Não sei se um tipo que ainda teve uma caneta de aparo e uma ardósia quando entrou para a escola, apanhou reguadas, puxões de orelhas, bofetadas e até pontapés no rabo como forma de incentivo pedagógico está autorizado pela polícia dos costumes a falar sobre a experiência pedagógica dos telemóveis.

Convém explicar aos meninos dos telemóveis que uma ardósia era um artefacto de xisto com uma bordadura em madeira que servia para escrever, com um lápis próprio, também de xisto. Uma vez preenchida a função, apagava-se com um trapo no qual se dava uma cuspidela para ser mais rápido e ficar mais limpa. Uma caneta de aparo era uma espécie de lápis com um aparo na ponta, peça de metal que, molhada em tinta, permitia desenhar as letras no papel.

Em cada carteira havia um tinteiro, espécie de copinho de cerâmica com tinta onde se molhava o aparo. Com o livro do ano, estava completo o arsenal escolar de que cada um dispunha para acompanhar as aulas sob o olhar atento de Salazar e Carmona (quem não conhecer, por favor, vá consultar a Wikipédia no telemóvel) cujas fotos institucionais enquadravam um Cristo na cruz que nos recordava estarmos num país onde a religião e a política velavam pela nossa educação e felicidade.

Para completar o quadro, convém dizer que meninos e meninas tinham escolas diferentes, muitos andavam descalços e rotos, no inverno o frio era tanto que as frieiras nos faziam inchar mãos, pés e orelhas e os dedos ficavam “engadanhados” (se necessário, consultar o dicionário da língua portuguesa, disponível no telemóvel) quando chovia havia meninos e meninas cujo único abrigo para a chuva era uma saca de adubo, meio dobrada, que servia como gabardine.

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Os exames começavam na terceira classe e o primeiro relógio que os meus pais me deram foi prenda de ter passado nesse exame. Dos cerca de quarenta meninos que entraram comigo para a primeira classe, leu bem, quatro dezenas, fui o único que fiz um doutoramento, não porque fosse melhor do que os outros, mas apenas porque tive a sorte de nascer no sítio certo e de me ter orientado na vida. Nada de especial, outros não estudaram, mas fizeram-se negociantes e empresários e outros foram ficando por onde puderam.

Este introito é uma espécie de declaração de interesse de alguém que, não sendo nativo digital, não se sente diminuído na sua faculdade de discorrer sobre matérias que fazem do nosso dia a dia um desafio permanente para percebermos como podemos educar melhor e fazer das escolas territórios onde a aprendizagem rime com prazer e não com “seca” e a tecnologia seja parte do próprio processo e não ruído ou, ainda pior, obstáculo.

Desde a generalização do uso dos telemóveis que a polémica se instalou, aliás como com os computadores, apesar de estes já terem sido domesticados, isto é, já ninguém discute a sua utilidade e o seu uso na sala de aula e, nalguns casos, até já quase se tornaram o único recurso, porque com eles chega-se a todos os outros.

Com os telemóveis é diferente, andam no bolso, são práticos para comunicar a todo o tempo, tanto dão para descobrir como se desenrola o processo de fusão nuclear, como para aprender a estrelar um ovo, a surfar as redes sociais, a contar os passos, a fazer desenhos e, agora, com a inteligência artificial, a escrever textos ou a embaraçar os professores com perguntas com cujas respostas eles não conseguem concorrer.

Quando comecei a ouvir que se estava a colocar em algumas escolas a possibilidade de proibirem os telemóveis pensei que se tratava de algum boato resultante de má interpretação de declarações de algum “especialista”, mas quando hoje percebi que até o ministro da pasta já foi tocado por esta preocupação e, segundo li, vai pedir um parecer, achei que depois de quase meio século de dedicação à causa da educação tinha o direito e a legitimidade técnico-científica para dar o meu parecer, não apenas ao ministro, mas a quem isto interessar.

Como em relação a outras questões polémicas há estudos para todos os gostos, uns dirão que os telemóveis na sala de aula são péssimos, outros dirão o contrário e, finalmente o grupo maior dirá que são assim-assim. A questão não são os telemóveis, é o ponto de onde se parte para analisar os seus efeitos.

A primeira questão que se deve colocar para analisar o seu efeito nas salas de aula tem a ver com o enquadramento familiar das crianças quando são escolarizadas e a sua relação com os telemóveis e outros equipamentos associados. Quem tem crianças por perto sabe, e quem não tem já deve ter visto, que não há criança pequena que não se entretenha com telemóveis e similares. Muitos mexem melhor nos equipamentos do que os mais velhos.

Chegados ao jardim de infância ou à escola será mais adequado pedagogicamente partir do conhecimento que as crianças já possuem e utilizar os telemóveis e similares de forma criativa e pedagógica ou bani-los? Parece óbvia a resposta.

Se é assim tão simples, o que justifica esta onda reativa relativamente a tecnologia que faz hoje parte da vida de todos e é indispensável, sublinho o indispensável, mesmo nas salas de aula? A confusão que paira em muitos espíritos e que ainda não permitiu perceber que as crianças de hoje são muito diferentes das de ontem, chegam à escola em estádios de desenvolvimento que nada têm a ver com o passado e, sobretudo, aprendem de forma diferente porque viveram de outra forma e foram socializados como no passado não se era.

Por outro lado, a tecnologia deixou de ser um mero auxiliar do ensino-aprendizagem, tornou-se parte do processo, razão que leva a que se considere como indispensável a sua utilização sob pena de o processo ficar debilitado e os resultados aquém dos possíveis.

Pôr em causa a utilização dos telemóveis na sala de aula é um falso problema, a questão não está nas máquinas, nem nos alunos, o problema é de quem dirige os trabalhos, de quem lidera as atividades, de quem se formou para ser professor ou professora.

Se entro numa sala de aula e os alunos estão aos gritos e à bulha, a culpa é que quem? Obviamente, da organização que se chama escola e dos seus representantes, o ruído não é dos telemóveis é de quem não consegue lidar e acompanhar os alunos, não cria as condições de gestão adequadas para aquele grupo, que constituiu uma turma. Antes dos telemóveis está a criação de condições para que haja aprendizagem e isso pressupõe um conjunto de regras e comportamentos que estão a montante daqueles.

O que tem transformado algumas escolas em territórios de risco de não aprendizagem tem sido o abandono de regras básicas, sem as quais grupos e sociedades entram em anomia, deixando de haver condições de aprendizagem e tornando-se os professores sobreviventes de uma refrega contínua.

Resolvido ou controlado este problema e utilizados adequadamente, os telemóveis podem tornar-se no melhor amigo dos professores porque colocam na palma da mão de todos uma ferramenta inesgotável de aprendizagem com recursos ilimitados. Sejamos sérios, os telemóveis não são um problema, bem pelo contrário, o problema são algumas escolas e alguns professores.