Vargas Llosa, em A civilização do espectáculo, diz que Tolstoi, Joyce e Faulkner escreviam livros que pretendiam derrotar a morte, que sobrevivessem a eles próprios, ao passo que as telenovelas brasileiras, os filmes de Hollywood ou os espectáculos da Shakira não pretendem durar mais que o tempo da sua apresentação. Desaparecem, dão lugar a outros produtos de enorme sucesso e efemeridade. Para Llosa, hoje a cultura é diversão, e o que não é divertido não é cultura. Décadas antes, já T. S. Eliot nos falava dos ‘homens ocos’ (“We are the hollow men / We are the stuffed men / Leaning together / Headpiece filled with straw”), na sequência da sua ‘Canção de Amor de J. Alfred Prufrock’, em que homens sem personalidade e sem pujança se rendiam ao niilismo, abandonavam a vida interior e se refugiavam no conforto da estética, da aparência e da mansidão filosófica. Eliot escreveu entre guerras mundiais, entre ameaças de comunismo e de nazismo e de aristocracias moribundas. Llosa escreve no tempo das redes sociais, entre ameaças de novos radicalismos de diversos campos e de conflitos entre civilizações.

Para Llosa, a cultura é uma espécie de consciência que impede o voltar de costas à realidade, e que hoje funciona como mero fenómeno de distracção e entretenimento. Partindo do pressuposto de que o Homem tem uma tendência natural para se divertir, para ocupar o seu tempo, o que não critica, o que Llosa ali avalia é a transformação desta tendência num bem supremo da civilização. Passou-se o mesmo com a política, os assuntos da polis, se quiserem, que pularam directamente da esfera reservada das elites para o consumo do entretenimento produzido por estas para satisfação, quando existe, das massas, num interessante movimento de ilusão democrática.

Talvez aqui resida boa parte das causas que nos conduziram aqui. O Homem europeu parece viciado, mesmo parado, nos anos 90 do século passado, entre o fascínio das frivolidades e as certezas da paz e da prosperidade perpétuas, e surge agora, em larga medida, numa espécie de fúria temperada, embora com danos, procurando alternativas que, acredita, o façam regressar a esse período anormalmente incomum, mudando tudo para que tudo fique na mesma – ou ligeiramente pior, em qualquer dos casos, em matéria de liberdades. Ou, como escreveu Lucas Pires, talvez o populismo surja, afinal, como mero biombo folclórico da tecnocracia, esta efectivamente hegemónica, num novo estado da vida social europeia em que o contra-poder serve apenas de mero movimento iliberal no sentido do regresso à normalidade precedente.

Há dias, no El Mundo, Jorge Bustos lembrava a frase de Giorgia Meloni à saída das negociações que a excluíram da partilha de poder entre populares, social-democratas e liberais europeus: «As pessoas votaram numa Europa mais concreta e menos ideológica.» Claro que existe, por essa Europa fora, gente que delira com marchas sobre Roma ou novas revoluções de Outubro, embora mesmo nestes termos a disputa seja desequilibrada entre franjas marginais, no caso dos primeiros, e protegidos de boa parte da imprensa, no dos segundos. Mas é possível que o radicalismo de direita se tenha conformado com a sua diluição em novos movimentos populistas, sem carga ideológica, desejosos, afinal, apenas por ocuparem o lugar dos velhos tecnocratas já sem fôlego e emaranhados nos seus próprios erros, também eles de tendência cada vez mais iliberal. Meloni pode ser o grande sinal da pacificação, da clarificação das águas e até de uma certa media via entre os vassalos de Putin (onde se agiganta Órban) e a decadente tecnocracia europeia. Certo é que só pagando para ver, e talvez daí advenham bons resultados: fracassando estes novos movimentos, como é expectável que fracassem, teriam pelo menos o mérito de forçar os partidos tradicionais a procurar novas fórmulas de actuação, reafirmando a normalidade europeia com um novo fôlego político, social, económico e cultural. Problema maior é garantir que alguma das soluções em confronto (a realidade tripartida francesa actual, se preferirem) prospera no sentido do regresso à velha normalidade liberal, ou antes se todas elas trilham uma rota de iliberalismos de aparências diversas.

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Na saga Guerra das Estrelas, episódio III, Anakin Skywalker e Obi-Wan tentam resgatar o Chanceler Palpatine, sequestrado pelo General Grievous. Depois do resgate, quando Anakin regressa a casa, Padmé, a sua mulher, conta-lhe que está grávida de um filho seu. A partir desse momento, Anakin passa a ter pesadelos relacionados com esta notícia, prevendo que Padmé morreria durante o parto. Dominado pelo medo e obcecado pelo Bem, junta-se aos Sith, seduzido pelo Lado Negro da Força. Anakin Skywalker passa, assim, a ser o famoso vilão da história do cinema Darth Vader.

Este absoluto desejo pelo Bem conduz Anakin ao Lado Negro na medida em que ultrapassa os seus pontos de equilíbrio e ignora as barreiras do seu próprio ego e da sua moral. Foi o medo da barbárie que conduziu Anakin Skywalker a Darth Vader.

Já na trilogia Batman, de Christopher Nolan, deparamo-nos com o contrário. Bruce Wayne compreendeu a existência de limites à luta pelo Bem. Em O Cavaleiro das Trevas, o segundo da saga, face à presença do Mal absoluto, encarnado por Joker, Batman é conduzido à pergunta final: o Mal absoluto de Joker legitima ou não o poder absoluto do Bem de Batman? Bruce Wayne faz o percurso contrário ao de Anakin Skywalker e rejeitou a resposta fácil. Batman aceita o seu lugar secundário na história, aceita não ser o herói, aceita comprometer-se com a realidade e, pasme-se, aceita ainda passar pelo papel de vilão.

No último episódio, O Cavaleiro das Trevas Renasce, Alfred Pennyworth, o mordomo de Bruce Wayne, começa por pedir-lhe que não faça renascer Batman. O milionário decide o contrário, mas o filme termina com um Bruce Wayne maravilhosamente transformado num ser humano que, aceitando o fim de Batman, reconhece também que o Mal é uma inevitabilidade e assente que é apenas um homem e não um herói. O fim da trilogia não é unívoco. Pode parecer que Bruce Wayne desistiu; pode parecer que Bruce Wayne se rendeu ao cinismo e à indiferença, à não distinção entre o Bem e o Mal. Não creio. No fim da trilogia de Nolan, Bruce Wayne aceita-se, conforma-se com os seus limites e presta-se a viver uma vida simples, decente e sem a aspiração ao Bem absoluto.

Tudo isto está, de forma menos popular, em Tzvetan Todorov, que afirmou, em O medo dos bárbaros: para além do choque de civilizações, que é o medo dos bárbaros que ameaça converter-nos em bárbaros, no sentido em que a cura pode ser muito pior que a doença. Ora, esta é a verdadeira batalha cultural em marcha, não a que uma certa agenda impõe e a que outra agenda responde pavlovianamente. É a batalha pela normalidade liberal e não pelo Bem absoluto, não por um certo tipo de mundo perfeito através de derivações iliberais, quer através do populismo de direita, do populismo de esquerda ou do populismo dito liberal, cada vez mais populista e menos liberal – o que, no meu caso específico, me faz sentir cada vez menos representado. Quem achou que viver em democracia não era viver em perigo permanente estava, pois, bem enganado.