in History, New York, Viking Books-Penguin, 2004), que a Pneumónica foi a primeira grande epidemia a acontecer num tempo em que os germes, os vírus, misteriosos como sempre, já se enfrentaram com alguma ciência e tecnologia, graças  ao trabalho desenvolvido na segunda metade do século anterior por Pasteur, por Koch, por Roentgen, aos estudos dos químicos e virologistas, à existência de algumas vacinas e de alguns aparelhos e à  melhoria da prevenção, da terapia e dos serviços hospitalares.

Foi, mesmo assim, um combate desigual. E Portugal foi, proporcionalmente, um  dos países mais atingidos, tendo registado cerca de 140.000 mortos (22 ou 23 mortos por cada mil habitantes). Fomos, a seguir à Itália e à Bulgária, os recordistas de vítimas.

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E a actual pandemia, como se distribui regionalmente, ou melhor, continentalmente? A África é, para já,  o continente menos tocado directamente pela pandemia, mas que pode vir a ser o que mais vai sofrer as suas consequências.

Olhemos então esta pandemia com olhos de razão e compaixão, coisas que  têm vindo a faltar quer aos apocalípticos, quer aos negacionistas (que os há, até onde não devia haver):

O tempo de chegada, as condições climáticas e sociais, a natureza dos povos e dos regimes e  a capacidade das estruturas médico-terapêuticas têm contribuído para que a distribuição regional, ou geopolítica, do Covid-19 tenha sido, até agora, desigual.

A pandemia começou na China e o governo chinês, por razões de Estado, de prestígio e de segurança, escondeu interna e externamente e penalizou quem dela quis falar. Depois apostou em força e aparato na liderança nacional e mundial do combate ao vírus.

Os contaminados seguintes, o Japão, a Coreia do Sul,  Taiwan, Singapura e, no seu regime especial, Hong-Kong e Macau, souberam defender-se. Na Europa, a Itália e a Espanha facilitaram, tal como a Grã-Bretanha. Os países de Visegrado parecem controlar melhor a epidemia. A França anda a meio caminho. Aos Estados Unidos chegou mais tarde, mas com muita força. Portugal não será o milagre apregoado mas, até agora, tem corrido menos mal.

E África? O que é que se vai passar em África e nas regiões tropicais e subtropicais de África? Estarão mais protegidas porque, diz-se, “o coronavírus não gosta do calor”?

Em 22 de Abril havia cerca de 25.000 casos e 1200 mortos registados em África, o que é manifestamente inferior aos números para a Ásia e para as Américas a sul do Rio Grande.

Olhando para um mapa da epidemia em África, vemos que a grande incidência por ora é na Argélia, Marrocos e Egipto, isto é, na África do Norte e no Magreb e na República da África do Sul. Os três países do Norte de África e a República da África do Sul têm mais de metade dos casos e dos mortos.

Mas a epidemia no Continente vai com certeza ter grandes repercussões, sobretudo de ordem indirecta, isto é, económicas, sociais e políticas; repercussões que não interessam apenas aos africanos mas que nos devem interessar a todos, particularmente ao chamado Ocidente, ou à Europa e aos Estados Unidos. E devem interessar-nos tanto por boas razões – de solidariedade humana e cristã – como por razões menos boas – de interesse político-económico.

Quando a pandemia chegou, a África Subsaariana já tinha e mantinha problemas complicados, problemas conjunturais e estruturais. Os estruturais têm  que ver com a relativa pobreza do Continente, sobretudo nas periferias das megacidades, onde grande parte da população, por não ter acesso a água corrente nem a electricidade,  não pode seguir as prescrições de higiene recomendadas; depois, pelo tipo de economia informal, uma parte também substancial dessas populações vive de trabalhos diários e precários, o que quer dizer que, se não sair de casa, não pode alimentar a família.

Bronwyn Bruton, num informe do Atlantic Council, escrevia que, em África, países mais pequenos, com menos população e cidades mais ordenadas e mais industrializadas – como o Ruanda, o Botswana e o Senegal – tinham vantagem no combate ao Corona Vírus sobre gigantes com fronteiras porosas e migrações em trânsito, como a Etiópia, a Nigéria ou a própria África do Sul. E, evidentemente, que os que tinham conflitos internos – como o Mali, a República Democrática do Congo  e a Somália – estavam mais desprotegidos.

Mas os comentários Bronwyn Bruton no Atlantic Council têm cerca de um mês e a verdade é que, embora haja com certeza menos controles, logo, muitos casos que escapam à estatística, e além do suposto benefício do calor (a África Tropical e Subtropical mostra claramente muito menor incidência do vírus), parece haver um outro factor importante: a questão geracional. O que também protege a África é a relativa juventude da sua população: em 2015, segundo as Nações Unidas, havia na África Subsaariana 46 milhões de pessoas com mais de 60 anos, numa população total de cerca de mil milhões de habitantes, ou seja, 4,5% nas idades de risco. Há indicações (com todas as reservas que uma nova epidemia – e, por agora, ainda mal conhecida – exigem) que a incidência mortal nos mais velhos é real. A Itália, que tem 25% de maiores de 65 anos, está na linha da frente das baixas.

Assim, muito provavelmente,  os problemas de África com o novo vírus virão menos do contágio e das perdas humanas directas e mais dos revezes da quebra das economias desenvolvidas – logo, do consumo de energia e matérias primas que a África produz – e  da dívida e da dependência que, nos últimos anos, muitos países passaram a ter em relação à China. Daqui os apelos internacionais – nomeadamente do Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres – para o problema dos países africanos, não só pela debilidade das suas estruturas sanitárias, mas pela dificuldade de impor medidas de lockdown e redes de suporte, como o lay-off ou as ajudas estatais às pequenas e médias empresas.

As consequências económicas do vírus serão ali particularmente graves e virão numa altura em que os problemas do mundo dito desenvolvido estarão também no seu pico. A quebra dos preços do petróleo, por exemplo, atinge fortemente economias como as da Nigéria, da Argélia e de Angola. E Moçambique está a braços com uma guerrilha de tipo jihadista no Norte, em Cabo Delgado, e com a quebra dos preços da energia e também do gás natural.

A vulnerabilidade africana está também no alto endividamento dos países do Continente. Basta lembrar que, dos 64 países que gastam mais no serviço da dívida do que na Saúde Pública, 30 são africanos. Embora recentemente os ministros das finanças e os governadores dos Bancos centrais do G-20 tenham acordado uma moratória na Dívida até ao fim deste ano, para dar aos países africanos tempo e respiro para prepararem os seus equipamentos de saúde, as necessidades vão ser muito maiores. O que os países africanos pedem neste momento é que a moratória se estenda até ao final de 2021 e o acesso um fundo de emergência de 100 biliões de Dólares para acorrer às necessidades mais imediatas, como o apoio às crianças e aos 30 milhões de desempregados que podem resultar do primeiro impacto da crise. A China, que neste momento é o principal credor da África Subsaariana (num total de 150 biliões de Dólares), declarou pelo seu ministro dos Negócios Estrangeiros que irá examinar a situação país a país.

Esta situação abre também outros dilemas e escolhas no chamado Ocidente Euro-americano.  Com a consciência realista de que há um estado de necessidade dos dois lados dos Atlântico, os deveres de solidariedade – a letra desse espírito do Ocidente que continua presente na sua retórica oficial  – não podem nem devem ser esquecidos. Se nós estamos mal, outros estão ou ficarão muito pior.  E que se esse pior levar ao desespero, irá traduzir-se em migrações forçadas para a Europa, ao pé das quais nada do que se viu até hoje terá comparação.

Para os Estados Unidos contará também a definição da liderança do mundo pós-pandemia, um outro mundo mas no mesmo lugar deste; e essa liderança  será indissociável da percepção que os governos e povos mais maltratados pelas consequências da pandemia tenham dos que então os ajudaram e estiveram presentes.

Além dos problemas especiais de Moçambique e da Guiné Bissau, com a ameaça jihadista em Cabo Delgado e o auto designado governo da Guiné Bissau, os países africanos de língua oficial portuguesa têm estado a lidar relativamente bem com o Covid 19.  As consequências económicas já serão outra coisa.