Uma das personagens mais fascinantes da segunda metade do século XX nos Estados Unidos é Ted Kaczynski. Nascido em 1942, Kaczynski revelou desde cedo capacidades intelectuais excecionais. Com 16 anos foi admitido na Universidade de Harvard, especializou-se em matemática aplicada na Universidade de Michigan e lecionou em Berkeley durante dois breves anos. Ao longo desse período, o descontentamento com o mundo que o rodeava foi aumentando e conduziu a uma decisão radical: retirou-se para uma pequena cabana em Lincoln, Montana, onde viveu praticamente isolado nas duas décadas seguintes.

O seu objetivo era viver do modo mais autónomo possível, em harmonia com a natureza e sem depender do mundo moderno, preservando, assim, a sua liberdade. Mas o ambiente que o rodeava foi sucessivamente alvo de intrusões tecnológicas: o barulho dos aviões, as máquinas de construção, a destruição da natureza. Ted tentou afastar-se do mundo, mas o mundo continuava o seu percurso imparável de desenvolvimento tecnológico. E é o modo como vai reagir a esta intrusão que o tornará no homem mais procurado pelo FBI durante vários anos: entre 1978 e 1995 enviou vários artefactos explosivos para lojas de informática, professores universitários e empresas tecnológicas e conseguiu colocar uma bomba num avião. Matou 3 pessoas e feriu 23. Essas bombas, construídas de forma artesanal e cada vez mais complexas, eram enviadas por correio e sem qualquer informação que permitisse ao FBI mais do que designá-lo como Unabomber.

Em 1995, Ted Kaczynski enviou um documento para o The New York Times e o The Washington Post, comprometendo-se a terminar com os seus atos terroristas caso o seu Manifesto fosse publicado. Em acordo com o FBI, os jornais publicaram Industrial Society and its Future (ISAIF), que obteve um grande impacto: os artigos de opinião, apesar de condenarem as ações do autor (ainda desconhecido), reconheciam a validade do seu argumento e ondas de adesão às suas ideias multiplicaram-se pelo país. Que argumento era esse?

Em ISAIF, Kaczynski chama a atenção para os impactos da sociedade industrial: promove a contínua destruição da natureza, é fonte de problemas mentais e sociais, conduz a uma normalização da sociedade. Mas, acima de tudo, significa uma contínua restrição da liberdade humana, o mesmo é dizer, da dignidade humana, no sentido de que deixamos de ter controlo sobre as circunstâncias da nossa própria vida. Na verdade, os avanços tecnológicos são acompanhados de uma permanente regulamentação que destrói a nossa autonomia. E mais do que isso: “Quando um novo item tecnológico é introduzido como uma opção que o indivíduo pode ou não aceitar, isso não significa que ele permaneça opcional. Em muitos casos a nova tecnologia altera a sociedade de tal maneira que as pessoas se veem, com o passar do tempo, FORÇADAS a usá-la.” Assim aconteceu com o automóvel, o computador, o telemóvel, o email, a declaração digital de IRS. É este o ilusionismo da tecnologia: apresenta-se sempre como liberdade; acaba sempre por se transformar em condicionamento.

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No dia 14 de outubro, assistimos, mais uma vez, a este truque de ilusionismo: uma aplicação criada com o objetivo de ser usada facultativamente no atual contexto pandémico passou a ser apresentada como obrigatória. Esta proposta, para além de exemplificar a rampa escorregadia que as novas tecnologias sempre convocam, aproxima-nos perigosamente de estados autoritários e totalitários e só o facto de ter sido invocada devia deixar-nos assustados.

Há, no entanto, um truque de ilusão maior a que devemos estar atentos. Na verdade, a proposta apresentada por António Costa é de tal forma absurda que tem recebido reações de surpresa e recusa de quase toda a parte, desde sensatas associações de defesa dos direitos digitais até ao grupo parlamentar do Partido Socialista (Rui Rio, na sua tradição iliberal, já afirmou que a eficácia se sobrepõe aos direitos). Qual é, então, o objetivo de apresentar uma medida não só inadmissível num estado democrático, mas também com a qual ninguém parece estar de acordo?

Eis a arte ilusionista de António Costa: o primeiro-ministro sabe perfeitamente que a obrigatoriedade da instalação da aplicação é inaceitável. Mas ao avançar com uma proposta absurda condiciona o debate político. Faz esquecer outros temas, como os relativos à aprovação do orçamento ou a inacreditável eleição para as CCDR. Faz esquecer outras polémicas, como as que resultam do facto de o governo não se ter preparado para a nova vaga que todos sabíamos que chegaria. Faz esquecer o aumento dos poderes discricionários do Governo, que decorre da declaração do estado de calamidade. E faz esquecer as novas contradições do executivo, desta vez quanto ao uso obrigatório de máscara ao ar livre. Esta medida, sempre recusada pelo Governo e continuamente questionada por vários especialistas, tornou-se natural ao lado do absurdo, quando merecia um debate amplo sobre a sua necessidade e regras de aplicação.

Ao introduzir o absurdo, Costa fechou a possibilidade de discussão e os meios de comunicação (e quase todos nós) morderam o engodo. Continuemos, então, a discutir a aplicação enquanto a nossa liberdade se vai reduzindo passo a passo. Continuemos, cantando e rindo, até à servidão total.